Espírito Santo: O Culto e a Festa em
espaços Lusófonos
- Uma lição de História pela Dra.
Antonieta Costa, da U. dos Açores
De tarde, a temática direccionou-se para
a devoção ao Divino Espírito Santo, um
denominador comum entre as gentes dos
Açores e do Maranhão, tão viva nos dias
de hoje como na altura em que foi
introduzida no território do Brasil.

A Dra. Maria Antonieta Costa
falando sobre as origens da Festa do
Divino
A Prof. Dra. Maria Antonieta Costa fez
uma dissertação completíssima que, pela
sua clarividência, passamos a reproduzir
para os leitores interessados e os
amantes da história desta devoção tão
especial.
Nos Açores – Geografia
O Arquipélago dos Açores,
constituído por nove Ilhas, formando
três grupos, está situado a meio do
Atlântico Norte, sensivelmente à mesma
latitude de Lisboa e Nova Iorque e a
distâncias semelhantes entre as duas.
Descoberto por Portugueses, cerca de
1430, dos primeiros povoadores fazem
parte religiosos franciscanos, que dão
grande apoio ao Culto do Espírito Santo.
Estrutura social
O Culto é promovido por grupos de
pessoas sem nenhum tipo de preparação
especial, que funcionam em regime de
voluntariado, na sua maior dimensão em
associações designadas "Irmandades do
Espírito Santo", mas funcionando também
em pequenos grupos estruturados segundo
outros modelos.
Embora partilhando uma mesma base
teológica, na definição da Terceira
Pessoa da Santíssima Trindade, o
Espírito Santo, estes grupos não têm
ligação formal à Igreja Católica
estabelecida.
No caso das Irmandades, entidades
independentes, quer da Igreja Católica,
quer entre si, no conjunto de algumas
centenas distribuídas por todas as Ilhas
do Arquipélago, são regidas apenas por
estatutos e seguem um modelo de
administração democrático, com
delegações de poder distribuídas por
todos os membros que assim o queiram. A
independência que as caracteriza leva a
que, oficialmente, seja desconhecido o
seu número exacto.
Em geral, cada Irmandade ocupa um espaço
demográfico que pode ser aleatório, numa
população constituída, em média, por
duzentas famílias, assumindo a
responsabilidade da realização do ritual
pelo menos uma vez por ano. Porém,
grande número delas consegue sortear
entre os seus membros o encargo dessa
realização, em cada uma das sete semanas
do tempo Pentecostal (entre o Domingo da
Pascoela e o do Espírito Santo), ficando
assim este tempo preenchido com
celebrações simultâneas, nas centenas de
Irmandades distribuídas pelos Açores.
Os realizadores dos rituais, Imperadores
ou Imperatrizes (ou “Mordomos”, noutros
casos), podem ainda provir das
Promessas, espécie de contratos
estabelecidos com a Divindade.
Tanto estes Imperadores, como os
sorteados pela Irmandade, têm inteira
autonomia na realização dos rituais,
podendo alterá-los para melhorar a sua
eficácia.
Forma
O Culto realiza-se em períodos de
tempo de uma semana, para cada
organização, Irmandade ou pessoa
individual que o promova.
1. O primeiro rito deste conjunto consta
da apropriação, pela família encarregue
da realização do Culto, da parafernália
com ele relacionada (Coroa / Salva /
Ceptro / Bandeiras, etc.). Em procissão,
os objectos são conduzidos para casa do
novo Imperador. Em algumas Ilhas o
cortejo ainda é precedido pelos foliões,
espécie de arautos e, por vezes,
celebrantes.
2. Grupos organizados começam a
preparação dos alimentos, que são
partilhados entre diferentes públicos,
durante os sete dias seguintes.
3. Preces e litanias têm lugar todas as
noites, na casa do Imperador, frente à
coroa do Espírito Santo.
4. No último dia dessa semana, no
Domingo, é realizada a Coroação, na
Igreja da freguesia. A Coroa é levada em
procissão, para a cerimónia da sua
“imposição”, realizada na Igreja, pelo
Padre, regressando depois a casa do
Imperador, onde é colocada sobre a mesa
da refeição cerimonial, a principal do
conjunto de sete dias de ritos.
5. Ao fim do dia, segue-se a procissão
que leva os objectos sagrados a casa do
novo Imperador.
6. Parte dos ritos realizados em casa do
Imperador, quando são da organização da
Irmandade, poderão alternativamente ter
lugar num pequeno edifício de sua
propriedade, semelhante a uma Ermida,
designado Império, e elemento muito
comum na arquitectura açoriana.
Esta descrição generalizada compreende
os elementos mais regulares do ritual.
Cada localidade, porém, tem a sua
especificidade. João Leal (1994)
analisou os rituais de Santa Maria.
Possíveis origens
Nos ritos que constituem a parte
visível do Culto podem ser percebidas
sucessivas camadas de sentidos, formando
estratificações temporais, provenientes
de épocas diferentes. Supõe-se que, ao
longo dos tempos, terão sido adaptadas e
integradas por diferentes entidades,
como legado tradicional do vocabulário
religioso. Embora os sentidos não sejam
coincidentes na essência, acabaram por
conseguir coalescer na forma, obtendo
uma certa coerência final.
Analisando os modelos actuais,
verifica-se que o conjunto de ritos
através dos quais os valores do Culto
são expressos, baseia-se num vocabulário
alimentar, característico das primitivas
sociedades agrícolas Europeias. Esta
será a sua primeira camada. Correspondia
a um contracto estabelecido com as
divindades protectoras da Terra e da
Natureza, todos os anos selado com a
entrega das primícias de Primavera, ou
os primeiros frutos da Terra, garantindo
assim o direito à utilização das sobras,
sem receios de castigos, durante o resto
do ano. Os elementos simbólicos desse
tempo são também os de agora: cereais,
vinho e carne.
Nas performances do Culto nos Açores,
pelo menos sete diferentes qualidades de
pão marcam situações e intenções
específicas. Os ritos ligados ao vinho
são também expressivos de uma simbologia
agora em desuso, que o Culto do Espírito
Santo retoma. Quanto à carne (do
"bezerro do Espírito Santo"), parece
testemunhar de modo ainda mais evidente,
essa outra perspectiva do sagrado.
A circulação destes alimentos
(manipulação e sacrifício/oferta),
carregada de significações implícitas, é
proporcionada pelos diferentes ritos,
constantes da acção do Culto, obtendo
grande visibilidade em cortejos de
oferendas e refeições cerimoniais. Não
obstante a falta de sentido destes ritos
para a mentalidade e correntes
filosóficas das sociedades em que
tiveram lugar, ao longo das últimas
centenas de anos, a imagem do Culto
continua a ser representada por estas
majestosas refeições cerimoniais.
A raiz arcaica destes ritos manifesta-se
de duas formas: a) na noção de
"sacrifício" visto como "oferta",
acrescida da compulsividade ou
obrigatoriedade do acto (da devolução
das "primícias" aos deuses, por
intermédio dos humanos); e b) na
tradição oral, presente principalmente
nas estórias de "milagres" atribuídos ao
Espírito Santo. O fundo arcaico do
pensamento teológico do Culto é
facilmente descoberto numa análise a
esta matéria (possível de consultar na
Internet, no site citado abaixo).
Uma segunda camada temporal é formada
pelo passado Hebraico do Culto,
omnipresente no ritual, dado o seu
próprio arcaísmo. O significado da data,
as sete semanas após a Páscoa Hebraica,
ou quarenta e nove dias, sendo o
quinquagésimo (em hebraico Shevuoth, do
Grego “Pentecostes”) o da celebração da
saída dos Hebreus do Egipto, a ênfase
colocada nas ofertas de pão e no
sacrifício do bezerro (um “boi jovem”),
são prescrições para esta Festa,
constantes dos Livros Sagrados do Antigo
Testamento (Levítico 23 v 15-21). Mas
muitos outros sentidos atribuídos aos
actos do Culto poderão ter origem
Hebraica.
A terceira camada é composta por ritos
litânicos, preces e cânticos, cuja raiz
parece mais próxima dos procedimentos
Cristãos católicos, e que têm lugar
durante a semana de cerimónias que
constitui cada realização do Culto. A
simbologia da Pomba pode ser um exemplo.
Por último, vários elementos da forma,
assim como o sentido "Imperial", são
atribuídos aos Reis de Portugal, Isabel
e Diniz, que instituem no início do
século XIV, o cerimonial da Coroação,
como um possível símbolo da delegação de
poderes no homem comum.
História
Em 1130 nasce em Célico, Itália,
Joaquim de Fiore, monge eremita que
reinterpretou as Sagradas Escrituras,
apresentando uma perspectiva evolutiva
da humanidade, como progredindo para a
autonomia moral. Passaria por três
etapas, a primeira (Deus Pai)
caracterizada por uma submissão à
religião, a segunda (Cristo) por uma
maior responsabilização do homem no
processo da sua salvação, e a terceira,
a do Espírito Santo, seria baseada numa
visão do homem como capacitado para
gerir uma total autonomia moral.
A nova visão do homem, iluminado pelo
Espírito, motivou movimentos de
igualdade e de solidariedade que foram
assumidos por vários reinos Europeus,
considerando ter chegado a Idade do
Espírito Santo. Cerca de duzentos anos
mais tarde é a vez de Portugal acolher
oficialmente o Culto, através da acção
da Rainha Santa Isabel (1271/1336), que
se difunde facilmente, possivelmente
devido às calamidades e fome que
abundavam.
Gaspar Frutuoso (1522/1590), cronista
Açoriano descreve o primeiro acto
religioso nos Açores (descobertos cerca
de 1430), como tendo lugar ainda a bordo
da embarcação, ao largo de Santa Maria:
uma Missa do Espírito Santo, nome que
depois foi dado ao local onde
desembarcaram.
A circunstância de, durante o primeiro
século do povoamento, ter sido atribuída
à Ordem dos Cavaleiros de Cristo, de
Tomar, não só a responsabilidade sobre o
mister religioso do Arquipélago (ao
abrigo das bulas papais Etsi suscepti de
Eugénio IV, de 1443, e Romanus pontifex,
de Nicolau V, de 1445), mas também a da
educação das populações, assim como a
proximidade existente entre estes e os
frades franciscanos, fez com que o Culto
(do qual os franciscanos eram devotos)
obtivesse a máxima divulgação,
instituindo-se como cultura de base no
Arquipélago.
Só em 1514, com a transferência dessa
autoridade para a diocese do Funchal
(devido à extinção da vigariaria de
Tomar), e em 1550, com a criação da
diocese de Angra, através da bula Aequum
reputamus, começa a delinear-se a
oposição da Igreja ao Culto. Esta
oposição, fruto do espírito gregoriano,
que pretende estabelecer impedimentos à
participação dos leigos nos ofícios
religiosos e demarcar separações entre o
sagrado e o profano, faz com que alguns
aspectos do Culto comecem a ser
classificados como heresias simoníacas,
o que conduz gradualmente à sua
extinção, no continente Português. Nos
Açores, onde o Culto sempre foi
considerado parte integrante da cultura,
a acção depuradora da Mesa da
Inquisição, especialmente durante o
domínio Filipino, mas também
posteriormente, pelos restantes órgãos
da Igreja, obteve diferentes resultados.
Os conflitos e as proibições, assim como
as ameaças de “excomunhão”, pendentes ao
longo de séculos, provocaram, ao invés,
fortes reacções contrárias por parte das
populações, o que terá permitido a
sobrevivência do Culto, que é assumido
como marca identitária.
Uma prova concreta deste sentimento está
presente na acção política da Região:
desde a instituição da Autonomia
Regional dos Açores, em 1976, e por
Decreto Regional nº 13/80/A, de 21 de
Agosto, o Dia da Autonomia (Dia dos
Açores) ficou consagrado como o da
Segunda-Feira do Espírito Santo.
A Diáspora
Dos Açores, o Culto é levado para os
países de emigração açoriana: Brasil,
E.U. da América (incluindo Bermudas e
Havai) e Canadá, continuando a
manifestar-se como elemento aglutinador
da cultura lusa, embora tendo sofrido as
necessárias adaptações às condições
locais.
A exemplo, veja-se como as comunidades
do Brasil, por este país se situar no
Hemisfério Sul, onde o tempo mítico da
Primavera não coincide com o Pentecostal
(distorcendo assim o sentido da
oferta/sacrifício das Primícias, ou
primeiras colheitas), solucionaram o
facto da não coincidência, nem temporal,
nem em substância. Os alimentos que
funcionam como vocabulário simbólico
foram substituídos por outros, retendo o
espírito da dádiva e das refeições
cerimoniais, que marcam notoriamente a
vivência da comunidade açoriana entre as
demais. Num sítio da Rondónia, no centro
da Amazónia, o cortejo da Coroação é
feito de barco. Toda a costa Leste de
Santa Catarina e do Rio Grande do Sul,
para onde emigraram cerca de seis mil
açorianos no século XVIII, é palco de
rituais do Culto do Espírito Santo,
presentemente em trabalho de
investigação na Universidade local. Mas
também o Rio de Janeiro e
principalmente, S. Paulo, evidenciam
grande actividade do Culto.
Já nos E.U. da América, a contradição
gerada entre o espírito de solidariedade
do Culto e a cultura de grande
competição económica local, conduz a uma
adaptação da imagem exterior: o cortejo
da Coroa assume carácter de demarcação
de estatuto social e as grandes
Irmandades da Califórnia, por exemplo,
conseguem posições de prestígio e de
afirmação própria, devido à coesão
interna que o Culto facilita.
Tal como nos Açores, são entidades
independentes, o que dificulta um
conhecimento generalizado sobre as suas
práticas. No entanto, Heitor Sousa, que
durante mais de dez anos foi o promotor
de um encontro de regularidade anual,
entre as Irmandades da Costa Leste (Nova
Inglaterra e Canadá), intitulada a
“Celebração das Grandes Festas do Divino
Espírito Santo da Nova Inglaterra”, que
têm lugar na última semana de Agosto,
conseguiu ao longo deste tempo fazer
reunir cerca de cento e vinte e cinco
Irmandades (no ano 2000, congregou 75 da
Nova Inglaterra e 50 do Canadá), num
total de participantes que varia entre
vinte a cinquenta mil pessoas. Nesta
celebração original, onde aparentemente
o Culto teria sofrido uma
descaracterização, passando de festa
comunitária a grande encontro social,
são no entanto reproduzidos dois ritos
nucleares: (1) a distribuição gratuita
de alimentos simbólicos (Bodo de Leite),
que tem lugar no Sábado de Festa, no
grande largo da Igreja de Fall River,
onde a “massa sovada” (um pão doce) e o
leite (devidamente acondicionados
segundo as prescrições higiénicas
locais) são partilhados com quem os
queira receber; e (2) a cerimónia da
Coroação, que tem lugar no Domingo,
durante a Missa, geralmente oficiada por
uma alta dignidade (Arcebispo ou
Cardeal), a que se segue o Cortejo da
Coroação, no qual são incorporados
representantes de altos cargos políticos
dos dois países, e que percorre as ruas
da cidade, por entre multidões.
O Canadá apresenta uma distribuição,
entre Vancouver e Montreal, de cerca de
quarenta Irmandades (recenseadas), cuja
realização dos rituais mantém
configurações mais semelhantes aos
modelos tradicionais açorianos, retendo
até a participação dos foliões, elemento
já pouco comum nos Açores.
Investigadores do fenómeno nos Estados
Unidos são unânimes em afirmar que, de
um modo geral, o Culto conserva as
características nucleares, visíveis nos
Açores, tanto na prática religiosa
executada por leigos como na afirmação
identitária e comunitária, e no uso de
alimentos e arte efémera sob a forma de
metáfora, na divulgação da sua mensagem.
Tendo passado ao Oceano Pacífico, o
Havai é sede de uma organização de
Irmandades do Espírito Santo que
festejou um centenário em 1991.
A regularidade do fenómeno sugere que
pelo menos parte da coesão verificada
entre as comunidades de emigrantes
açorianos, nos países de acolhimento,
possa ser explicada pela aderência à
prática continuada do Culto do Espírito
Santo.

A Dra. Zelinda de Lima
durante a leitura do seu trabalho de
pesquisa
Na mesma tónica, foi a comunicação
seguinte, desta feita a cargo de Carlos
e Zelinda de Lima, historiando o Divino
com outra perspectiva. Vejamos:
Clicar aqui p/ ver
o texto sobre o Espírito Santo