Divino no Maranhão; o particular de uma festa popular e seus diálogos. 

Marise Barbosa* 

 

 

O culto ao Divino Espírito Santo de Deus é um ritual do catolicismo popular e se manteve no calendário cristão oficial através da celebração de Pentecostes, palavra grega para os cinqüenta dias que o separam da Páscoa. No Maranhão esse culto festivo adquire uma particularidade. É conduzido por mulheres que cantam e tocam tambores, as caixas. Daí seu nome: Caixeiras do Divino.

Tambores são instrumentos vitais. Seus corpos são feitos de madeira – os ossos das árvores –, sua superfície é coberta pela pele dos animais fixadas pelo metal dos pregos, e sua voz ressoa pela habilidade dos corpos humanos em percuti-los. Corpos e tambores construídos pelas mesmas substâncias questionam a separação entre os seres humanos e a natureza.

Os tambores rituais são instrumentos interditados às mulheres na tradição afro-brasileira, mas na especificidade dos festejos do Divino no Maranhão, são reconhecidas em seu grupo social como as suas sacerdotisas, e conduzem os rituais cantando e tocando tambores; as caixas.

 

O olhar para a festa.

 

Uma festa torna evidentes as diferenças culturais postas em movimento pelos antagonismos de classe ali presentes. Ela não é a mesma para todas as pessoas que dela participam. Cada uma das classes sociais que a compõem e mantém, atribui-lhe sentidos e finalidades particulares que dialogam com suas expectativas. Mulheres e homens portando valores, hábitos, heranças culturais, mantêm viva, nas dobras da cultura hegemônica, sua expressão cultural e religiosa, e cada uma delas tem sentido no lugar e no tempo onde acontecem.

Essa realidade leva à reflexão sobre as formas do diálogo entre o universo da pessoa que pesquisa e o universo que elegemos para conhecer.

Felix Guatarri e Sueli Rolnik[1] pensando a alteridade, a relação com o outro, a outra cultura e sua dinâmica - questões que surgem com força em trabalhos de pesquisa sobre as culturas populares -, destacam que a renúncia ou a crítica ao etnocentrismo europeu, branco, masculino, não garante a renuncia ao etnocentrismo. Em sua análise “se estabelece uma espécie de policentrismo cultural. Uma multiplicação do etnocentrismo".

Ao falamos em cultura negra, infantil, regional, underground, etc, pode existir um olhar etnocêntrico sem que a lente através da qual se olha seja ocidental, branca e masculina. Em suas palavras;

"...é preciso saber que povos e etnias não vivem as atividades de semiotização separada daquela da cultura. Elas sabem que produzem musica, dança, atividades de culto, de mitologia etc, e descobrem isto sobretudo quando as pessoas vêm lhes tomar a produção para expô-la em museus ou vendê-la no mercado de arte ou para inseri-las nas teorias antropológicas científicas em circulação. Mas elas não fazem nem cultura, nem dança nem música. Todas estas dimensões estão inteiramente articuladas umas as outras num processo de expressão, e também articuladas com sua maneira de produzir bens, com sua maneira de produzir relações sociais".

 

Nestor Canclini[2] discute as culturas e suas transformações, a partir da compreensão da coexistência das tradições com as ações vinculadas à modernidade, que chega devagar e interage sutil e sinuosamente com as expressões das tradições. Canclini considera que não cabe uma análise dessa relação como um conflito no qual os modernizadores sufocam os tradicionalistas, nem tampouco como uma resistência direta e constante dos setores populares empenhados em fazer valer suas tradições, mas como uma necessidade recíproca.

“os movimentos populares também estão interessados em modernizar-se e os setores hegemônicos em manter o tradicional ou parte dele, como referente histórico e recurso simbólico contemporâneo.”

Edward Palmer.Thompson[3] inicia sua análise sobre cultura falando de costumes. Entende que este conceito designa um grande campo, um espaço de disputa de interesses opostos e em constante mudança. Como conjunto de diferentes recursos, a cultura se alimenta também de uma troca entre o oral e o escrito, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole. Considera o costume como uma das dimensões da Cultura, e, ainda que seja como elemento residual proveniente de uma bagagem passada, está vivo e em transformação sempre. Tradição não é uma mesma maneira de fazer as coisas há muito tempo. Se a compreendemos assim;

“Essa postura torna-se conservadora, ao marginalizar e engessar os sujeitos sociais na perspectiva do "autêntico", do "autônomo" do "cristalizado". Assim não percebemos todo o vigor da sua constante mutação, nem seu espaço como um grande campo de disputa de interesses opostos, experiências compartilhadas, significados e valores. Dentro dessa perspectiva faltaria um lugar para que a memória cultural e coletiva utilize sua capacidade de selecionar - resguardando do esquecimento, ao mesmo tempo - o que faz sentido e que continua a ter significado social, e abandonando partes que não têm mais ressonância”.

Thompson é incisivo ao afirmar que, ao estudarmos o costume, devemos fazê-lo a partir de seus significados para os sujeitos, compreendidos como forças sociais que por definição, são contraditórias e densas. As populações fazem uso de práticas sem conhecer suas origens e tradições mais antigas, mas defendendo os espaços sociais através de sua expressão e da experiência social vivida o que permite a formação da consciência de classe. Considera que o sentido de cultura popular em abstrato, é vazio, e, para sua compreensão, requer que seja colocado dentro de contextos históricos específicos.

Se deslocarmos o costume da sua prática social, ele se torna uma mera descrição de folclore, algo que "precisa" ser descrito, e, às vezes "resgatado", por estar "em vias de extinção".  Os "colecionadores" de costumes antigos; como Thompson os denomina, registraram alguns antigos costumes e legaram para a posteridade descrições cuidadosas de hábitos e ritos que já deixaram de existir ou hoje têm outra forma. 

Michael Foucault[4] acrescenta que se deve ter em mente que o significado social de ritos e costumes, agrega componentes do imaginário e da irracionalidade. e é constituído pela elaboração pessoal da experiência vivida socialmente.  Conhecer um universo ou sujeito escolhido, deve ter como principio norteador, as relações de luta e poder na qual está imerso. Além disso, o olhar sob o qual se constrói o conhecimento, é por sua vez, o que lhe dá o seu caráter obrigatoriamente parcial, oblíquo, perspectivo.

As reflexões de Milton Santos[5] vão no sentido de compreender e impedir que as noções correntes de uma ordem imposta por uma racionalidade dominante na época atual, as noções trazidas pela modernidade, possam nublar questões importantes, como a presença do que ele considera: “racionalidades presentes em outros níveis com regulações mais consistentes com a ordem desejada pelas pessoas onde quer que vivam.”

Por esse prisma, a existência e permanência das Caixeiras é um ordenamento desejado e construído por elas, e é preciso mover o olhar para outras dimensões da sua realidade para construir o conhecimento sobre o seu festar.

O etnomusicólogo e professor Tiago de Oliveira Pinto, me apresentou ao trabalho de Steven Feld[6], um dos percussores da pesquisa da relação entre estruturas sociais e estruturas sonoras incorporando dados qualitativos através de prolongadas pesquisas de campo.

Feld desenvolveu a compreensão de que a procura por um padrão central característico de uma dada estrutura social e sua expressão sonora através de métodos quantitativos, sacrifica dados subjetivos importantes, e desenvolve o conceito de fazer musical como categoria passível de análise e sistematização.

Embora não tenha sido este o seu objetivo, seu método contribui também ao oferecer aos profissionais das ciências sociais e humanas, a possibilidade de incluir o fazer musical em suas investigações de diferentes grupos sociais. 

A noção de fazer musical aqui foi compreendida como um conjunto de práticas que envolvem o universo no qual as Caixeiras existem e exercem seu papel. Essa noção apoiou a organização dos depoimentos orais. Os caminhos do aprendizado da execução do seu instrumento, a prática do ensino de meninas – principalmente - através da contínua transmissão oral por muitas gerações, a existência e o respeito às hierarquias nos grupos nas festas, o desenvolvimento do conhecimento do repertório musical como tática que mantém e amplia seus espaços sociais, sua relação entre seu saber e o poder dos donos de festa, entre outros.

As importantes reflexões de Alessandro Portelli[7] sobre a história oral destacam o pluralismo resultante dessa prática que trata das visões particulares da verdade permitindo a construção do conhecimento por várias abordagens. 

Portelli ressalta que não se deve esperar a “rigorosa verdade”, pois a pessoa que dá seu depoimento o faz a partir do filtro de sua memória e de sua subjetividade. Esta se destaca quando a depoente escolhe relatar ou não determinados fatos ou sentimentos. O teor de um depoimento pode variar de acordo com a qualidade da relação de confiança estabelecida entre quem entrevista, e as pessoas entrevistadas, pois uma exposição expõe ao mesmo tempo o tema e a pessoa expositora. “A memória não é aquilo de que lembramos, é o que somos”, observa.

Durante as entrevistas, torna-se evidente que a memória dos ancestrais se mescla a lembranças de narrativas conhecidas, às vivências e atitudes diante da vida, e formam um todo na memória dos depoentes. Estes re-significam fatos passados, e expressam sua interpretação. Nesse processo constroem sua identidade reorganizando sua trajetória ao rememorá-la.

J. Vansina[8] observa que trabalhar com depoimentos orais pressupõe o conhecimento de que o universo transmitido oralmente, é o universo da oralidade, que se define por uma atitude diante da realidade, e não pela ausência da escrita, uma habilidade.

Ao discutir as tradições orais africanas, em suas forma de guarda e transmissão entre gerações, reconhece que não é fácil encontrar uma definição para tradição oral que dê conta de todos os seus aspectos. Acrescenta que; conhecê-la, exige que o historiador primeiramente se inicie nos modos de pensar da sociedade oral, antes de interpretar suas tradições. E cita Fu Kiau do Zaire[9];

“...é ingenuidade ler um texto oral uma ou duas vezes e supor que já o compreendemos. Ele deve ser estudado, decorado, digerido internamente como um poema, e cuidadosamente examinado para que se possa apreender seus muitos significados. O historiador deve aprender a trabalhar mais lentamente, refletir para embrenhar-se numa representação coletiva, já que o corpus da tradição é a memória coletiva de uma sociedade que se explica a si mesma”.

No seu entender, tradição é uma mensagem transmitida de uma geração para outra e é importante –destaca- que esta mensagem esteja fundada num testemunho ocular, que possui grande valor, pois desse modo, os riscos de distorção dos conteúdos são mínimos. Os conteúdos das tradições são geralmente preservados por meios memotécnicos, na maioria canções, como forma privilegiada de reter os textos, sejam eles narrativas, fatos, princípios, ensinamentos.

O processo de apresentar-me a cada uma das Caixeiras que fui conhecendo ao longo do trabalho, de falar dos meus objetivos em estar ali, me exigiu avaliar e compreender constantemente as minhas próprias razões. Associei o meu movimento de trabalhar com depoimentos orais dessas mulheres, a uma busca que ia além da minha motivação declarada. Ao ouvir suas histórias, conviver com sua maneira de estar no mundo e de se relacionar entre si e com sua vida, eu aprendi mais do que previ, mais do que busquei.

 

A Festa e os festejos

 

           A realização e constante rememoração da festa traz fragmentos da festa européia celebrada na primavera no hemisfério norte, festejada como um momento do ciclo das estações onde a vida  renasce, depois da morte no inverno. O Culto do Divino em seu caráter cíclico, evoca na população que o vivencia, sua própria possibilidade de regeneração e renascimento. Fragmentos da memória da regeneração cíclica na primavera, faz-se notar no costume difundido entre as Caixeiras no Maranhão, de enfeitar seus cabelos com flores naturais que também aparecem nos versos do repertório poético musical repleto de rosas, cravos e cravinas.

Esse culto adquire variadas formas nos lugares onde é realizado, e em todos eles, o Império do Divino mescla características da finitude humana com a imortalidade do poder do Divino, que nunca desaparece. Mulheres, homens e crianças podem ser seus representantes. Através do seu culto, seus devotos vivenciam um ciclo de ascensão, posse e perda de cargos e poder num ciclo que ressalta a impermanência, a presença da transformação à qual estamos todos atados.

Para os cultos festivos ao Divino convergem todas aquelas manifestações populares do “universo cruzado” da herança ibérica com as culturas africanas e indígenas, que não foram ou não se mantiveram inseridas no calendário cristão oficial. O Divino dialoga com todas elas. Em suas festas vão dançar as Congadas, Moçambiques, Tambor de Crioula e outras manifestações vivas em cada região do Brasil onde se realize o seu culto.

O catolicismo comemora a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos em Pentecostes[10], no sétimo domingo depois da Páscoa. Cinqüenta dias depois da noite da aparição de Jesus anunciando-lhes o evento da ressurreição e sua ascensão aos céus.  O Divino Espírito Santo, é uma das três pessoas da Trindade Divina - Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo - que se reúnem na unidade do Pai, o que constitui um dos dogmas paradoxais do cristianismo.

Por ocasião de Pentecostes desce do céu sobre os apóstolos de Cristo sob a forma de línguas de fogo, episódio descrito no livro Atos dos Apóstolos, capítulo 2, no Novo Testamento da Bíblia.

Chegando o dia de Pentecostes estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceram-lhes então uma espécie de língua de fogo, que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo, e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem”.  

A continuidade do relato afirma que, a partir do transe inspirador provocado pela descida do Espírito Santo, os apóstolos, tomados desse poder de comunicação, saíram e foram pregar o evangelho de Cristo aos outros povos, buscando estabelecer a Nova Aliança de Deus com todos os seres humanos. Este episódio marca o início da formação da era cristã.

Segundo o teólogo Rafael Rodrigues da Silva[11], esta é uma leitura pela oficialidade da igreja. Em sua compreensão:

“Tem-se vários cristianismos. Principalmente porque este texto é bem posterior, e ninguém sabe direito como aconteceu isto. Lá pela idade média, no Governo do Papa Gregório começam os monges a fazer estudos para construir um calendário no qual o cristianismo seria uma referência.”

A quarta-feira anterior à quinta-feira da ascensão, quarenta dias depois da Páscoa, geralmente marca o início das festas do Divino. Estas podem ser encontradas em muitos estados do Brasil: Pará, Maranhão, Piauí, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, nas ilhas do Atlântico - no Arquipélago dos Açores, e nas ilhas de Cabo Verde - e nos Estados Unidos[12] - na Califórnia principalmente -, realizada por imigrantes açorianos. 

Por se tratar de uma data móvel, relacionada com a Páscoa, Pentecostes acarreta também a mobilidade de outros dois dias santos: o domingo da Santíssima Trindade, na semana seguinte. Nessa data se celebra o Espírito Santo em algumas ilhas dos Açores, e o dia de Corpus Christi na quinta-feira seguinte.

Segundo o pesquisador maranhense, Carlos de Lima Os imigrantes açorianos teriam levado esse culto festivo para Alcântara, no Maranhão. Chegaram em grupos de duzentos casais em média - cada um deles -, a partir de 1618, seguindo por vários anos do século XVII[13], com o objetivo de “formar a população do lugar”. Do Catálogo de documentos manuscritos avulsos referentes à capitania do Maranhão, existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, constam petições do então governador do Maranhão, Albuquerque Coelho de Carvalho, ao Rei Afonso VI, para que “se enviem, àquele estado, casais das ilhas dos Açores e Madeira e alguns presos”.

Lima[14], considera que no princípio o Divino em Alcântara era celebrado com um bodo[15], e mais tarde, com a chegada dos soberanos portugueses ao Brasil, a festa teria assumido a estrutura de um Império: o Império do Divino. 

Uma versão, conhecida e costumeiramente contada pelos guias aos turistas em visita a Alcântara, diz que a festa teve início por causa de uma prometida visita de D. Pedro II à cidade. As famílias da elite local teriam se preparado para recebê-lo, iniciando a construção de grandes casas onde o Imperador e sua comitiva seriam hospedados. Embora essa visita nunca tenha acontecido, a versão que se inspira nesse fato diz que os africanos escravizados e seus descendentes, moradores da cidade, teriam feito a festa com base no modelo do Império ausente, construindo assim, o Império do Divino. Essas construções nunca foram finalizadas e a presença de suas ruínas é utilizada para ilustrar esta versão.

Em Vida, Paixão e Morte da Cidade de Alcântara- Maranhão[16], Lima diz que essa notícia foi divulgada no Rio de Janeiro por um prefeito de São Luís, e em sua opinião, carece de fundamento. Em suas palavras;

Ora, Pedro II, o Imperador pretensamente convidado por um dos Francos de Sá, o teria sido pelo menos cinqüenta anos depois de haver ali a Festa do Divino, tradição portuguesa introduzida no Brasil desde o século XVI.” 

A Revista Luzitana, publicação do Arquivo de Estudos Filológicos e Etnológicos relativos a Portugal, que foi dirigido por J. Leite de Vasconcelos, traz, em vários de seus números, artigos relativos à festa do Espírito Santo ali realizada. No número 2, de 1896, um artigo sobre a Festa dos Emperadores[17] transcreve uma correspondência que o autor do texto considera curiosa. Trata-se da carta de um frade dominicano ao padre Inácio da Nossa Senhora da Boa Morte, datada de maio de 1760;

“O Espírito  Santo de Alemquer se celebra da mesma sorte que o descreve o Pe. Luís Cardoso no Dicionário T. 1, pg. 251. Sendo eu Theologo no meu convento de Batalha em 1734, vi outra semilhante cerimônia de coroaçam de Emperador pela festa da Trindade, e sahindo a Procissam da Igreja se encaminha a hum grande carvalho que está fora da villa e de sima delle lançam quantidade de pam ao povo com outras meudezas que deixo de relatar.”

Esse artigo de 1896 traz referências à coroação de um Imperador por ocasião da festa do Espírito Santo realizada no Domingo da Trindade, e embora o texto não se refira detalhadamente ao Império do Divino como se conhece contemporaneamente, em especial no Maranhão, evidencia que essa celebração que incluía um Imperador, já era conhecida e praticada.

Refere-se também ao costume de se jogar bolos do alto de grandes árvores. Nas festas no Maranhão  jogam-se bolos de tapioca ou de farinha de trigo do alto dos muros ou beirada de casas,  ao final do Levantamento do Mastro, e todos se acotovelam para pegá-los numa grande e divertida brincadeira.

Outro texto intitulado Fastos Religiosos[18], refere-se a documentos do reinado de D. Affonso arquivados na Torre do Tombo em Portugal. Um deles, uma carta de 11 de janeiro de 1465, enviada por El Rey Dom João, relata;

“...pela qual se vê que a festa do S. João era organizada à maneira da festa do Espírito Santo, creando-se também imperadores, juizes e officiaes que durante a festa tinham attribuições authoritarias, podendo mandar prender e recolher à cadeia os que desobedecessem os seus mandatos. Era a gente moça quem organisava a festança”.

Mais adiante, outra informação interessante e relacionada à existência de um Império:

“...a solenidade dos imperadores não é privativa do Pentecoste, e vamos encontra-la numa festa remota que continua ainda hoje debaixo do domínio christão sob o nome de S. João”.

Câmara Cascudo[19]  refere-se ao fato de os soberanos portugueses, por sugestão de José Bonifácio, se autodenominarem Imperadores e não Reis, pela anterior popularidade do culto ao Divino no Brasil.

Alceu Maynard Araújo[20] considera que a festa do Divino é uma versão católica da festa de Pentecostes, ressignificado pelo catolicismo romano, constituído de elementos das religiões etruscas e do judaísmo, dos quais é herdeiro, e que teria dado à festa da colheita dos primeiros frutos o sentido de comemoração dos fatos gloriosos de Cristo.

Uma versão sempre repetida, associa o culto ao Divino à rainha cristã, Isabel de Aragão, casada com D. Diniz, um templário. Como devota do Espírito Santo, a rainha teria mandado erguer, em 1323[21], uma igreja em sua honra na Vila de Alenquer em Portugal, e teria dado início a esse culto. Este teria se mantido por aproximadamente um século após sua instituição, quando teria sido proibido, e seu declínio no continente, em Portugal, teria sido paralelo a seu crescimento em popularidade nos Açores e ilhas de Cabo Verde.

O artigo já citado; As Festas dos Emperadores, traz cópias de documentos do século XV, entre eles alvarás para retirada de madeira das matas reais, cartas de confirmação da festa, com o objetivo de datar a instituição da festa.

 “segundo uma tradição mais ou menos erudita a Festa dos Imperadores do Espírito Santo foi instituída pela rainha D. Isabel, (d’origem aragonesa e esposa do rei D. Dinis que governou em Portugal de 1279 a 1325) na villa d’Alemquer a qual fazia parte do seu dote e se conservou bastantes séculos na posse das rainhas.”

O pesquisador português, Moisés Espírito Santo[22], se contrapõe a essa versão e desenvolve sua argumentação apresentando vasta referência bibliográfica e iconográfica. Ele afirma que o culto do Divino é uma festa judaica, ou um ritual popular cripto-judaico de celebração e rememoração periódica da Aliança de Deus com o povo judeu; Aliança simbolizada pela entrega das Tábuas da Lei, com os Dez Mandamentos de Deus ao patriarca Moisés, no Monte Sinai.

Moisés Espírito Santo afirma ainda que a rainha Isabel de Aragão, chamada Rainha Santa, teria sido profundamente identificada com a causa dos judeus, a quem denominava “meus judeus”. Através de um decreto ela teria instituído o culto do Divino, o que possibilitara sua legitimação aos olhos da Igreja Católica.

Santo entende que a grande popularidade do culto do Divino não poderia ter sido construída através do decreto de uma Rainha, mesmo sendo santa. Ele já existia.

Acrescenta ainda que a rainha Isabel de Aragão foi canonizada num processo que, embora cheio de contradições, foi real, e teria sido organizado por cristãos novos. Sua canonização teria tido o objetivo de abrir uma possibilidade de culto a Ester, rainha santa no Antigo Testamento.

Antônio Brágio[23], acadêmico português, ao investigar os paradigmas que apóiam a existência das Casas de Misericórdia, encontra-os freqüentemente relacionados, ou sucedâneos a confrarias e hospitais do Espírito Santo. Mas, a ambos, culto ao Espírito Santo e Casas de Misericórdia, não consegue datar ou encontrar a origem. E inicia sua exposição;

“Não há documentos de instituição da confraria do Espírito Santo de Benavente, nem da feitura de seus estatutos. Se a data de uma verba, segundo a qual, D. Plagia mandava cantar anualmente uma missa por uma herdade que legara à Confraria do Espírito Santo da mesma vila, é do mês de Agosto de 1272, da era de César, que corresponde a 1234 da era cristã, sabido é que nesta data já existia em Benevente a dita confraria sem que se saiba desde quando.”

O autor considera dados obtidos por outros pesquisadores, dentre eles, Rui de Azevedo o qual apoiando-se em documentos dos compromissos de confraria, pressupõe que na vila de Alenquer tenha sido fundada, em data mais remota, anterior ao ano de Cristo de 1217, a confraria do Espírito Santo com os estatutos semelhantes àqueles de Benevente. O argumento de Rui de Azevedo se apóia na existência anterior de uma ermida com a mesma invocação, onde se celebrava com toda a pompa as festas do Império do Espírito Santo.

Antônio Brágio acrescenta;

“Embora D. Diniz e Santa Isabel tenham a fama de instituidores da festa do império do Espírito Santo, Rui de Azevedo é de parecer que eles foram apenas os reformadores de festividade mais antiga, cuja gênese se descobre numa cláusula de compromisso da confraria que manda fazer todos os anos um bodo aos pobres no dia do Espírito Santo.”

Outro olhar sobre a relação entre a rainha Isabel e o culto do Divino, afirma que ela teria sido tocada pelas idéias de Joaquim de Fiori, um monge cisterciense que viveu de 1135 a 1202, e cujas idéias haviam se difundido na Europa. Tido como um dos grandes responsáveis pelo crescimento do conjunto de idéias que originou o Franciscanismo na Europa, De Fiori criticava a ação da igreja medieval, violenta e perseguidora das riquezas, tomando-as para si, e defendendo uma igreja mais ligada aos pobres.

Dentre outras obras, ele escreveu Liber concordie novi ac veteris testamenti. Utilizando proporções alquímicas e cálculos matemáticos, distinguiu três eras na história. A primeira delas teria sido regida por Deus Pai, o Criador, e a segunda, pelo Deus Filho, o Redentor. Através das correspondências entre cada pessoa, período e acontecimento no Antigo Testamento com uma pessoa, período e acontecimento no Novo, De Fiori prevê que estes se repetiriam em uma terceira e nova era, regida pelo Espírito Santo. Em Expositium in Apocalipsim, De Fiori[24] discorre sobre a sua compreensão das divisões em eras a partir do modelo da trindade. Na terceira delas, o Espírito Santo anunciaria em voz alta:

“O pai e o filho trabalharam até hoje, e agora é a minha vez!” [25]:

O Tempo do Divino seria assim um tempo de abundância, alegria, liberdade, contemplação, amor universal, respeito às crianças e aos velhos, um tempo de luz, de perfeição no entendimento, tempo de amizade.

A difusão da idéia do primado do Espírito Santo sobre as outras pessoas da trindade, reflete a compreensão deste terceiro tempo como um tempo de comunicação direta com Deus através do Espírito Santo, alijando a igreja e os padres de seu papel de intermediários. De Fiori teve que responder várias vezes ao santo ofício por suas idéias consideradas heréticas, de conteúdo finalista e messiânico, mas sua obra continua associada à possibilidade e anseio de comunicação direta com a divindade.

Eduardo Etzel[26] em seu trabalho dedicado à iconografia do Divino se apóia na Chamber’s Encyclopedia. Segundo essa publicação, Pentecostes é estreitamente relacionado à religião hebraica, e relata que o termo hebreu shavuót[27] refere-se ao festival que começa 50 dias depois da Páscoa e marca o fim da colheita de trigo. Os hebreus comemoravam a colheita no dia santo que a tradição atribuía ser o dia da chegada dos Dez Mandamentos ou o dia do estabelecimento da Aliança de Deus como povo judeu, ou o dia de Pentecostes segundo o novo testamento. 

A Bíblia relata outro momento que se relaciona a essa aliança, que é o da libertação do povo judeu da escravidão no Egito liderada por Aarão, ou Moisés. Essa tem sua grande expressão na passagem dos hebreus pelo Mar Vermelho, a cujas águas, Deus - cumprindo sua parte na aliança -, ordenou que se abrissem dando passagem ao povo judeu, e se fechassem sobre os soldados egípcios que os perseguiam. Esta passagem[28] encontra-se na forma de um fragmento de canto considerado um dos mais antigos[29] da Bíblia.

“... Lançou ao mar cavalos e cavaleiros...”

matando os soldados egípcios que os perseguiam, e em seguida;

“Míriam, irmã de Aarão, pegou num tambor e todas as mulheres foram atrás dela com tambores formando coros”

Esse fragmento de canto traz uma importante referência; são as mulheres que, tocando os tambores e cantando, celebravam o sucesso da travessia e a libertação da escravidão, atribuída à Aliança com Deus.  Segundo o teólogo Rafael Rodrigues da Silva, sua relação com a música e a religião na cultura hebraica era estreita e relacionada ao papel que, como mulheres, desempenhavam na sua sociedade nessa época.

A Aliança seria lembrada e renovada anualmente com ceias coletivas. Alguns livros do Antigo Testamento (Números 28; 26-31, Deuteronômio 16; 9-12) trazem as instruções de Deus para estas oferendas. Delas deveria fazer parte à carne dos animais sacrificados e pão recém assado, feito de flor de farinha amassada com azeite, exalando “cheiro suavíssimo” para o Senhor...

Interessante notar que se constitui de pão e carne, o bodo, as esmolas rituais, distribuídas aos pobres e idosos por ocasião da festa do Divino em Alcântara. Do mesmo modo, muitas casas de festa em São Luís mantêm este cardápio no momento da distribuição de alimentos aos pobres, chamados de esmolas uma das partes da seqüência ritual do festejo.

Destaque-se que em hebraico o conceito de justiça, se relaciona com o de caridade. Tsideqah tem o sentido de ação reta, justa, caridade, misericórdia. E Tsedaqah, em aramaico, a língua falada no interior das casas, dialeto, com muitas variações dadas pelos diferentes grupos étnicos que a falam, tem o sentido de justiça, inocência, honestidade. É justo aquele que compartilha seu alimento com quem precisa.

No Vídeo Em Nome do Espírito Santo[30] há imagens das festas realizadas nos Açores e das enormes mesas postas para centenas de pessoas que participam da ceia coletiva constituída de sopa de carne - a sopa do Espírito Santo - servida com pão e vinho e oferecida aos participantes dos festejos do Divino.

Em Notas sobre a vida rural da Ilha Terceira[31] descreve-se a festa do Divino na Ilha Terceira dos Açores de forma semelhante à que se praticava no continente. O artigo alude à proibição desse culto, no continente, um século depois de seu início, mas o mesmo teria imigrado, e ganho força e longevidade nas Ilhas onde a grande festa acontece no domingo de Pentecostes, embora possa também ser realizada no domingo da Trindade.

 

Modalidades do sagrado

 

A popularidade e a manutenção desse culto na região do Arquipélago dos Açores e Ilhas de Cabo Verde, regiões sempre ameaçadas por erupções vulcânicas, se justificariam, segundo a Revista Luzitana, pela associação do fogo do Divino ao fogo dos vulcões presentes em grande número na região.

Essa associação teria sido construída e reiterada por numerosos relatos de devotos nos quais se diz que as preces ao Espírito Santo teriam, por muitas vezes, desviado as correntes de lava que se dirigiam para os povoados. Desse modo, teríamos aí uma atribuição ao Divino como protetor no caso de catástrofes.

O autor do texto abaixo, publicado na A Revista Luzitana, ressalta que;

“ainda que tenha havido transformações com o passar dos tempos, muito se conserva no culto popular do Espírito Santo (aliás, profundamente cristão no seu espírito) que se possa considerar como sobrevivência pagã o que lhe dá o cunho original que sempre tem tido.”

O artigo não esclarece o que seria a sobrevivência pagã, mas, pode-se pressupor que se refere às modalidades do sagrado ligadas ao culto do Divino.

Outro artigo, também publicado em A Revista Luzitana, O bodo do Divino na localidade de Sant’Iago de Cacem[32], há uma descrição da festa com especial atenção para o que a pessoa autora do texto denomina “costume antigo” de se untar partes do corpo com o sangue fresco das vacas mortas para o bodo, objetivo de curar ou prevenir doenças.

“No local que serve para matadouro das vacas, destinadas para o bodo do Divino Espírito Santo, reúne-se quase toda a gente que tem qualquer sofrimento, munida de sua tigela, panela, púcaro etc, etc, para encher do sangue das vacas, e logo que o obtêm começam a untar o lugar onde existe o padecimento, e mesmo outros onde não existe com o fim de não aparecer no sítio untado mal algum”.

O destaque dos trechos dos artigos citados traz para essa discussão a presença das diferentes modalidades do sagrado, das hierofanias reveladas no culto do Divino. Algumas delas pouco abertas, só parcialmente, e de maneira mais ou menos cifrada, revelam a sacralidade que incorporam ou simbolizam.

Mircea Eliade[33] entende que as cantigas, os objetos, os símbolos, significados, ritos, etc são hierofanias, e apoiando-nos nessa compreensão podemos olhar para os elementos constituintes do universo do Divino. As hierofanias manifestam as modalidades do sagrado relacionadas à celebração na qual se encontram, são históricas e assim devem ser compreendidas. Em sua dimensão de documentos.

Eliade considera que o fato de uma hierofania ser produzida sempre em situações determinadas, portanto históricas, “não destrói sua ecumenicidade, o que pode ser observado nas religiões, nas tradições populares do mundo inteiro, nas metafísicas, nas místicas arcaicas para não falar na iconográfica e arte populares”[34].

Os objetos considerados hierofanias ultrapassam sua condição normal de objetos. São escolhidos por seus significados, pressupõem a existência de um sistema, e, de uma separação do objeto hierofânico do mundo ao seu redor;

“sagrado é qualquer coisa de diferente do meio cósmico circundante, e que à semelhança do objeto, o sagrado está de maneira absoluta, invulnerável ou estática, subtraído ao devir”. Resume dizendo que “o que revelam todas as hierofanias, até as mais elementares, é essa paradoxal coincidência de sagrado e profano, do ser e do não ser, do absoluto e do relativo, do eterno e do devir”. E mais adiante, “o que é paradoxal o que é ininteligível, não é o fato da manifestação do sagrado nas pedras ou nas árvores, mas o próprio fato de ele se manifestar, e por conseqüência de se limitar e se tornar relativo”.

Considero que essas hierofanias foram selecionadas pelos costumes e mantidas com seu significado, num conjunto articulado para os seus devotos, e não como sobrevivências de práticas pertencentes a uma estrutura religiosa que o cristianismo denomina paganismo.

O sagrado nos cultos do Divino manifesta-se nas Caixas, nas baquetas com as quais são tocadas, no Mastro, na Bandeira - o estandarte do Divino - na Santa Crôa, na Pomba, no Cetro, na Coroa, no Capote...  todos símbolos da realeza, do inefável, que se amplia pela continuidade do Culto, e se perpetua a cada festejo, a cada encenação.

No Maranhão a Festa do Divino em suas repetições anuais - os festejos - têm grande popularidade e são realizadas principalmente em um grande número de terreiros de cultos afro-brasileiros; Tambor de Mina, Umbanda e Candomblé. Algumas cidades e povoados como Alcântara, Paço do Lumiar, Periá e antigamente Icatu, a celebram como festas públicas que envolvem grande parte do espaço da cidade com seus cortejos e visita ao Império . Há também em menor número, festejos fora desse universo.

A festa mantém e reatualiza os significados destas hierofanias sempre. Por exemplo; o sacrifício de animais tem seus sentidos transformados com a dinâmica social.  Em Alcântara, o bodo é constituído de pão e carne dos animais que participam de uma parte da cerimônia conhecida como a subida do boi, um cortejo no qual o animal de cada um dos festeiros é enfeitado com fitas de papel crepom e mostrado pelas ruas da cidade. Mas, em outras Casas de festa em São Luís, as esmolas podem ser uma cesta básica com maior variedade de alimentos, sem a  realização de sacrifícios.

D. Celeste, responsável pela festa na Casa das Minas[35], decidiu nos últimos anos comprar a carne para a comida da festa e para as esmolas, no açougue. Em sua opinião, isso tem atendido perfeitamente as exigências da esmola aos pobres. Ela alega que matar um boi é muito trabalhoso, faz muita sujeira e desse processo sobram muitos ossos, que se estragam, e ela  não tem como conservá-los. Prefere comprar a quantidade de carne necessária e, em sua compreensão, não está rompendo uma regra ritual.

Por outro lado, há festas realizadas em Terreiros de Candomblé, como a Casa Fanti Ashanti, onde o sacrifício de animais é uma das modalidades do sagrado comumente praticadas, e que dialoga com o Festejo do Divino de forma particular. O sacrifício do boi para a festa e as esmolas, é associado ao ritual do candomblé, e conta com a presença dos Orixás e Erês.

Na Festa no Ilê D´Ogum e Oxaguian, dirigido por Nhô Zico em São José do Ribamar[36], a matança do boi é um ritual conduzido pela Caixeira Dona Marcelina que toca a caixa e canta, conduzindo o trabalho do magarefe[37], indicando a ele todos os passos para a morte e divisão das partes do corpo do animal. As outras Caixeiras tocam  e cantam.

São muitas festas e muitas formas de compreender a relação entre o Divino presente durante a festa nos terreiros, e o Espírito Santo pessoa da Trindade Divina, uma divindade universal.

Há um trecho muito espirituoso, extraído do livro de Moisés Espírito Santo[38], que relato aqui, e que se contrapõe ao que costumeiramente se observa no Maranhão.

“O Espírito Santo dos cultos populares, não é a terceira pessoa da trindade cristã. Frei Bartolomeu dos Mártires deplorava a ignorância dos minhotos, que pensavam cair nas boas graças do bispo, saindo ao seu encontro a gritar; Viva a santíssima trindade que é irmã de Nossa Senhora!”

Segundo o autor, os aldeões da região do Minho, em Portugal, consideram de que a divindade a quem se cultua é uma santa mais importante que as outras, pois é tratada no superlativo e tem um nome feminino Santíssima Trindade...

A existência de uma trindade divina difundida pelo cristianismo costuma ser aceita sem questionamentos. Um dos versos do repertório das Caixeiras  diz;

“Graças a Deus que já sei

O mistério da trindade

São três pessoas divinas

E um só Deus de verdade.”

A reflexão de Eliade apóia essa discussão com elementos que permitem perceber a presença das múltiplas hierofanias no constante diálogo com a noção de um Deus universal, que, ao se manifestar, se relativiza e se transforma em uma forma de divindade disponível para o contato direto.

Essa possibilidade manifesta-se também na noção corrente entre as Caixeiras de que, os suportes materiais dos símbolos, têm sua existência em outras dimensões possíveis de serem contatadas durante o festejo.

Em um dos momentos ritualmente importantes do culto - a Abertura e Fechamento da Tribuna –, a Caixeira Régia convida; desce o alto, desce o alto. O “alto”, uma dimensão inacessível aos seres humanos, pertencente às forças e seres sobre-humanos, aproxima-se a seu convite...

Em seu depoimento, D. Marcelina diz que ao abrir a Tribuna,  ao chamar do alto para a terra os objetos presentes sobre o altar, compreende que não está chamando a eles, mas; “àquele que tá em cima”. Pelo canto das Caixeiras, aqueles objetos sobre o altar incorporam a sua dimensão sutil, tornando-se  depositários do sagrado.

A crença em uma dimensão sutil desses objetos nos permite conhecer um elemento formador do universo no qual as Caixeiras existem e constroem seu conhecimento, seu imaginário, seus sentidos e suas formas de relação com o sagrado.

Essa dimensão se torna compreensível, quando se inclui num conjunto articulado. cerimônias como as de sagração e levantamento do Mastro, os cortejos,  cheirar ou beijar a Pombinha, de enfeitar e carregar a Santa Crôa, a coroação das crianças, a refeição compartilhada, bem como a própria existência das Caixeiras e o seu fazer musical.

Mas, quem é o Divino cultuado nas Festas?

D. Raimunda Soares, antiga Caixeira de Alcântara, conhecida como Raimunda Boró, que em 2000 já tinha vivido 95 anos, responde;

“É aquele que passou aqui, esse é que é o Divino. Este que passou aqui esmolando. Santa Crôa! Tem as Crôa assim e o Divino bem em cima...”

Pergunto a D. Marcelina, uma caixeira experiente, quem é o Divino Espírito Santo, e ela diz;

“Um espírito. É  nosso Deus. Uma das três pessoas da Santíssima Trindade. Os três são Deus, e sobre todas as coisas, o Esprito Santo é Deus. Foi ele que anunciou a vinda do menino a Maria, não foi? Foi por obra dele, mandado pelo pai eterno. Veio em formato de uma pombinha. Porém a primeira vez que ele desceu a Terra; porque Divino Esprito Santo é o fogo; ele veio como fogo. A segunda foi no formato de pomba para anunciar a vinda do menino a Maria”.

Martha Abreu[39] descreve a reação de Thomas Ewbank, um viajante norte-americano ao Rio de Janeiro, no século XIX.

“Ele escrevia uma carta, quando foi chamado por uma senhora para que descesse logo, “depressa”, pois o Espírito Santo estava subindo o Catete.

                     Não quer vê-lo? Perguntou a senhora.

                     Onde?  Retrucou o viajante.

                     Está naquela venda ali e daqui a pouco sairá!

Momentos depois, uma banda de negros emergia, e começava a tocar uma valsa, conclui espantado o viajante.”

O Divino Espírito Santo celebrado nos festejos populares é chamado de Pombinha, de Pomba, tanto no Brasil  quanto nos Açores[40], e em muitos versos, é chamado de Pombo branco.

Com uma forma tão controvertida quanto o seu sexo, o Divino desceu sobre os apóstolos como línguas de fogo e, sobre Jesus Cristo, desceu em forma de pomba, quando de seu batismo por João, o Batista. Com essa forma, pode ser encontrado com as asas abertas, voando, sugerindo movimento, ou com as asas fechadas, esperando em pé sobre a coroa, a Santa Crôa, ou o Mastro, numa postura de quietude. Como nessa quadra do repertório das Caixeiras.

 

Em cima daquela mesa

Tem uma salva redonda

Em cima da mesa é crôa

Em cima da crôa é pomba

Eduardo Etzel, entende que o Espírito Santo com as asas abertas, é a representação do Divino majestoso das igrejas, com o esplendor[41] ou resplendor de raios de luz e/ou línguas de fogo atrás de si. Etzel considera que uma das razões dessa sua associação com o fogo deve-se ao fato de o pombo ser o animal de mais alta temperatura corporal[42]. Nas Bandeiras, é também representado com asas abertas.

A grande popularidade do Divino, no entanto, não se relaciona com nenhum setor da vida ordinária que, como divindade, o Espírito Santo tenha a responsabilidade de proteger, um tema de sua exclusividade para cuidar, ou uma região da qual ele seja padroeiro ou protetor. Seu grande dom, sua grande identidade, relaciona-se à inspiração divina. Carlos Rodrigues Brandão[43] considera que não há um setor especializado para sua intervenção. O Divino pode ser chamado para atender a todos.

Os versos do repertório para sua devoção, em todos os lugares onde é realizada, se constituem, como ressalta Eliade, em um valioso documento para a compreensão e imagem que o Divino tem entre seus devotos e, dessa forma, são compreendidos neste texto.

A Revista Luzitana[44] traz algumas dessas quadras recolhidas em várias regiões de Portugal, em 1940, e aqui reproduzo uma delas; 

Devin’Esprito-Santo

Devino consoladôr

Consolai âi nossas almas

cand’ê deste munde for.

Essa quadra[45], em particular, e as muitas outras do repertório conhecido nos cultos do Divino podem ser encontradas em festas realizadas no Maranhão, onde são cantadas pelas Caixeiras.

Araújo, em 1964, descrevendo a festa em Cunha, no interior de São Paulo, encontrou aí versos semelhantes em forma e conteúdo. Martha Abreu traz vários deles em seu trabalho de investigação do Império do Divino no século XIX no Rio de Janeiro, para citar alguns autores. A bibliografia sobre o Divino  sempre contém versos do repertório dedicado a seu culto que se referem sempre a um Espírito que vive nos céus. Como redentor dos pecados, ele desce dos céus a terra para salvar os pecadores. 

 Sem abdicar de seu status de “divina pessoa”, o Divino pede, agradece e elogia a quem lhe dá esmola. Consolador das dores do cotidiano humano e das almas após a morte, ele   se comunica diretamente com seus devotos.

Espírito Santo é Deus                               Quem é que vem descendo

Ninguém queira duvidar                             Pelo fio do retrós

Em toda parte que chega                           É Divino Esprito Santo

Faz o povo se alegrar                      Pra fazer festa com nós.

 

Convidado a descer a terra “pelo fio do retrós”, não se faz de rogado e festeja alegrando bordadeiras, costureiras e todos os que preparam a festa. Entende e atende a pedidos de voz e paixão para melhor ser celebrado com cantares altos  e fortes. A benção do Espírito Santo é irrestrita e se manifesta a quem participe dos seus festejos, onde se constrói o seu universo de abundância, alegria, respeito aos velhos e às crianças, a renovação da vida dos devotos e das Caixeiras, suas Sacerdotisas. Os laços entre os devotos e o Divino são de grande intimidade.

O culto ao Divino adquire significados coerentes com as realidades dos lugares onde é cultuado. De seu sentido do sagrado, construído socialmente, deriva sua força de coesão, permitindo-lhe afirmar-se junto à comunidade.

A música pela voz das Caixeiras e de seus tambores constroem uma ponte por onde os seres humanos podem passar e chegar à divindade  tornando possível a desconstrução do abismo entre os seres humanos e ela. Sua música mantém o tempo/espaço  sagrados criados pela festa.

A sacralidade coletivamente atribuída ao Divino não se reconhece na contrição, no silêncio da meditação solitária, na ascese, mas sim, no entusiasmo coletivo dos participantes da festa, na renovação da vida que esta comunhão permite. Caixeiras, Impérios, famílias, amigos, são todos devotos e, nesta condição, foliôas, e foliões.

Outro ponto da construção coletiva do significante envolve o ato de compartilhar refeições durante os dias da Festa, distinguindo-se abertamente da celebração de Pentecostes na igreja, católica, onde o ritual é conduzido pelo padre que come e bebe sozinho na presença de todos. Uma estrutura leiga, independente, é permanentemente organizada, e durante a festa, a população corteja o poder exercido com prodigalidade pelo Império que se manifesta em banquetes e mesas de doces de grande  dimensão, possível apenas durante a Festa do Divino. As crianças representantes do Império e as Caixeiras. são servidas antes de todos, em uma festa na qual todas as pessoas presentes serão servidas, compartilharão dos bens e da abundância dada pela comunidade da festa ao Divino que a redistribui.  Uma comilança, sempre...

A Festa do Divino se separa da ortodoxia canônica da Igreja. A relação entre as promessas e a dimensão das ofertas lança luz sobre as regras e a possibilidade de negociação: um grande pedido atendido requer um grande agrado para o Divino; a cura de graves problemas de saúde pode significar empenho para ocupar na festa, um cargo de grande responsabilidade e capacidade de articulação política e de obtenção de recursos humanos e financeiros, como os cargos de Imperatriz ou Imperador, Mordoma ou Mordomo. Mas deve-se lembrar que tudo o que recebe dos devotos como donativo, os festeiros, - os organizadores da festa, - devem redistribuir na forma de refeições ou de mesas de doces para os visitantes, e na forma de esmolas rituais para os pobres e/ou idosos. Graves castigos esperam quem retém privadamente, o que o Divino recebeu para ser compartilhado.

Essa crença se liga a uma atitude emocional, a uma forma íntima e direta de se dirigir e se relacionar com a divindade. Essa atitude, construída e compartilhada com o grupo social, constrói e sedimenta o universo no qual se realiza o culto. O ato de compartilhar sai da condição de conceito e passa a incorporar o olhar de cada devoto, ampliando-o de modo que cada qual cuida para que a partilha exista, e critique abertamente quando não acontece.

 

O feminino ou quem pode tocar para o Divino?

 

Ressalte-se que nos festejos do Divino - onde quer que se realizem -, onde há tocadores de caixa, esses são homens., mas no Maranhão as Caixeiras tocam os instrumentos e cantam. Elas são a única experiência conhecida de mulheres conduzindo o culto do Divino em particular, e uma raridade se observarmos a presença de mulheres na condução de rituais religiosos tocando tambores. Na tradição afro-brasileira, as Zeladoras de Santo cantam e tocam Adjás[46] e nunca instrumentos de couro, os tambores.

Priscila Ermel[47] lembra que a palavra do tambor existe a partir do momento em que existe um ritmo organizado. O ritmo dá sentido. Quem diz "ritmo", diz, "ordem e lei", Quem toca o tambor, portanto, conduz.

Tocar caixa nos cultos do Divino no Maranhão, é uma função com um caráter profundamente feminino. O senso comum considera “feio” para um homem “botar uma caixa no ombro e sair pelas ruas”. Exceção feita aos Foliões da Divindade, que tocam em rituais onde o Divino está em seu papel de consolador na morte. Ali é rara a presença de mulheres.

O conhecimento musical e ritual das Caixeiras e sua forma de transmissão, transcendem a dimensão que os liga ao rito, constroem  relações sociais, engendram  um  corpus de Caixeiras. Um grupo restrito com regras próprias para reconhecimento, desafio, inclusão e rejeição de suas participantes. Uma irmandade não formalmente constituída, mas cujo código de conduta, e exigências do conhecimento de suas participantes, é claro, difundido e respeitado.

Um cronista chamado Servácio, publicou no jornal O Estado do Maranhão, em 11 de maio de 1882, uma matéria falando da sua visita à festa e da presença das Caixeiras na festa em Alcântara. Seu relato permite entrever por onde passou o processo da construção de seu lugar como Sacerdotisas.

“... é desolador o espetáculo que apresenta aquela cidade com seus templos em ruínas, e só conhecidos como bons, pelas formas exteriores. Na edificação ordinária, grandes desfalques por terem se arrasado também grande número de casas, muitas abandonadas, algumas em véspera de um desmoronamento e para agravar a vista desse espetáculo, andavam já pelas ruas as caixeiras da festa, ou grupos de mulheres lampeiramente vestidas, rufando em caixas, num tom monótono e triste, ao som de um canto sentimental como se cantassem as ruínas de Tróia ou se avivasse à memória dos visitantes, o finito das cousas desse mundo! São as mordomas que percorrem as ruas em visitas, entrando em casas onde estão eretos altares, e perante os quais fazem um bailado fetichista, com requebros e meneios de umas bandeirolas confiadas a duas pequenas a que vêm já apontando os seios, e faz vênias a uma personagem vestida em trajes de corte ali sentada em que se brilham ouropéis, dando idéia de uma entidade inviolável em sua poltrona espaldar, uma espécie de príncipe da casa de Sabat a receber os emboras da turba.”

A grande força social de sua experiência manteve-as vivas e presentes até o século XXI e nos faz uma pergunta: se a tradição mantém aquilo que tem ressonância para o tecido social, porque permanecem no Maranhão, o Culto do Divino e suas Sacerdotisas, as Caixeiras? Ou dito de outra maneira. Que ressonância tem, para o tecido social, a experiência de mulheres - em sua maioria - pobres, afrodescendentes, e com idades freqüentemente superiores há cinqüenta anos?

A Missão de Pesquisas Folclóricas da Prefeitura Municipal de São Paulo idealizada por Mário de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura da Cidade, esteve no Maranhão, em São Luís, de 15 a 21 de julho de 1938, conheceu a música do Tambor de Mina na Casa das Minas, importante e tradicional terreiro, e não faz nenhuma referência á festa do Divino, a festa grande da Casa. A missão foi um lugar de excelência que resistiu às mulheres.

Em sua etnografia da Casa das Minas, Sérgio F. Ferretti, discute o calendário religioso da Casa, descreve a festa do Divino Espírito Santo, e ressalta a presença das Caixeiras.

 

“... são mulheres idosas que tocam tambores ou caixas para saudar o Império e o mastro e constituem elementos fundamentais da festa. (...) As caixeiras costumam ser em três, ou múltiplo de três”.

Carlos de Lima descreve a festa de Alcântara como seu freqüentador desde 1961. Num tom de crônica; “fruto de muitas observações, composto de flashes de várias festas, registro de outras tantas situações”. Ele relata a seqüência dos rituais que a compõem, e traz à tona, um pouco do clima das Folias do Divino, no passado, quando se percorriam grandes distâncias, recolhendo jóias e donativos para a festa e descreve-as;

“... são quase sempre lavadeiras que pouco trabalham pelo ofício visto que as funções do Divino só lhes deixam livres três meses por ano. Geralmente idosas, causa admiração sua resistência á fadiga, nas longas caminhadas e constantes vigílias de festa, além dos inevitáveis ataques de maleita.”

O autor considera ofício ou trabalho, àquele que, ao ocupar três meses por ano, se vincula às regras do mercado no qual se recebe pagamento pelo trabalho realizado. Mas deve-se destacar que as Caixeiras de Alcântara tiveram um importante papel na realização e permanência da Festa. Com as folias do Divino viajavam a pé durante nove meses por ano em média, “tirando jóia” para a Santa Crôa. Apoiavam materialmente a festa, e não menos importante, o fortalecimento das relações entre o Divino e seus devotos que vivem distantes da sede[48]. Como Sacerdotisas distribuíam - durante as folias - bênçãos a quem o respeita, e maldições a quem zomba dele e das práticas que envolvem seu culto.

A compreensão do seu trabalho exclusivamente como uma função assalariada e compartimentada em tempo e lugar, não dá conta do universo no qual elas circulam e existem. Tocam caixa por devoção e, nesse processo, trabalham. Nesse trabalho constroem sua identidade. Seu ganho - o agrado – é importante para sua sobrevivência, e a de sua família e sua identidade está estreitamente associada á de Caixeiras...

- Onde mora dona Margarida?

- A Caixeira? É naquela casa ali...

A procura por referências à presença de Caixeiras, me levou até os foliões que tocam nas Festas do Divino nos Açores e Ilhas de Cabo Verde. 

Moisés Espírito Santo relata que vários autores associam as folias para pedir jóia para a Santa Crôa e os foliões que dela participam, aos personagens presentes em rituais pagãos; as Bufônias na Grécia antiga, ou as confrarias de fratricelli e mendicantes, ou ainda aos grupos extáticos - movidos pelo êxtase, - encontrados no Livro de Samuel na Bíblia. Esses “atuavam manipulados pelo espírito de Deus” através da música e da dança, e cujo objetivo era apelar em favor da chuva e da agricultura, contra a fome-peste-guerra. Santo associa a existência dos “loucos do espírito” ao profetismo popular, e lhe dedica extensa reflexão.

Uma outra referencia vem do trabalho de Ernesto Veiga de Oliveira sobre os Instrumentos musicais cerimoniais presentes nas folias do Divino nos Açores. Oliveira cita um texto de Silva Ribeiro que no Séc. XVII se espanta com a presença de mulheres no culto.

“...E também na Horta, curiosamente, no convento de freiras de S. João, á frente do cortejo que dava a volta aos claustros e entrava na igreja, figuravam cinco folians , uma com a bandeira, outra com o tambor e as demais com pandeiros.”

Esta referencia as folians, ou foliôas, no culto do Divino nos Açores, é uma evidência da presença antiga das mulheres no culto trazido para o Maranhão junto com a festa.

Um verso das Alvoradas recolhido em 1903 na Ilha das Flores relata a presença de mulheres. Várias quadras com estrutura de Romance eram cantadas nas ruas durante as Mudanças ou Peditórios de Irmandade (jóias), Reproduzo aqui uma delas:

Fui eu ter com El-Rei

Que m’as mandou pagar,

El-Rei por ser eu mulher,

Não me quis escutar...

Simões também se refere à presença de mulheres no momento das  Alumiações  - rituais de acender velas iluminando o Trono ou Altar nos Açores, durante todos os sábados que precedem as sete domingas.

 “São as mulheres e raparigas quem canta nas Alumiações, convidando-se para regente aquela que melhor sabe improvisar. Saúdam  aos visitantes por meio de cantigas, principalmente ás pessoas de distinção. As pessoas honradas com esses cumprimentos, fazem ofertas em dinheiro, que ás vezes é destinado às luzes da Coroa, ou às próprias cantoras.”

Ressalta que nos Açores se os foliões cantam, o produto da cantoria se reverte em seu exclusivo proveito, mas se o fazem as mulheres, todo o dinheiro é lançado na taça da coroa, depois de “novas quadras de elogio e gratidão”. Os homens recebam seu ganho depois de “botarem versos”, e as mulheres em posição subalterna à sua devoção, devolvem o que receberam.

O autor não faz referência à presença de instrumentos musicais tocados por essas mulheres e, desse modo, o ponto de contato com as Caixeiras se concentra em seu canto e sua capacidade de improviso poético, atributos que definem a Regente do grupo citado e, no Maranhão, as Caixeiras em geral e a Caixeira Régia em particular.

Há uma hierarquia entre as Caixeiras de um mesmo grupo em uma mesma festa. A responsável pela condução do ritual é a Caixeira Régia, ajudada pela Caixeira Mór que a apóia e se necessário, substitui. As outras, ajudam, mas em outras festas,  podem ter cargos.

De maneira semelhante às mulheres citadas por Simões, o que quer que ganhem participando da festa,  recebe o nome de agrado, raramente são pagas pela sua função de condução do ritual.

A estrutura poética dos versos tem nas quadras, com rimas no segundo e quarto versos, a métrica para a criação da linguagem do discurso devocional. Nas festas realizadas no Maranhão, as Caixeiras cantam, dialogando com os donos da festa e os visitantes, através de improvisos freqüentemente bem humorados...


 

Festeiro de Esprito Santo

Eu não posso mais cantar

Tenha dó de sua Caixeira

Me dê ao menos um guaraná

 

Eu não gosto de cerveja

Eu não gosto de licor

Só tomo coca-cola

Morena da minha cor.


 

As Caixeiras presentes à festa da Casa Fanti Ashanti em 2001, botaram esses versos e, é claro, foram atendidas recebendo refrigerantes numa hora de grande calor.

São Caixeiras porque tocam caixas; instrumentos musicais de percussão da família dos membranofones, e tocados com baquetas.  Encontram-se referências antigas a esse instrumento e, embora tenha sido mantida sua estrutura organológica original suas origens, são indefinidas.

Usados como tambores militares, foram incorporados a várias danças tradicionais por povos europeus, mediterrânicos, e no Brasil estão presentes em muitas brincadeiras e cortejos devocionais.

As Caixas são tambores cilíndricos com um diâmetro em média de 30 a 35 cm e altura de  40 a 45 cm. Mas essas medidas são apenas uma referência da dimensão das caixas usadas no festejo do Divino. Encontram-se Caixas maiores e com outras proporções. Costumam ser pintadas. Às vezes com os símbolos do Divino - a Coroa e a Pomba -, ou com uma só cor viva ou com várias cores em listas, triângulos ou losangos.

É comum que Caixeiras antigas e famosas não possuam seu próprio instrumento e toquem naqueles pertencentes ä casa onde se realiza a  Festa. Outras, constroem seu instrumento com ajuda dos filhos, amigos ou amigas, e mais raramente compram. Estabelecem uma relação de identidade com o seu instrumento que costumam ser batizados e nomeados. Relação que se ressalta quando sua confiança e memória se expandem ao tocar a Caixa. Há quem não consiga improvisar ou se lembrar das seqüências dos versos, sem tocá-las.

Uma cena interessante; uma Caixeira Régia chegava para a festa e a porta principal da casa ainda estava fechada. Lá dentro preparavam o espaço para a festa, mas ela bateu na porta dizendo:

“Abram esta porta! Minha Caixa não entra pela porta dos fundos!”

Para essas mulheres, tocar instrumentos de couro se restringe a essa festa, e a esse instrumento. Essa não é uma função que exerçam nas Casas ou Terreiros que costumam freqüentar, como nos esclarece as palavras de Ferretti:

“Na Casa das Minas, os instrumentos de acompanhamento dos toques, como o ferro e as cabaças, são tocados por mulheres e os tambores por homens, sendo esta a única função masculina. (...) algumas mulheres dançantes também tocam os tambores na ausência dos tocadores. Trata-se portanto de um culto eminentemente feminino e muito tradicional.”

As características de “eminentemente feminino e muito tradicional” do culto da Casa das Minas,  permitem que ocasionalmente as mulheres da Casa possam substituir os tocadores de tambor em sua função.

Otávio Costa Eduardo  ao analisar o papel de grande prestígio da relação que se estabelece  entre os tocadores dos tambores, que ele denomina atabaques, e as casas de culto no Maranhão, destaca que;

“manipulando um instrumento com dotes tão sagrados, o tocador não se limita a produzir sons. Desempenha igualmente funções propiciatórias ligadas a atribuições mágico religiosas”.

O fato de tocar um instrumento sagrado, e não apenas o som que se produz ao tocá-lo, é, no entender de Costa Eduardo, parte do conjunto do desempenho de funções propiciatórias.

Mas se as mulheres que sabem toca-los, podem faze-lo na ausência dos tocadores, e realizar o rito do mesmo modo, entende-se que o som produzido - a música do tambor,-  é que é responsável pelas “funções propiciatórias ligadas a atribuições mágico religiosas” e não os próprios tocadores dos tambores.

Visto desse modo se as mulheres não tocam cotidianamente é por interdições de natureza simbólica, alinhadas a posições culturalmente construídas, com grande ressonância social, pois só muito lentamente cedem espaço para a  transformação.

Tocar caixa no Maranhão está profundamente associado ao que socialmente se considera  feminino e é também compreendido como tarefa de mulheres. Ao tocar  as Caixeiras não usam  calças compridas. Tocam de saias.

Muitos depoimentos fazem referências à existência de homens que tocam ou gostariam de tocar, e que dizem das dificuldades e interdições limitando sua participação. É senso comum, nesse universo do Culto ao Divino, a idéia de que os homens que tocam Caixa são homossexuais, o que é considerado ofensivo. Uma interdição social  de caráter sexual. Há dificuldades na nomeação. A palavra caixeiro parece soar entre aspas ao ser usada para nomear homens que tocam caixa na Festa do Divino.

D. Mônica, Caixeira antiga em Alcântara em seu depoimento, diz;

“Tem home que toca... Home num toca caixa porque se home bota caixa no ombro pra tocá, o povo já vão dizendo que ele num é home. Que ele é... num fartando com o respeito ...é gay. Nós temos um amigo aqui que  prá tocá caixa e cantá é uma beleza. Acumpanha nós na rua quando tamos esmolando e a gente até gosta mesmo porque ele acumpanha e é muito”.

É perceptível no depoimento a contradição entre os valores moralmente aceitos pela sociedade e sua vivência ao lado de uma pessoa que toca e canta bem, ajuda-as a cantar e tocar nos longos trajetos, mas, por ser um homem, não tem a sua presença legitimada  pela comunidade. Outra Caixeira dá a sua versão desta interdição;

“Tem homem que toca caixa. Mas homem pra tocar caixa tem que ser  homem sério, porque dos outros os moleques ficam tomando gosto, né? Por isso muitos nem tocam. Mas tem homem que toca. ...seu Euclides toca caixa. Ele toca na casa dele. Lá uma vez ou outra, ele toca na casa dos outros! Lá uma vez ou outra!... mas não toca toda hora, tem a hora que ele toca. Tinha um senhor ali, o seu Rufino, já morreu, mas também tocava na casa dele”. 

 ... mas esses homem que é mariquinha, logo eles quer tocar, mas fica aquele bando de moleques tomando gosto, e por isso a gente corta estas intimidades. Pode ser colega, mas não dá caixa. Mesmo que cante um verso a gente acompanha mas não quer que ele toque a caixa. Porque fica fazendo cesso, e mulecada... então... é uma coisa séria, não é mulecagem, por isso os homens quase a gente não aprecia tocando caixa.”

Para a festa nessa Casa chegaram homens que cantam,  tocam, e conhecem o ritual e suas regras.  Assim que foi possível,  um deles cantou uma cantiga e, como de costume,  todas as Caixeiras presentes à roda responderam. Terminada a roda, pararam de botar versos naquela cantiga, e  Caixeira Régia botou outra. Ele foi tratado com respeito, pois reconhecidamente conhece o ritual. É Caixeiro Régio de uma festa respeitada, um dos raros casos em que um homem conduz um ritual do Divino no Maranhão. Mas foi tratado com frieza, e não lhe deram Caixa para tocar, num sinal evidente de  limite para sua participação.

Em entrevista com  Euclides Menezes, perguntei se ele percebia uma interdição social da caixa para os homens. Sua resposta;

“é uma forma delas falarem mas é uma questão de  preconceito. É tão normal um homem pegar uma caixa... Não porque eu toco, mas não sou gay, e tem um monte de homem que toca e não é gay!  Pro lado do Piauí, na Pedreira, é muito forte esse lado de homem que toca e os caras não são gay. Isto é uma questão delas! (...) Isto já vem mais por causa da tradição. No início era sempre mais mulheres, não   tinha homem, e na verdade quando aparecia algum deles eram gay. Pelo menos eu conheci Isídio, que era dono de festa de santo na Baixinha. Adegar não sei se era dono de festa, mas também tocava por onde ele chegava. Tinha Zé Minina que era ali do  bairro da  Belira, que fazia festa, e era muita gente. Esses eram gay, mas tinha Laurencinho que fazia festa, tinha uma mulher e um monte de filha, e as filhas dele todas tocam caixa. Deve ter outros que fazem festa e que não são”.

O reconhecimento de que “Isto já vem mais por causa da tradição. No início era sempre mais mulheres, não tinha homem” evidencia a existência de um espaço de mulheres. Um costume legitimado por uma prática continuada.

Os homens que tocam próximo ao estado do Piauí, nas regiões dos municípios de Caxias, de Codó, aos quais se refere Euclides Menezes, são chamados  Foliões da DivindadeSão homens que tocam caixas para o Divino. Esses Foliões cumprem uma das funções atribuídas ao Divino: a de consolador na morte. Eles tocam em duplas e seu estandarte é uma bandeira vermelha com um círculo azul marinho ou preto ao centro. Dentro deste círculo, a imagem símbolo do Divino Espírito Santo: o pombo branco de asas abertas, voando, e ao seu redor, três estrelas também brancas.

Eles fazem visitas de cova, vão aos cemitérios no dia de Finados ou em aniversários de morte, acompanham enterros. Sua presença e seu canto têm uma estreita relação com os mortos e o consolo da sua solidão. Em seu ritual de  visita, colocam a coroa do Divino sobre a sepultura, na direção da cabeça da pessoa enterrada e, cantando e improvisando versos, tocam Caixa, e lhe dão notícias e transmitem-lhe mensagens de seus parentes vivos, ressaltando como lamentam a sua falta.

Cantam e tocam células rítmicas – toques - semelhantes aos das Caixeiras, e é comum a presença de violões compondo o grupo de foliões. Seu  repertório de poemas é específico e associado á sua função. Um exemplo:

 


 

Divino vem avoando

Mas ele vem visitar

Vem visitar sua cova

E num vai mais voltar

 

Quem mora no cemitério

Cadê a dor desengano

Onde só tem visita

Uma vez  a cada ano

 

Não chore maria não chore

Consola teu coração

Porque é chegada  a hora

Da nossa separação

 

Companheiro da minha alma

Pede a jesus nas altura

Venha ver a sua esposa

Chorando na sepultura

 

Costumam andar por seis meses  recolhendo jóias. Em suas festas não há Império, mas a pessoa que os recebe em casa, patrocina o café da noite e lhes dá pouso, - a noitante, -  costuma receber o nome de Imperadeira.

D. Evarista, Caixeira Mór da festa da casa de Nhô Zico em São José de Ribamar,  relata que no início de seu aprendizado, tocou em uma festa cuja Caixeira Régia tinha o costume de cantar para os mortos quando algum cortejo passava em frente a um cemitério, ou se encontrava com algum enterro.

“ quando a gente passava, a gente tinha que tocar e cantar pras almas, cada uma de nós dizia um verso, e continuava nossa viagem. Hoje num se faz mais isso. Eu, nessa mania que tinha assim de cemitério, sempre quando vamos prá igreja e a gente vem e passa ali no cemitério, sempre eu gosto de botar uns versos, mas o pessoal é difícil. Hoje num faz mais isso. Num sei porque. Antigamente quem ia passar no cemitério e num tocava, o povo até falava...”

O grupo de Caixeiras dialoga com as  estruturas da festa e a relação com as(os) donas(os) de festas, fundamenta uma relação que inclui agrados e compromissos.  As Casas precisam garantir que haverá Caixeiras tocando em sua festa, e lhes oferecem cortes de pano, o dinheiro para o transporte, alimento de boa qualidade durante a festa o que pode incluir a hospedagem, ou um lugar com ganchos para pendurar sua rede. As Caixeiras oferecem seu conhecimento para conduzir ritualmente o Culto festivo.

Terminada a festa, espera-se que a(o) dona(no) compartilhe com as Caixeiras como parte do agrado, o que a festa recebeu e não utilizou. Farinha para bolos, ovos, refrigerantes, vinho, arroz, feijão, óleo, etc. “O Divino recebe esmola e dá esmola”.

Margarida, Caixeira Mor de Alcântara, dá sua versão do que considera importante nesta relação:

“...eu num me incomodo das pessoas me darem um par de chinelos, de me darem um vestido, mas o que me comove é daqueles festeiros me tratarem bem. Me tratou bem, tá tudo bem. Mas então, era como neste tempo! A minha vó, a minha tia, era muito bem tratada. O direito delas era  tão grande que elas chegavam aqui, e aí chegava;  filho, filha, neto, sobrinho... elas iam lá onde os festeiros e dizia:- Olhe eu tenho tantas pessoas aqui!  Era prá servir uma bebida, um café, uma coisa qualquer...

Porque eles nem eram tratadas com luxo do corpo entendeu? A minha vó eles ganhavam era um vestido,  ou de domingo do meio, ou de quinta feira ou de domingo do Esprito Santo, mas dois, era elas que compravam, o calçado era elas que compravam.

Mas eu sou uma mulher contente. Eu cheguei aqui e lhe apresentei e disse: - ela está nos acompanhando e passaram a lhe servir, e isto prá mim é uma coisa muito importante!

A fala de Margarida considera a  inclusão de sua família e seus amigos no agrado, como o reconhecimento de sua importância pelos donos de festa.

O respeito, tornado transparente e visível em sua dimensão material nos alimentos, bebidas, vestidos, não tem o significado de compensação imediata, como ocorre com o pagamento. Seria reduzir sua função de Sacerdotisa à forma de uma relação empregatícia. Essa qualidade de compensação material à qual Margarida se refere, reveste-se de nobreza, de sutileza, e é o reconhecimento da sua importância e dos seus espaços de autonomia. 

Um acontecimento durante a festa em Alcântara ilustra essa discussão. As Caixeiras saíram por volta das 8:30 e voltaram ás 14:00. Esmolando sob sol forte e calor intenso, andando, tocando, cantando pela cidade  recolhendo  jóias (menores a cada ano). Elas comentam que “tem muita gente virando crente e eles não gostam de festas” e, por isso, fecham suas casas para a Bandeira do Divino assim que ouvem o som do batuque ou da banda de música que as acompanha.

Iriam sair novamente à noite acompanhando o Império para a igreja.

Ao chegar, não foram imediatamente almoçar: o cansaço e o calor forte  não deixam aparecer à fome. Esperaram algum tempo até que seus corpos esfriassem enquanto descansavam por ali sentadas. Este é um dos cuidados com sua saúde. Nas palavras de Margarida;

“...se eu chego com fome na sua festa mas de qualquer maneira venho de lhe fazer um serviço, venho de trabalhar pra você, e eu vejo que estou cansada, to com calor, não posso me sentar na mesa naquele momento, e tô com outro trabalho já na frente pra ir fazer, você tem o direito de dizer a seus cozinheiros pra me entregar (a comida) e eu dou um jeito de levar pra minha casa...Porque eu tenho direito de chegá, tirá minha roupa um pouquinho, pegá um vento, tomo banho, descanso um  pouco, prá mim almoçar. Aí sim!

Agora, se eu chego cansada com calor, você põe comida prá eu comer, e eu como e saio prá casa, o que é que eu vou conseguir? Uma doença pra mim, e uma alegria pra você!”“.

Uma das Caixeiras não havia sido autorizada a levar a sua comida para casa para se alimentar na hora que quisesse, ou mesmo para dividi-la com sua família, caso escolhesse este caminho. Transparece aqui, o conflito surdo, pois essa atitude foi recebida como um desrespeito á sua autonomia para  escolher a forma de usar seus recursos, ou de preservar sua saúde em condições de grande estresse físico.

A Caixeira acrescenta:

“mas eu falei pra elas que a gente tinha que ter compreensão, e Caixeira tratá bem os donos da festa, e donos da festa tratá as Caixeira bem, que Caixeira num são escrava e esse tempo de escravatura já se acabou”.

Há depoimentos que relatam uma experiência de outro tempo. Aqui está uma fala do Sr. Heidimar Marques, morador antigo de Alcântara, e pertencente a uma das famílias importantes da região;

“Dantes as pessoas para ajudar a cozinhar na casa da festa, pra ajudar a buscar donativos, faziam de graça para o Espírito Santo, se ia apanhar cocos para Espírito Santo, vinha aquela porção de cocos... lenha nas esmolas... o batuque, como se chamam as Caixeiras,  iam receber no porto. Vinha cada uma com feixe de lenha, e era muito alegre isto!...

Hoje as caixeiras não ajudam mais  na casa da festa. Elas varriam a casa,  tudo fazia parte de uma devoção...”

Michael de Certeau, refere-se à tática como ação calculada, determinada pela ausência de um lugar próprio, conceito que nos apóia na  reflexão dessas questões. A partir dessa ausência de um lugar próprio,  as Caixeiras  agem no espaço do outro que domina, e possui a estratégia. Agindo dentro do campo de visão do oponente, utilizam a astúcia e o bom humor para construir seus espaços de poder. Como relata uma Caixeira que tocou numa festa em Alcântara. Eu omito aqui os nomes das pessoas envolvidas.

.. fulana. estava sentada e a dona da festa passava e dizia: -Ô nega feia! Essa fulana é nega feia e preguiçosa!

 

Eu ficava olhando assim prá dona e pensava: ...minha comade, eu vou m’imbora!

Um dia ela passou e disse: - Ô gente, o vício desta nega é sentar aqui e             durmir!

Eu falei prá ela; -  a comadre fulana  tá isquerda assim é por causa de você!...  Dona chegava aqui, e cumade fulana lavava louça, cumo essas minina que vai lá embaixo, e vorta cum tunel dágua, subino esta escada aqui! Cumade fulana lava louça, varre casa, rala coco, faz de um tudo!  Deixe de tá butano pecha nos outro!  Òia dona, tu aburrece ela, tu me aburrece também!...

a Dona: (falou) -  Não Caixeira! Ontem eu passei aqui, e Fulana tava durmino neste lugar!

Digo; - Ela num tá durmino o gesto dela é esse, se ela é de chegar e ficar mexendo nas coisa prá dizer que tá mexendo em tuas coisa, ela tá sentadinha no lugar dela. Mas aqui num tem um dia que nóis chega e ela num trabaie!...

As Caixeiras não recebem mais essa cobrança pelos donos e donas de festa. Construíram o seu espaço de poder o que lhes permitiu ocupar um outro e principal lugar. O de Caixeiras.

 

“Nós temos obrigação com a nossa Caixa, que é todo dia que nós bota no ombro e sai. Esta que é nossa obrigação. Por acaso nós tamos esmolando, chegá aqui pega uma vassoura, vai varrer, louça prá lavá, não, não temo esta obrigação não! Os festeiro quiriam que a gente fizesse isto, quando chegasse cansada cumo nós chega, cabasse de cumê já pulasse ni côco pa ralá… elas quiriam isso mas eu nunca me assujeitei…”

 

 

 

 


 

* Mestre em História Social pela PUC/SP e membro da Associação Cachoeira.

[1] Guatarri,Felix  e Rolnik, Suely  Micropolítica -Cartografias do Desejo. Petrópolis Vozes 1986 pp 18 e 19.

[2] Canclini, Nestor Garcia. Culturas Híbridas-Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo Edusp 1998. pp 274-279.

[3] Edward Palmer Thompson; Costumes em comum.  São Paulo - Cia das Letras 1998 p 

[4] Michel Foulcaut. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro. PUC/NAU 1996 pp 23-27.

[5]  Milton Santos. Técnica, Espaço, Tempo – Globalização e meio técnico-científico informacional.   São Paulo Editora Hucitec 1994, p. 56.

[6] Feld, Steven. Sound Structure, as Social Structure. In: Society for Ethnomusicolgy, Inc. Twenty-ninth annual meeting . University of California Los Angeles 1984. pp 386-388

[7] Alessandro Portelli. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética e história oral. In Projeto História 15,  Educ. 1997, p 26.

[8] J. Vansina. A tradição oral e sua metodologia. In; Metodologia e História  da África.  2 vol. Historia Geral da África. Unesco 1980, p 157

[9] Opus cit., p 157-158

[10] Pentecostes  é uma  palavra grega para qüinquagésimo dia. Designa a  Festa da Messe celebrada pelos judeus sete semanas depois da Páscoa,  no qüinquagésimo dia.

[11]  Prof. Rafael Rodrigues da Silva, teólogo, biblista, lê hebraico e aramaico e é professor de Teologia da Pontifícia Universidade Católica  de São Paulo, em entrevista em setembro de 2000.

[12].  In; Em Nome do Espírito Santo. Vídeo  citado

[13] Carlos de Lima. História do Maranhão.  São Luís. Edição particular. 1981, pp 58-77.

[14] Conforme seu depoimento em entrevista realizada em julho de 2001, em sua casa, em São Luís-MA.

[15] Esse termo é usado no Maranhão para designar a distribuição de donativos e alimentos aos pobres, mas segundo a Revista Luzitana 4, Volume n. 2 de 1896, p. 136 “uma distribuição de pão e outros alimentos à porta de uma igreja ou associação”. “... Naqueles tempos, o vodo que é preciso se distinguir de gentar ou jantar consistia na reunião de muitos indivíduos, que se congregavão para comer juntamente, sendo o que restava empregado em fins caritativos, que se tinhão anteriormente anunciado”.

[16] Carlos de Lima. Vida, Paixão e Morte da Cidade de Alcântara – Maranhão  São Luís; Plano Editorial SECMA 1998, p. 260

[17] Revista Luzitana. n. 2 de 1896,  p. 134. 

[18] In “A Revista Luzitana”   n 2 de 1868,  pg 157

[19] Luís da Câmara Cascudo. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro. MEC. 1962, p.281.

[20] Alceu Maynard Araújo. Folclore Nacional - Festas, Bailados, Mitos e Lendas - Vol. 1. São Paulo, Melhoramentos. 1964, pp 31-32

[21] Em Nome do Espírito Santo. Vídeo citado. 

[22] Moisés Espírito Santo. Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa. Lisboa.  Ed. Assírio & Alvim,  1988, p. 114.

[23] Antonio Brágio; As Confrarias Medievais do Espírito Santo, Paradigmas das Misericórdias.  Lisboa Academia Portuguesa de História. (Separata de Presença de Portugal no Mundo), s/d.

[24] “ La primera epoca fue aquella en que estuvimos sujetos a la ley; la segunda cuando estuvimos sujetos a la desgracia; la tercera cuando vivimos en anticipación de una gracia incluso más generosa… 

… la primera fue de conocimiento, la segunda de autoridad por la sabiduría y la tercera de perfección en el entedimiento.

…La primera en las cadenas del esclavo, la segunda al sevicio de un hijo, la tercera en libertad.

…la primera en exasperación, la segunda en acción, la tercera en contemplación. Etc, etc.

…la primera en miedo, la segunda fé, la tercera, amor.

…la primera en sevidumbre de esclavo, la segunda en libertad, la tercera en amistad.

…La primera en la edad de los niños, la segunda de juventud, y la tercera de los viejos.

…la primera es luz de estrellas, la segunda de luna, y la tercera plena luz diurna.

… la primera es invierno, la segunda primavera y la tercera verano.”

[25] Tradução livre do espanhol.  El padre y el hijo han trabajado hasta este dia e ahora trabajo yo!”

[26] Eduardo Etzel. Divino – Simbolismo no Folclore e na Arte Popular – São Paulo, Editora Giordano. Rio de Janeiro. Editora Cosmos. 1995.

[27] Chamber’s Encyclopaedia Vol. 7., p. 396a

[28] Êxodo 15;20.

[29] Depoimento do Teólogo Rafael Rodrigues da Silva, em entrevista em setembro de 2000.

[30] Vídeo citado.

[31] In; Revista Lusitana  vol. XXXIII de 1935.

[32]  In:  Revista Luzitana, 1 e 2 de 1908. p. 71. Não consta nome da pessoa que escreve.  Trata-se de um artigo primeiramente publicado em O Bejense  n. 81 de 12 de julho de 1862.

[33] Eliade,  Mircea . Tratado de História das Religiões. Lisboa,  Ed. Cosmos 1970, pp 48-51.

[34] Idem p. 324

[35] O mais antigo Terreiro de Tambor de Mina no Maranhão, localizado no centro de São Luís

[36] Cidade portuária próxima a São Luís.

[37] Aquele que mata e esfola reses. Açougueiro.

[38] Ob. Cit, p. 109.

[39] Martha  Abreu.  O Império do Divino -  Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro. Nova Fronteira, Rio de Janeiro. , p. 57.

[40]  Denominação comum nas quadras citadas.  In: Manuel Breda Simões.  Roteiro Lexical do Culto e Festas do Espírito Santo nos Açores. Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. Ministério da Educação, 1987.  No Brasil um pouco menos freqüente, possivelmente por  sua associação ao órgão sexual  feminino.

[41] A representação dos raios de luz, ou do calor do fogo que acompanham as imagens do Divino.

[42] Opus. Cit., p. 86

[43]Carlos Rodrigues Brandão. O Divino, o Santo e a Senhora. Rio de Janeiro. Funarte-Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. 1978.

[44] Revista  Luzitana   vol. 38 n. 1-4 1940.

[45] Ressalte-se, no entanto, que este repertório de quadras, contém temas e rimas compartilhadas  com outras festas em outras regiões. E embora tenha grande importância, essa discussão não é objetivo deste trabalho. 

[46] Adjá – instrumento idiófono formado por uma, duas ou três campânulas. O adjá é instrumento distintivo do poder de mando dos rituais religiosos. Serve também para dirigir obrigações diversas, oferecimento de comida aos deuses e coordenar as danças. Ao seu som de apelo, quase mágico, vêm os deuses, como também ocorre com o uso do xerê na roda de Xangô.

In; Lody, Raul - Dicionário de Arte Sacra e Técnicas Afro-Brasileiras – Ed. Pallas – Rio de Janeiro 2003.

[47] Ermel, Priscila - A palavra da musica; Iniciação ao universo musical Dogon – Tese de Doutorado – usp 1998.  pag 182

[48] Alcântara é a sede do município que é formado por mais de 250 povoados rurais, dos quais a grande  maioria deles são comunidades remanescentes de quilombos.


REVISTA VIRTUAL HISTORICIDADE
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