Personalidades de um rito festivo: as caixeiras do Divino
Espírito Santo
Claudia Gouveia*
Pessoas com grande conhecimento sobre a festa do
Divino Espírito Santo, as caixeiras são, sem dúvida, de primordial
importância para a mesma, sendo elas as responsáveis por grande parte do
ritual como: abertura e fechamento da tribuna, louvações para o divino e
santo homenageado, honras para o império etc.
Grupos de senhoras com mais de 40 anos, as caixeiras são, geralmente,
mulheres negras, moram em bairros periféricos da cidade e muitas não são
alfabetizadas. Algumas são filhas-de-santo e tocam caixa como parte da
obrigação para alguma entidade espiritual "devota" do Divino; outras
freqüentam os terreiros apenas na época da festa do Divino e tocam por
devoção ao Espírito Santo.
O grau de informação sobre o ritual vai ser percebido pela forma
hierarquizada como as caixeiras se organizam. Essa hierarquia, que é
compartilhada e respeitada entre elas, é estabelecida de acordo com os
anos de caixa e o grau de conhecimento sobre a festa. Assim, cada grupo
possui uma caixeira-régia. Esta, necessariamente, deve conhecer todo o
ritual, pois é ela quem comanda todas as outras e, com o aval dos donos
da casa, tem plenos poderes sobre tudo que aconteça no âmbito da festa .
A caixeira-régia é ajudada diretamente pela caixeira-mor, que poderá
substituí-la caso esta, em alguma ocasião, não possa estar presente. As
outras são chamadas caixeiras-ajudantes e ajudam nas salvas, reforçam os
cânticos etc.
Para essas senhoras, ser caixeira é um "dom de Deus", uma missão
espiritual, mas a maioria enfatiza que qualquer pessoa pode se tornar
caixeira do Espírito Santo, basta querer e ter a vontade de aprender,
porque ser caixeira requer esforço e dedicação, daí a importância em se
buscar informações sobre a origem da festa, bem como ter paciência no
aprendizado do ritual (que vai da batida da caixa ao fechamento da
tribuna), pois só assim poderá se louvar com veemência o Espírito Santo.
O processo de formação de uma caixeira é lento, pois o ritual do Divino
Espírito Santo é muito complexo e requer cuidados no seu aprendizado,
por isso as caixeiras mais antigas consideram obrigação repassar seus
conhecimentos para as caixeiras mais novas, para não colocar em risco a
perda desse ritual, principalmente pela sua importância para aqueles que
o realizam.
"Qualquer pessoa pode tocar caixa, depende de querer.
A gente aprende é assim, ninguém nasce sabendo. Querendo tocar, toca;
quer aprender, a gente que sabe mais ensina. É nosso dever 'pro'
Espírito Santo trazer mais devotas. Umas 'aprende' mais depressa, outras
mais devagar, mas é assim mesmo, até porque, minha filha, um dia a gente
vai embora e quem vai continuar a festa? Ela não pode parar e quem vai
continuar são as mais novas e por isso nós temos obrigação de ensinar
com cuidado porque senão a festa acaba"
(Dona Celeste, Casa das Minas: 03/08/2000)
Já Dona Fausta (caixeira do terreiro "Fé em Deus" há mais de 30
anos), apesar de não descartar a possibilidade do repasse de seus
conhecimentos sobre a festa - o que considera fundamental para a
manutenção da mesma - acha necessário que qualquer pessoa, antes de
tocar caixa em festa do Divino ou em qualquer outra festa religiosa,
demonstre suas crenças espirituais e tenha um envolvimento maior com a
religião (principalmente se for festa de terreiro) e com as pessoas
ligadas a ela, pois só assim poderá ser uma boa tocadora de caixa.
"Olha, não acho que é assim não: vai chegando, vai
tocando. Antes precisa mostrar quem é, falar quem é, por que quer
aprender, aí tudo bem, porque você não pode confiar seus entendimentos
para qualquer pessoa, depois ela aprende, sai rindo dizendo ser besteira
de velha? Não, isso é compromisso sério, a caixeira é o centro da festa,
ela ajuda a pagar a obrigação com o dono da festa, por isso tem que ter
envolvimento para poder entender melhor o sentido das coisas."
(Entrevista. 20/07/2000).
A preocupação no repasse desse conhecimento sobre a festa do Divino,
que é acumulado principalmente pelas tocadoras de caixa, é uma constante
tanto para elas como para alguns pais e mães-de-santo, pois sua não
ocorrência põe em risco a própria continuidade do ritual. Todos são
unânimes em afirmar que "sem caixeira não tem festa". Assim, a
necessidade da propagação dos conhecimentos desse "ofício" evidencia
ainda mais o papel de destaque e a credibilidade a elas atribuída, como
nos disse "Mãe Elzita (chefe do Terreiro Fé em Deus):
"As caixeiras são a alegria da festa. Sem caixeira
nada a ver, a festa acaba, e elas vêm desde o começo, elas que cantam,
que saúdam, que entende tudo. Sem caixeira não tem festa, elas são a
folia tanto religiosa mesmo, no momento da obrigação, como na animação,
nas brincadeiras. Daí a importância de se passar para frente senão daí a
pouco, cadê a festa de Espírito Santo? Como é que nós vamos fazer? Não
tem."
(Entrevista. 18/04/96).
Como já mencionamos anteriormente, as tocadoras de caixa são em sua
maioria senhoras , Entretanto, em alguns casos, homens podem assumir
essa função, fato esse que constatamos na Casa Fanti-Ashanti e no
Terreiro de Mina Yemanjá (de Jorge Itacy).
Essas senhoras, apesar de dizerem não ter preconceito contra homens que
tocam caixa, são criteriosas em caracterizar essa função como
especificamente feminina dentro do ritual pois, para elas, "os homens
não têm paciência para essas coisas mais detalhadas, preferem o trabalho
braçal como buscar o mastro, ajudar a levantar, a derrubar, etc." .
Apesar da responsabilidade atribuída às caixeiras na festa do Divino,
estas não recebem nenhuma remuneração. Para elas, ser caixeira é um
compromisso cristão, está ligado à devoção para com o Espírito Santo e
por isso não se deve esperar nenhum retorno financeiro, nem benefícios
próprios, materiais. Essa falta de remuneração não modifica em nada o
senso de responsabilidade e compromisso das caixeiras para com a festa,
pelo contrário, evidencia ainda mais a dedicação e a fé que elas dizem
depositar no Espírito Santo.
As caixeiras são tratadas com muito zelo e atenção pelos donos da festa.
Em algumas casas, elas recebem dos pais e mães-de-santo o dinheiro da
condução, tecido para confecção da roupa do dia da missa etc. No final
da festa, grande parte do que é dividido (bolos, mantimentos,
lembrancinhas etc.) é reservado para elas, como forma de agradecimento
pela ajuda e solidariedade.
Notamos, então, que essas senhoras são figuras de destaque,
indispensáveis para a realização desse ritual, merecendo todo o
reconhecimento e credibilidade nelas depositados pelos pais e
mães-de-santo dos terreiros de mina que realizam a festa do Divino.
Com o objetivo de difundir a arte de tocar caixas, bem como estimular o
aprendizado e o interesse pelo toque desse instrumento fundamental na
Festa do Divino Espírito Santo do Maranhão, o Centro de Cultura Popular
Domingos Vieira Filho e a Comissão Maranhense de Folclore, atendendo a
uma solicitação de uma das caixeiras mais antigas de São Luís, Dona
Maria Celeste Santos, da Casa das Minas, tocadora de caixa do Divino há
66 anos, realizaram, no período de 31 de julho a 11 de agosto do ano em
curso, a primeira oficina de caixeiras do Divino Espírito Santo. A
oficina foi um sucesso, contando com a participação de 26 alunas, a
maioria de casas de culto de São Luís. Ministraram a oficina as
seguintes caixeiras: Dona Maria Celeste, Dona Jacy e Dona Laudelina, da
Casa das Minas; Dona Maria do Rosário, da Casa de Santana; e Dona Maria
do Guerreiro, da Casa de Nagô.
* Designer e diretor de Museografia do Centro
de Cultura Popular Domingos Vieira Filho.
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