O Portal da Festa do Divino Espírito Santo

Festa do Divino Espírito Santo

Carlos de Lima

Foi trazida para o Brasil no século XVI, segundo Câmara Cascudo, e existe , praticamente, em todos os estados. Popularizou-se a ponto de ter dado motivo a que José Bonifácio astutamente haja escolhido para Pedro I o título de Imperador, e não Rei, "porque o povo estava mais habituado com o nome", por causa do Divino. (Cascudo). Mas o caráter mais antigo destas festas vai-se progressivamente perdendo. As folias quase desapareceram. O terço entoado pelas ruas é substituído pela filarmônica. Ao pobre que pedia sucedeu a menina de luvas  e vestidos de tule. As moças casadoiras, em grande toalete, são agora os "pajens da coroa. Tal igualmente vai acontecendo no Brasil. Das festas de Mataporcos (bairro do Estácio), do Campo de Santana e da Lapa do Desterro (Glória), no Rio de Janeiro, de 1853 a 1855, dá-nos Melo Morais Filho uma descrição minuciosa em uma dezena de páginas de seu livro "Festas e Tradições Populares do Brasil": a música dos barbeiros, escravos negros, com suas quadrilhas e fandangos; o mastro encimado por uma pomba prateada e, a baixo, a bandeira do Divino; a foguetaria e os repiques de sinos; as cantigas (cantorias), a coroa, as fitas, etc.

"A pombinha vai voando a lua a cobriu de um véu, o Divino Espírito Santo  pois assim desceu do céu."

"Nos ranchos, um rapazola ia com a bandeira, sendo as vestimentas de todos casaca e calções escarlates com galões de ouro, colete de seda branca debruada de cores, sapatos baixos de fivela, chapéu de feltro de copa afunilada e abas largas, ornado de fitas, distinguindo-se o porta-estandarte por vestuário mais pomposo e pelo grande tope de flores, pregado no chapéu, de forma diferente." Dos bandos da "folia" à hora em que, "na casa do festeiro roncava o baile", passando pela eleição das mesas das Irmandades, os leilões, a missa, até os "doze velhos cabeçudos, com suas competentes lunetas, casacas de rabo de tesoura e botões de papelão, andando curto, arrastando os pés, que seguiam para o tablado, às risadas dos espectadores, que lhes aplaudiam os desgarres", figuras egressas das antigas festas religiosas tradicionais de Portugal que, decadentes as do Divino, acabaram, depois, por refugiar-se no Carnaval brasileiro. O Campo de Santana sintetizava o grosso da função: na rua de S.Pedro uma fila de barracas assemelhavam ter os tetos de fogo e nas portas e balcões os vendedores de sorte e de comidas gesticulavam e gritavam como possessos; as lanterninhas das quitandeiras faiscavam, as músicas estrondavam e "a multidão com suas vestimentas pitorescas, apinhada no chafariz que aí existia, ou movendo-se em grupos, lembrava um quadro de mestre da escola veneziana. Quando as luminárias acendiam-se, o campo regurgitava de curiosos e de gente que comprava sortes, ceava nas barracas, caminhava ao acaso e recebia entradas" para as barracas que exibiam desde ginástica e quadros vivos, mímicas, pirâmides humanas, volteios eqüestres, teatrinho de bonecos, comédias, e mágicas. "No império, o imperador, com seu manto verde e sua coroa dourada, dominava no meio de sua corte... Eis o que era naquele tempo a festa popular do Divino, quando a nossa sociedade não tinha a pretensão de querer impor-se pela decadência de seus costumes e pelo enervamento de seu senso religioso" - lamenta. Vitorino Nemésio, em "O Segredo de Ouro Preto e outros ensaios", depõe como partícipe da festa do Divino no Encantado, em Inhaúma (Rio), realizada no dia 8 de junho de 1852. "Jamais prosa ou voz viva descreverão capazmente esta romaria a ilhéus atrás de uns vitelos enfeitados, ao comprido de subúrbios fragosos de uma metrópole de milhões de, no suor e no pó de uma fila compacta de festeiros, rente aos camiões e bondes de uma população sortida e alegre que traja à frescata." Porque são os descendentes dos açoreanos, que há mais de cem anos talham bifes e churrascos nos açougues cariocas e fundaram o Império do Encantado, os que agora fazem a festa. "Hoje os netos de Ti João da Ilha e de Tiazé ainda desfilam ao som do Pezinho, no milagre da fé milenária enriquecida e transmitida - perene!"

"Abençoai a todos nós com a vossa divindade" entoam os cantadores.

Diversos Impérios houve no Rio de Janeiro: no largo do Estácio, o da Floresta, o de Maracanã.

O ten. cel. Lima Figueiredo, em "Cidades e sertões" transcreve crônica de Otávio Tavares sobre o festejo do Divino no lago Janauacá, Amazonas: "Numa canoa engalanada com folhas de palmeira e totalmente iluminada com lanternas e papéis coloridos são colocadas as insígnias do Divino. Noite escura. Acompanhando aquela canoa, mil outras, de todos os feitios, desde a ubá fragílima até a igarité de fundo chato, e menos perigosa, coalham o lago, "dando a impressão de que há boiando pequeninas ilhas floridas. Terminada a procissão são colocados dispositivos cheios de azeite protegidos com papel de seda de todas as cores - e acesas as grisetas (Griseta - Lamparina ) - o lago toma um aspecto grandioso oferecendo-nos uma orgia de cores como se houvesse tombado sobre ele um arco-íris aceso e partido aos pedaços, cujos fragmentos ficassem a boiar, a boiar, dentro da moldura tenebrosa das selvas..." Assemelha-se aos "Irmãos da Canoa", Irmandade que promove os festejos do Divino em Tietê, S. Paulo, que Alceu Maynard Araújo descreve em seu "Documentário Folclórico Paulista": "Sociedade sui generis - uma confraria sem estatutos, sem reuniões, sem diretoria eleita (apenas com um presidente perpétuo, o ilustre folclorista e historiógrafo Benedito Pires de Almeida), porém onde há disciplina e fraternidade. Embora se dividam em dois grupos: irmãos do rio acima e do rio abaixo, sob o mesmo uniforme se unem todos os devotos, irmãos de uma só Irmandade - a do Divino Espírito Santo. Dirigem-na o mestre e o contramestre, também denominado "Irmão Andante". Figuram ainda o trio indispensável: "bandeireiro", alferes da bandeira do Divino, e "folião", violeiro, chefe da "folia , grupo angariador de esmolas (constituído por meninos, com caixa e ferrinhos) e o "salveiro" que, com trabuco, dá "salvas", as descargas louvadoras ao divino patrono. Quarenta e cinco dias antes da festa, os grupos vão esmolar, rio acima e rio abaixo, dançando o religioso "cururu" (Cururu - Dança, canto em desafio, relacionados com as festas religiosas no plano da louvação popular.) e, quando remam, cantando a "serenga" (Serenga - Canto sem palavras, dando a impressão de cantochão, ajudando a ritmar as remadas.). No último domingo do ano é o dia máximo da festa - há o encontro das canoas. Das que angariaram donativos rio acima e rio abaixo. (...) há o "encontro". Os rojões sobem, as bombas espocam ensurdecedoras e a multidão delira. Findo o encontro as canoas voltam para o Porto Velho, onde os irmãos da canoa, festeiros, autoridades religiosas, civis e militares desembarcam, rumando com milhares de pessoas, em procissão, conduzindo o Divino até à matriz. Os romeiros com seus tradicionais uniformes brancos, carapuça vermelha, descalços, remos arvorados, penetram na igreja. Há uma cerimônia religiosa." Em Santa Catarina a festa, sendo a mesma, toma tons diferentes: "Da Bandeira pendem fitas multicores, que na sua romaria são acrescidas de outras fitas ofertadas pelos fiéis; da orquestra constam o tradicional bombo, de batida característica, sem faltar a rabeca, de som indispensável na orquestra, o violão, a viola com suas quatro cordas, a gaita, os pandeiros e a cantoria pelo mestre, que, além dos versos tradicionais, improvisa, homenageando pessoas importantes que prestigiam as bandeiras". Mas até a queixa é a mesma: "Não revestida com as formalidades e simbolismo do passado, quando em cada povoado uma comissão de irmãos da Irmandade do Divino, portando as suas "opas", acompanhava o grupo de "foliões" na sua tarefa de recolher ofertas." (Doralécio Soares, "Folclore Brasileiro". Em São Paulo, segundo Hélio Damante (Folclore Brasileiro), "é intrinsecamente pobre, limitando-se ao grupo de cantadores e músicos, que dão seu recado, levam o Divino, enfeitado de fitas, a percorrer as casas, e depois se despedem "até o ano que vem", como nestes versos, recolhidos em Mogi das Cruzes:

O Divino se despede nesta hora de alegria. Se despede e vai deixando esta rica companhia.

Viola, cavaquinho, caixa, reco-reco incluem-se no instrumental". Em Goiás festeja-se o Divino em várias cidades: em Pirenópolis, desde o ano de 1819 existe a festa do Divino, que compreende novenário, procissão, mastro, e naturalmente, Imperador e Mordomos, além da Coroa e Bandeira. Mas, o que caracteriza a festa do Divino de Pirenópolis é a presença de 80 a 120 cavaleiros com máscaras de papelão na forma de cabeças de boi, enormes chifres ornados com flores de papel, vestindo roupas coloridas, que percorrem as ruas durante tardes e noites, do sábado à terça-feira, e se apresentam no "campo das cavalhadas". "Na terça-feira, ao final dos festejos, sairão atrás da Banda de Música até à casa do imperador, para, juntamente com muitas outras pessoas envolvidas,"entregar a Festa". (Carlos Rodrigues Brandão, "O Divino, o Santo e a Senhora") As festas populares e tradicionais não podem ser apenas consideradas "eventos", pois, como dizem Francisco Weffort e Márcio Souza ("Um olhar sobre a cultura brasileira") "das mais tradicionais às mais modernas , deitam raízes profundas na vida dos grupos que as promovem". É lícito supor que o culto ao Divino Espírito Santo tenha sido trazido ao Maranhão pelos primeiros açorianos que aqui chegaram, em duas levas: a primeira em 1620, trazida por Manuel Correa de Melo, por conta de Jorge de Lemos Bittencourt, e a segunda por Antônio Ferreira Bittencourt, no ano seguinte, partes da imigração de 200 casais que viriam construir dois engenhos de açúcar, plano do provedor-mor do Brasil Antônio Muniz Barreiros. No Estado o Divino é cultuado em várias localidades, principalmente na capital e em Alcântara. Na cidade destacam-se, entre outras, as festas promovidas pela "Casa das Minas" e pela "Casa de Nagô", dois templos de culto afro-brasileiro. Em Alcântara alcança grande brilho, muito embora não tenha mais a pompa dos tempos da nobreza imperial da velha cidade, quando até 13 festeiros por ano promoviam disputa para fazer a melhor figura. Hoje, se aparecem 3 dispostos a essa responsabilidade, são muitos! Os festejos do Maranhão distinguem-se dos demais pela presença marcante das "caixeiras", geralmente senhoras idosas que, com toques característicos, acompanham os cortejos, ruflando grandes caixas, no feitio dos antigos tambores militares. São em número variável, de 6 a 10, e são elas que tiram as cantigas, quase sempre improvisadas. Sobre a festa de Alcântara temos dois trabalhos publicados: "A festa do Divino Espírito Santo em Alcântara (Maranhão)", em 2a. edição de 1988, e " Festa do Divino", de 1999, "um roteiro a altura da sabedoria dos melhores "mestres-salas" (segundo a folclorista Maria Michol Pinho de Carvalho), organizado, com a audiência de antigos moradores de Alcântara, do domingo de Pentecostes (primeiro e último dia da comemoração), dia a dia, passo a passo, com o único fim de proporcionar às novas gerações o esquema do tradicional festejo, para que seja ele realizado com, pelo menos, as mínimas obediências aos padrões antigos. Seria fastidioso repetir aqui, para Alcântara, o que foi copiosamente dito acerca do Divino em outros lugares. Falemos apenas das diferenças existentes: O Império compõe-se de 13 pessoas: 1 Imperador (que a cada ano se alterna com 1 Imperatriz), 1 Mordomo-Régio e 5 Mordomos-Baixos (Mordomas, no caso da Imperatriz). A cor oficial do Imperador é a vermelha; o verde, a do Mordomo-Régio. Os demais adotam o azul-claro, ou o rosa. Integravam a Folia petitória, que antigamente percorria léguas e léguas de estradas, 1 bandeireiro, 3 caixeiras, 3 bandeireiras (meninas), 2 cidadãos de confiança e carregadores para o transporte das ofertas, além do "Vicente", um menino que recolhia as esmolas em dinheiro, assim chamado (não se sabe porquê) fosse Pedro, João ou Marcelo. Tais folias não mais se realizam, pois as oferendas são cada vez mais raras, seja pela apertura geral, seja pela religiosidade que parece minguante, não compensando as despesas da viagem. Foram-se os bons tempos em que os devotos ricos davam dois, três bois para a festa, capoeiras inteiras de galinhas, de presente para o Divino. O fazendeiro, hoje, nas mais das vezes "gente de fora", não acredita mais nos poderes do Divino, opera no open-market, acessa a Internet, pertence à UDR. Por outro lado, é muito perigoso, impraticável mesmo, andar por ínvios caminhos carregando uma coroa de prata... se nem os santos antigos têm assegurada sua permanência nos nichos das igrejas! Na quarta-feira, véspera da Ascensão, dá-se a chegada do mastro ao porto do Jacaré: sob intensa foguetaria e música da banda, salta do barco um tronco de 10 metros, ornamentado com ramos de murta e é conduzido aos ombros de uma vintena de caboclos e cavalgado por inúmeras crianças. O cortejo de festeiros, caixeiras, músicos e toda a multidão de gente percorre as ruas da velha cidade até atingir o local apropriado, onde é erguido, plantado e enfeitado com cachos de banana e cocos da praia. No topo, aberta ao vento, oscila nos gonzos, tangida pelo vento, a bandeira do Santo, com a coroa, ou a pomba. Durante o percurso as cantoras tiram versos e os carregadores respondem com o refrão:

"Que bonito pé de mato (arê, arê-ê-ê-ei - a) que a natureza botou (arê, are-ê-ê-ei - a) para me servir de mastro (arê, are-ê-ê-ei - a) para o nosso Imperador (arê, are-ê-ê-ei-a)"

As mesas de doces são uma história à parte pela criatividade de seus autores - Antônio Tavares, Ênio Aymoré Ramos, Diógenes Ribeiro e outros tantos que deixaram fama de grandes decoradores, substituídos por D. Mariazinha Bastos, Antônio Tavares Neto, Gerson Brito etc. e onde se destacam os excepcionais "doces-de-espécie", simples ou duplos, no feitio de folhas, cestos, bichos etc. etc., receitas e habilidades transmitidas de geração a geração. E as "prisões"? A mando do Imperador, um vassalo, com seu séqüito, vai à casa de um Mordomo "prendê-lo". Cada "preso" incorpora-se ao cortejo, ao som dos cânticos das caixeiras e gritos do povo... e vai ao próximo Mordomo. Por fim, todos visitam o mastro, onde, para se libertarem, pagam prendas ao Divino. E as "visitas" dos Mordomos ao Imperador? À porta de cada Mordomo, grita o Mestre-Sala: "- Viva o Mordomo em trânsito! E toca-se um trecho do Hino Nacional. Assim vão, de casa em casa, à luz mortiça das espaçadas lâmpadas de Alcântara e dos fogos de artifício e das lanternas de papel colorido, até ao Imperador, que sai ao encontro da farândola folgazã, e, entrando todos à casa, tem início o baile e os comes-e-bebes até à madrugada! Haja fôlego para tantos folguedos, pois todos os dias da semana são dias de prazer e de alegria! Mas, ainda há o domingo-do-meio e outra semana em que o Imperador retribui as visitas dos Mordomos, e são novos desfiles e bailes, para chegar, finalmente, o grande dia - o domingo de Pentecostes: missa às 10, o Imperador de azul-marinho; Mordomos de ternos escuros; os mais, de vermelho, até as pombinhas, obrigadas à regra, engraçadas nas suas jaquetinhas rubras, aninhadas nas bandejas! O almoço do dia é vário e farto, toda a tradição da cozinha portuguesa apurada pelo negro e pelo índio: a galinha assada, de molho pardo, o vatapá, o bolo de arroz, as tortas (fritadas) dos gostosos camarões de Alcântara, com o acompanhamento indispensável da farinha d'água... e o molho de pimenta grosso pedindo grogue, e o vinho à vontade, que os festeiros têm mão-aberta, o governo deu ajudazinha, os fiéis cooperaram, o comércio também; os doces variados, de coco, de buriti, de goiaba, nas compoteiras antigas remanescentes de outras festas, de outras casas, de outra gente rica e poderosa... branco no Senado da Câmara, pretos no eito plantando algodão, Sinhozinho em Coimbra estudando "leses"! Mas... todos para igreja. Sai a procissão: o rapaz com a bandeira grande, o andor de seda brilhante, em cujo nicho de abriga a Coroa fulgindo ao sol, levado por quatro moças em toalete de gala, seguido pelo Imperador fardado, botões dourados, dragonas, luvas, cetro, o manto escarlate, guardado por dois vassalos, de roupa cinzenta e faixas verde-amarelas atravessadas ao peito. E os Mordomos com seus séqüitos e a orquestra e o povo. De vez em quando estronda um foguete de taboca. Nas janelas as pessoas rezam e se benzem... O Divino vai passando, misericordioso, dispensando bênçãos, concedendo graças! Recolhe-se a procissão. Realiza-se o "pelouro". São revelados os nomes dos próximos festeiros. No dia seguinte o Imperador irá de casa em casa investindo nas funções os escolhidos. Acabou-se a Festa do Divino. Outra Festa do Divino está começando.