O Divino Institucionalizado
 
Com mais de dois séculos de existência, o município de São Luís do Paraitinga, ainda mantém muitas características do catolicismo popular, surgidas no período colonial. Por muitas e muitas décadas, a igreja mostrava-se extremamente condescendente com a presença de elementos ou manifestações religiosas oriundas da cultura africana, indígena, somados obviamente ao catolicismo ibérico popular das aldeias portuguesas com seus santos padroeiros familiares.
A convivência harmônica e pacífica entre o catolicismo oficial e a religiosidade popular, talvez possam ser justificados pelo fato da Igreja, no período colonial, ser um aparelho do Estado Português, tendo em vista que pelo sistema do “padroado” a igreja subordinava-se ao Estado.
Essa relação harmônica atravessou os períodos Colonial e Imperial, chegando até a segunda década da República Velha. É importante salientar que em nível local, à época do Império, marca o momento de maior opulência do município com o advento do cultivo do café. Nessa fase, cujo tempo pode ser delimitado entre as décadas de 40 a 80 do século XIX, estrategicamente, através de um “jogo” a igreja atrelou os seus interesses de ordem econômica e política aos interesses da elite agrária vigente. Como exemplo, somente os fazendeiros do café eram contemplados para organizar as festividades do Divino Espírito Santo, nesta fase, as pessoas reconhecidamente como gente do povo nunca eram escolhidas. Era o “status” econômico que definia essa escolha. Para ilustrar esse comentário, incluo uma análise de Negrão:
“O Clero estava submetido antes à autoridade secular que a eclesiástica e interessado principalmente em afazeres econômicos e políticos, limitava-se ao ofício dos sacramentos e à observância das formalidades religiosas, pouco se importando com a ortodoxia romana”. (1984:15)
No entanto, a decadência econômica do município, ocorrida no final do século XIX, decreta definitivamente o fim da elite agrária, que por décadas bancava financeiramente as manifestações religiosas mais expressivas, que quando associada às mudanças na estrutura social brasileira em função da separação Estado/Igreja (1890) vão culminar na implantação do catolicismo ultramontano, ou seja, o catolicismo romanizado, clerical, individual, que se opunha ao catolicismo vigente no município. Aquele de característica luso-brasileiro, laico, familiar, devocional e festivo. Porém e efetivamente, a chegada do padre Pedro José Ribeiro, no ano de 1904, o primeiro padre ultramontano realmente atuante para a imposição da doutrina romanizada. A medida mais severa por ele implantada foi a proibição da procissão da prisão (realizada na 5ª feira santa) e a introdução do ensino religioso para meninas (os), ou seja, a prática do catecismo preparatório para a primeira comunhão, além do incentivo às devoções Marianas.
Todavia, o seu predecessor de nacionalidade italiana é nomeado vigário de São Luís do Paraitinga no ano de 1912. Este, na verdade, vai agir com mais rigor até que o seu antecessor e, a partir daí, os embates entre o representante oficial da instituição e os representantes das Irmandades religiosas e a população em geral tornam-se mais evidentes e explícitos.
Seguindo fielmente as recomendações da reforma ultramontana, logo nos primeiros anos de sacerdócio na paróquia, o padre Ignácio Gioia, que passa a controlar, em um primeiro momento, tudo aquilo que é (por ele) considerado profano nas festas religiosas, delimitando bem os espaços para a sua realização, ou seja, as manifestações populares que não se enquadravam na nova ortodoxia foram afastadas ou deslocadas do pátio – frente da igreja, para terrenos periféricos da cidade. A cavalhada e a dança do jongo são exemplos desse controle.
Contudo, a insubordinação da população que, freqüentemente, desacatava as suas determinações acarretou na tomada de uma atitude austera, refletindo, principalmente, na mais popular festa do município – a Festa do Divino Espírito Santo. Desta forma, tal festejo foi suprimido por quase duas décadas do calendário religioso local. A restauração da mesma só foi efetivada no ano de 1943, autorizada pelo mesmo sacerdote.
A partir desse momento a festa do Divino vem se realizando desde então sem interrupções, mesmo não abrindo mão das orientações determinadas através da ortodoxia oficial, a partir de sua liberação, porém, este sacerdote e os seus sucessores mostraram-se mais tolerantes, permitindo a presença de elementos externos de devoção e culto a sua liturgia.
Mas esse reatamento entre o que é oficial e popular (catolicismo) não dura mais do que meio século. E, a partir de meados da década de 90 do século XX, sofre um novo “baque” com o surgimento de uma nova cultura religiosa. A presença de um padre ligado a Renovação Católica Carismática (RCC) e às novas normas por ele estabelecidas entra em confronto com as práticas religiosas do catolicismo tradicional vigente no município. As atitudes adversas do padre, com relação aos conceitos secularmente adquiridos e já assimilados pela população, fazem-no reconhecido como investido de uma postura avaliada pelos devotos como autoritária, que reagem em sua “maioria” com indignação diante dos seus procedimentos.
A festa do Divino Espírito Santo de alguns anos para cá vem sendo “esvaziada” em seus sentidos religiosos se analisado do ponto de vista do catolicismo popular rústico. Neste caso, cito como exemplo, a retirada de circulação da folia do Divino pelo espaço rural. Com essa atitude, o representante oficial da Paróquia, despreza o principal e mais importante ritual sagrado dos roceiros que perdura todo o ano. Um devoto tradicional do Divino, residente na zona rural do município de São Luís do Paraitinga, expressou a sua indignação da seguinte forma: “O padre não respeita a religião antiga, ele não pode acabar com essa tradição”.
Podemos acrescentar ainda, que com essa atitude, o padre tolhe a união de atitudes recíprocas entre o ser comum natural devota(o) e o ser sobrenatural representado na bandeira imagética do Divino Espírito Santo. Aí, também, não é levada em consideração a importância que o devoto(a) concede a imagem como representação do ‘sagrado’. Pois, simbolicamente, ao adotar a estratégia de acondicionar missivas ou outras representações iconográficas (como fotos e pedidos) na bandeira peregrina, observamos que o devoto(a), em seu culto privado ao Divino, exterioriza, dá visibilidade e torna pública a sua fé. Ora, se a folia não visita mais as residências rurais, verificamos que este relacionamento foi “quebrado” e, por esse viés de análise, o sistema devocional do catolicismo popular foi deslegitimado pelo sacerdote.
Portanto, acreditamos, que a ameaça maior ao catolicismo popular origina-se do processo de desqualificação impetrado pelos agentes eclesiásticos. Principalmente, a atuação em nível local, agindo de maneira a definir regras através da tentativa de institucionalizar as relações “religiosas” na comunidade.


Marcelo Toledo
Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa de Práxis Contemporânea da Unitau
Mestre em Ciências da Religião pela PUC/SP - Pontífica Universiade Católica de São Paulo