Os Açores no Mundo

A EMIGRAÇÃO AÇORIANA PARA O BRASIL

              A mais antiga notícia que nos fala da saída de alguns casais para o Brasil é-    -nos fornecida por Gaspar Furtuoso, primeiro historiador micaelense (1522-1591), que escreveu as suas crônicas no terceiro quartel do século XVI. Escreve o cronista a dado passo que “… no ano de mil quinhentos e setenta e nove, sendo de muita esterilidade, como haviam sido muitos atrás desse, ficaram os moradores da ilha tão atribulados e pobres, que não se podiam manter nela, vendo ele [Diogo Fernandes Faleiro] alguns parentes seus em semelhante aflição, os persuadiu que se quisessem sair daquela miséria e se fossem para o Brasil, para o que gastou com eles, provendo-os de todo o necessário para sua embarcação, duzentos mil reis…”

                Conquanto se tenha estabelecido que a primeira saída de famílias açorianas para Terras de Santa Cruz se tenha verificado no ano de 1677, causada por cataclismos vulcânicos ocorridos nas ilhas do Faial e Pico, não há dúvida nenhuma de que o testemunho de Gaspar Frutuoso, atrás citado, é claro, tendo o cronista, além do mais, sido contemporâneo do acontecimento, o que lhe confere um elevado grau de credibilidade. As causas aduzidas pelo historiador micaelense e que estão na origem do mais antigo movimento emigratório açoriano são na verdade causas econômicas - a esterilidade dos campos. É natural, como ficou lavrado na crônica, que aquele movimento emigratório apenas se circunscrevesse a duas ou três famílias não encontrando, até ao século seguinte, grande adesão por parte de outras.

            Em 1677 as ilhas do Faial e do Pico são sacudidas por fortes abalos sísmicos que destruíram algumas freguesias, deixando as respectivas populações na miséria e na desgraça. Em face dessa situação alarmante, dezenas de famílias abandonam a sua terra e embarcam para o Brasil em busca de uma vida melhor. Os emigrantes assentaram arraiais sobretudo em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, onde se formaram, no decorrer do século XVIII, grandes colónias. Ainda hoje, em Porto Alegre, existe no “centro” da cidade um monumento e um viaduto dos açorianos magnificamente enquadrado na parte nova da cidade e conservado como relíquia, em homenagem aos que foram praticamente os fundadores da cidade. A sua adaptação ao novo ambiente tropical não foi penosa, pelo contrário, houve uma íntima comunhão do emigrante com o meio, rápida e eficaz, tornando-o aventureiro, com espírito vivo e caráter franco.

                Foi no decorrer do século XVIII que a corrente emigratória para o Brasil se tornou bastante forte. No século XVII, como ficou atrás escrito, houve um grande declínio na economia, com uma acentuada quebra na produção do trigo, da cana do açúcar e do vinho. Apesar da introdução de novas culturas, a crise não diminuiu, atingindo as classes mais desfavorecidas que se viram obrigadas a emigrar para o Brasil. Daí que a emigração açoriana tivesse começado a sério no século XVII, embora só atinja verdadeiro significado no decorrer do século seguinte. No reinado de D. João V era ainda bastante acentuado o êxodo dos açorianos para o Brasil. O fato de no século XVIII ser bastante forte a corrente emigratória dos Açores pode explicar-se não só por causas econômicas, mas também pela existência já de causas psicológicas (o exemplo dos conterrâneos que melhoraram suas vidas) e familiares (a tendência humana e natural de juntar o agregado familiar no mesmo local). No entanto, não se pode perder de vista que o leit motiv foi, e ainda hoje continua a ser, a necessidade de angariar sustento, de conseguir melhores condições de vida, negadas na sua terra natal.

            Em meados do século XIX, porém, e contrariando um pouco a idéia exposta de que o surto emigratório açoriano para terras brasileiras termina por volta de 1807, verifica-se uma saída de mulheres açorianas para os prostíbulos do Rio de Janeiro. No volume décimo das “Farpas”, Ramalho Ortigão esclarece-nos sobre esse “cristianíssimo” comércio de carne humana, expressão mais degradada e degradante do mercantilismo a que, em muitos casos, não escapa a emigração, que, por seu turno, mais não é do que a venda da força do trabalho em troca do sustento. Meditemos neste trecho extraído da mencionada obra: “Os Açores são a parte do país que exporta maior número de mulheres. Estas mulheres são escrituradas ao chegarem ao Rio de Janeiro, muitas delas a bordo mesmo dos navios que as transportam. Escolhem-se pelo aspecto físico: uns preferem as louras, outros as morenas. As mais bonitas são as que se acomodam mais depressa. Os fazendeiros encomendam-nas do interior aos seus correspondentes: “Quando chegar o paquete próximo mande-me duas caixas de vinho do Porto e uma ilhoa gorda, de dezoito anos e olho preto.”

                Santa Catarina e Rio Grande do Sul foram os locais preferidos pelos imigrantes açorianos. Em conseqüência desse fato, constituíram-se nessas regiões grandes colónias de açorianos, cuja linguagem e maneira de falar típica influenciaram o português do Brasil. Ao contrário do que durante muito tempo se pensou, não foi a língua brasileira que exerceu influência sobre alguns sons da língua portuguesa, dando origem ao que vulgarmente se chama “brasileirismos”. Foi o português falado nos Açores que exerceu influência, sobretudo nas regiões de Santa Catarina e Rio Grande do Sul onde a presença açoriana foi um facto entre 1617 e 1807, sobre o português do Brasil. Assim, a palavra “ sinhá” (senhora) talvez tivesse origem em “senhara”, ainda hoje ouvida em várias localidades da ilha de S. Miguel, sobretudo entre as pessoas mais humildes. A troca do “lh” por “i” como em “muié” (mulher), “óia” (olha), “fôia” (folha), “mio” (milho), “taião” (talhão) muito vulgar na língua brasileira de certas regiões (Santa Catarina e Rio Grande do Sul) foi também influência exercida pelos emigrantes provindos dos Açores aí radicados, principalmente da Ilha de S. Miguel. Com efeito, na freguesia de Arrifes do distrito de Ponta Delgada (uma das maiores senão a maior de Portugal), ouve-se pronunciar do mesmo modo esse lh intervocálico. O t que os brasileiros pronunciam th, como em quintha, é também vulgar em certas regiões micelenses: ditho, vinthá (vinde cá). Em certas regiões do Brasil o l intervocálico pronuncia-se lh como em elhéctrico (elétrico), ilhuminação (iluminação).  Na ilha Terceira é vulgar ouvir-se o mesmo som para o l intervocálico. É muito natural que o emprego do gerúndio: estou comendo, estou fazendo, estou trabalhando, etc., tão comum na língua brasileira, fosse também influência dos açorianos radicados no Brasil. De fato, ainda hoje, a conjugação perifrástica no gerúndio é vulgaríssima nos Açores, onde as formas verbais estou a correr, estou a fazer, etc., não se ouvem ou raramente se ouvem.

            A influência lingüística reflete de maneira acentuada um longo e profundo contacto entre dois povos. Foi o que aconteceu no caso específico do povo açoriano e brasileiro. A corrente emigratória que se estabeleceu a partir dos princípios do século XVII até os princípios do século XIX para as regiões onde essa influência lingüística mais se fez sentir, leva-nos à conclusão de que certas formas típicas do falar brasileiro, como aquelas que acabamos de enumerar, não são mais do que a transposição para o Brasil do português insular. Em abono do que se acaba de afirmar, está o fato de que o emigrante açoriano, uma vez embarcado, muito raramente regressa, excluindo-se, portanto, a hipótese de uma influência de retornados luso-brasileiros sobre o português insular.

 Cristovão de Aguiar, Alguns dados sobre a Emigração Açoriana, Vértice, 1976.

 

            Os açorianos aparecem na história brasileira em diversas regiões e podem ser distribuídos de muitas maneiras:

Pequena escala: Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, etc.;

Média escala: Amazonas, Pará e Paraíba;

Grande escala: Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Então, segundo uma tentativa de colocação por círculos económicos:

Ciclo baleeiro: Pará e Paraíba;

Ciclo pesqueiro, incluindo baleia: Santa Catarina;

Ciclo de gado: São Paulo, São Vicente;

Ciclo do açúcar: Bahia e Pernambuco;

Ciclo de mineração: Minas Gerais;

Ciclo da agricultura, evoluindo para o da grande propriedade  rural: Rio Grande do Sul.

            A bibliografia será tratada em resumo no final, mas, de fato, a literatura é diminuta sobre os açorianos no Brasil. Existem boas fontes no próprio Açores e naturalmente alguns poucos trabalhos em Portugal continental, como o de Leite de Vasconcelos e Paiva Boleo, para falar num mais antigo e noutro atual, apenas.

            O único livro inteiramente dedicado aos açorianos na literatura do Rio Grande é o de Borges Fortes - Casais (1932) e nada mais.

 

 

DANTE DE LAYTANO in “Arquipélago dos Açores”, 1987

 

 

A DECISÃO REAL: AÇORIANOS E MADEIRENSES PARA O BRASIL MERIDIONAL:

O PAPEL DE RAFAEL PIRES PARDINHO

               Articulado o plano político, aliado ao desejo manifesto das populações insulanas, de emigrar, como está documentado pelas cartas das Câmaras das Lages do Pico, da Vila Nova do Topo da Ilha de São Jorge, e, ainda da Vila de S. Roque do Pico, cujos alistamentos foram efetuados e cujo transporte é tratado, a partir de 1722, mas, em 1728, ainda não está solucionado, como informa o frade carmelita frei Agostinho da Trindade, que, naquele ano, estando na corte lisboeta a tratar de assuntos pertinentes aos habitantes da Ilha de Santa Catarina, recebera instruções reais para aguardá-los, não o fazendo, entretanto, pela demora.

            O Brigadeiro José da Silva Paes, encarregado de fortificar a novel Capitania da Ilha de Santa Catarina, em 1742, tratando das guarnições das fortalezas que construía diz que “ sem gente que as guarneça, são corpos sem alma”, e pede “se das Ilhas se puderem remeter alguns Casais seria utilíssimo”.

            E, só, em 1746, o Conselho Ultramarino tem diante dos olhos um arrazoado sobre “a grande multidão de povo que nelas (Ilhas dos Açores) se acha sem emprego, nem meios para subsistir”. E, Alexandre de Gusmão, naquele Conselho, encontra um grande aliado, na pessoa do Desembargador Rafael Pires Pardinho que, em 1719-1720, percorrera o Brasil-Sul como Ouvidor da Comarca de S. Paulo e, portanto, conhecia, “de visu”, a realidade.

            Daí resultam, com a sua intervenção direta, os expedientes que vão normatizar toda a ação da Coroa Portuguesa, no envio de açorianos e madeirenses para o Brasil, e, significativamente para a Ilha de Santa Catarina e seu continente fronteiro, do qual resulta a Provisão Régia de 31 de Agosto de 1746, que abre o “alistamento” e oferece vantagens aos açorianos que desejassem migrar para a “América”.

   Walter Piazza  in “Estudos sobre a Migração Açoriana de 1748 a 1756”

 

 

INSTRUÇÕES PARA AS AUTORIDADES

INSULANAS: O ALISTAMENTO

 

 

            O Rei D. João V, através do Conselho Ultramarino, lavrou todas as instruções para as mais diversas autoridades.

            Ao Corregedor da “Comarca das Ilhas” foram remetidas cópias impressas do edital que deveria ser afixado em todas as povoações.

            Assim, quatrocentos editais foram afixados, remetidos através das Câmaras Municipais, que, por sua vez, indicavam, na área de sua jurisdição, quem ficava encarregado de proceder o “alistamento”.

            E, desta forma, em todas as nove ilhas, foi procedido o “alistamento”, em que eram anotados, além do nome a naturalidade, a residência, a idade, a profissão, a estatura, a cor dos cabelos, a cor da pele, o formato do rosto, a cor dos olhos, a forma do nariz e da boca, a forma da barba, o estado civil e se casado o nome da mulher, a filiação desta, a sua naturalidade e idade, e caso tivessem filhos, o nome e as respectivas idades.

            Tem-se, então o “alistamento” que acusa na Ilha de São Miguel 328 alistados, na Ilha Terceira 912 pessoas, na Ilha Graciosa 772, na Ilha de São Jorge 2822, na Ilha do Pico 1776 e na Ilha do Faial 1207 alistados, totalizando 7817. Entretanto deve-se esclarecer que na Ilha de Santa Maria houve “alistamento” ali procedido pelo Corregedor daquela Ilha. E que as Ilhas das Flores e do Corvo apresentam, também, no momento de fixação em terras brasileiras, gente delas!

            Podemos, entretanto, face à população presente nas Ilhas, na época do “alistamento”, dizer que a proporcionalidade entre alistados e a população, demonstra ter a ilha de S. Jorge contribuído com 24 % da sua população, enquanto a Graciosa o fez com 11,5 %, Pico com 9,0 %, Terceira com 4,5 %, Faial com 2,75 % e S. Miguel com 0,73 %.

            Como se vê é um esvaziamento demográfico bem expressivo nas Ilhas de S. Jorge, Graciosa e Pico.

    Walter Piazza   in “Estudos sobre a Migração Açoriana de 1748 a 1756”

 

OS “ ASSENTOS “ PARA O TRANSPORTE

             Inicialmente fôra estabelecido o “Regimento que se há de observar no transporte dos casais da Ilha da Madeira e dos Açores para o Brasil”, onde, minuciosamente, são definidas as condições de embarque, a divisão de homens em companhias para manter a disciplina a bordo, a distribuição dos alistados nas várias partes da embarcação - os homens na coberta e as mulheres nas câmaras do navio -, sobre o controle dos mantimentos e feitura da alimentação, e, assim, pelos dezesseis itens do aludido “Regimento” se discorre nos particularismos de como deveriam todos agir!

O transporte de tão avultado número de alistados passou, desde logo, a interessar um bom número de comerciantes e proprietários de embarcações, quer das ilhas, quer de Lisboa.

            A coroa Portuguesa levou à arrematação tal transporte.

            Assim, a 7 de Agosto de 1747, é assinado o primeiro “Assento” com Feliciano Velho Oldemberg, para transportar 1000 pessoas dos Açores para a Ilha de Santa Catarina, que contem vinte e quatro “condições”.

 

 Walter Piazza in “Estudos sobre a Migração Açoriana de 1748 a 1756”