Entrevista
(Edição nº18)
Estamos entrevistando neste mês o
antropólogo e pesquisador Eugenio Pascele Lacerda,
doutor em Antropologia Social pela Universidade de Santa
Catarina, analista de projetos culturais da Fundação
Catarinense de Cultura, pesquisador do Núcleo de Estudos
Açorianos e do Núcleo Arte, Cultura e Sociedade na
América Latina e Caribe da UFSC. Eugenio vai nos falar
sobre o seu livro
"Bom para brincar, bom para comer - a polêmica da farra
do boi no Brasil",
recém-publicado (2003) pela editora da UFSC.
O livro é resultado de uma pesquisa etnográfica feita
para a sua dissertação de Mestrado (UFSC) nas
comunidades pesqueiras do litoral de Santa Catarina.
Para a elaboração das perguntas contamos com a
participação especial dos
antropólogos Allan de Paula Oliveira, Rita de Cácia
Oenning da Silva e Tereza Franzoni (*).
>> Rita / CVA -
A
Farra do Boi e a Festa do Divino Espírito Santo são as
práticas rituais mais visíveis das comunidades
tradicionais do Estado de Santa Catarina,
permanecendo vivas na cultura local e mobilizando as
pessoas para além do espetáculo turístico. A Farra, no
entanto, diferentemente da Festa do Divino, não é
incentivada; ao contrário, vem sendo amplamente
reprimida e criminalizada. Como a Farra do Boi é
percebida pelas demais comunidades estudadas por você na
sua tese de doutorado e por que na Ilha de SC ambas as
práticas, a Farra do Boi e a Festa do Divino, ainda que
estejam ligadas a rituais sagrados e profanos, tomam
caminhos tão distintos no entendimento da sociedade
abrangente?
Eugênio - Na pesquisa do doutorado (www.musa.ufsc.br/eugenio.htm),
não mirei a farra do boi no trabalho de campo, mas esse
assunto sempre vinha à tona mesmo que não provocasse. A
farra do boi está na ponta da língua dos nativos da ilha
de Santa Catarina: tornou-se o signo de um discurso
eminentemente localista. Mesmo os que não a praticam
tendem a valorizar as tradições locais, por sentirem-se
genericamente atacados em seu modo de vida. Nas
localidades onde ainda ocorrem farras e portanto, há
farristas, notei uma defesa incondicional do rito, visto
e subscrito pelos nativos como algo fundamental de sua
identidade em relação aos outros, sejam comunidades da
Ilha onde não mais se pratica, sejam os outros chamados
“de fora”.
Quanto ao “Divino” trata-se de um rito que ocorre por
todo o Brasil, muito recorrente e variado. Revestido de
solenidade litúrgica e uma sociabilidade típica das
festas populares brasileiras, não catalisa a polêmica da
farra que, embora seja praticada pelos mesmos nativos,
devotos do Divino (algo invisibilizado na opinião
pública), constitui e discute temas liminares à
sociedade envolvente como a violência ligada ao
sacrifício, libações comunitária e noturnas,
transgressões de sentidos e também de territórios.
De todo modo, a incursão por várias freguesias da Ilha,
remeteu-me a três eventos rituais emblemáticos da
sociabilidade e da cultura do ilhéu:
a farra do boi,
ligada ao mundo da diversão, da terra, do mato, do ócio,
da ferocidade e do sacrifício animal;
o
culto-festa do Divino,
ligado ao universo mágico-religioso, sinal (emblematizado
pela pomba e bandeira peditoria) dos ventos do Espírito
(império posterior ao do Pai e do Filho), sendo também o
espaço privilegiado de execução das promessas;
e
a pesca artesanal da tainha,
ligada ao mar e ao mundo do trabalho como camaradagem.
Onde houver uma localidade litorânea em Santa Catarina,
cuja população seja, em sua maioria, de ascendência
açoriano-brasileira, estes três eventos rituais estarão
presentes e combinados em suas mais variadas formas.
Desta forma, o “Boi”, o “Divino” e a “Tainha” podem ser
tomados como síntese da cosmologia ilhôa, isto é, como
cifras da visão de mundo do ilhéu, informada por crenças
em seres fantásticos que se metamorfoseiam, onde pontuam
bruxas, lobisomens, borboletas, maus-olhados e
bem-querências.
>> Rita / CVA - A partir ainda da pesquisa sobre
a diáspora através do Atlântico dos povos
autodenominados 'açorianos', como se pode pensar a
construção das trajetórias e das identidades dentro dos
contextos migratórios estudados (SC/Brasil-Açores,
EUA-Açores)? Como, na perspectiva acima, a farra do boi
representa continuidades ou rupturas dos modos de vida
específicos e dos rituais dentro destes três universos
culturais distintos?
Eugênio - Nestes contextos tão diversos, aquilo
que aparece sob o plano discursivo e politicamente
apropriado como a “açorianidade”, acaba por traduzir-se
numa espécie de identidade virtual onde predomina o que
Appaduray chama de “comunidades de sentimento”. Neste
sentido trata-se menos de um movimento transnacional com
ideologias definidas e mais a presentificação, aqui e
ali, de imagens auto-construídas e recorrentemente
evocadas de pertencimento, filiação cultural e busca por
reconhecimento.
Quanto à farra do boi ela é, quando evocada, incluída
tacitamente no repertório cultural das comunidades da
diáspora, pelo menos daquelas que a identificam com as
touradas populares do Arquipélago.
Não há rupturas, mas inclusividade e adoção ou filiação,
em nome de tudo o que é considerado legado da imigração.
Em realidade, estes processos têm a ver com os fenômenos
globais de reelaboração e invenção de culturas locais.
>> Allan / CVA - De que forma a farra do boi e
o boi-de-mamão se integram enquanto práticas
identitárias? De que forma a repressão ao primeiro pode
interferir no segundo?
Eugênio -
“Do boi-de-campo, eu já fiz muito boi-de-pau”!
Foi assim que um nativo farrista me respondeu quando
perguntei sobre a farra e o auto do boi-de-mamão
(boi-bumbá brasileiro).
Costumo dizer que há um parentesco entre o boi que dança
e o boi que luta.
Num, o comparecimento é simbólico; noutro, a presença
in natura re-edita o velho enredo da morte e
ressurreição do boi, tão fulcral nas práticas rituais
populares brasileiras. Em ambos, realiza-se o ato de
“brincar”, ato performativo de toda a sociabilidade,
marca identitária entre os açoriano-brasileiros.
Penso que a repressão não interfere diretamente, mas em
15 anos de polêmica, já vi muitos argumentos em que a
dança popular do boi é vista como o lado saudável e
folclórico dos ilhéus, enquanto que a farra, sinônimo de
degeneração, desabonaria a imagem exoticamente
construída do “manezinho” como gente pacata e
hospitaleira. É uma outra dissociação imposta aos mesmos
atores que, em sua cultura local, são ao mesmo tempo,
farristas, devotos, camaradas, cantadores e também podem
se transformar em “bruxas ou lobisomens” de acordo com
seu imaginário de origem medieval. Quer dizer: esta
fragmentação das práticas cotidianas e das
representações dos atores sobre si próprios, são
construções exteriores ao universo nativo.
>> Allan / CVA - Fala-se muito em violência
contra o boi. Como os próprios atores, os farristas,
vêem esta questão? Não seria uma forma de produção de si
através da predação do animal? É possível pensar numa
homologia entre a farra do boi e as formas de produção
da alteridade, observadas em sociedades das terras
baixas da América do Sul e que, muitas vezes, operam
sobre o terreno que nós, etnocentricamente, chamamos
violência?
Eugênio -
No discurso nativo, “judiar” do boi é um ato de
selvageria, enquanto que “brincar” de/com o animal
define o que é uma farra do boi, ou melhor, define o
boi-no-campo, antigo nome da farra.
De modo que a violência, no sentido banal é rejeitada,
eu diria, em nome de uma violência sacrificial, onde um
animal, tido como estrangeiro é familiarizado pela
operação do sacrifício, o que significa tornar sagrado,
pelo combate e pelo banquete, algo que estava imerso no
mundo da insignificância.
Quanto à predação, acredito que a formulação é
extremamente válida, isto é, os farristas, produzem a si
próprios, no rito, ao tornarem-se, como os bois bravos,
igualmente infernais, incapturáveis, diabólicos. Neste
sentido, a predação, simbolizada como ato canibal, reduz
a relação de alteridade a um espaço de identidade. No
entanto, a predação, assim como a reciprocidade, no
universo ameríndio amazônico, constituem princípios
estruturais, parecem governar as formas de
sociabilidade, a relação com o exterior e com os seres
divinos. Seria preciso comparar as cosmologias para
inferir alguma homologia em termos de sociedade. É uma
excelente questão de pesquisa porque sabemos, a partir
da literatura etnológica, de crença generalizada nas
Américas, sobre o ideal de capturar substâncias,
identidades ou alguma energia do outro.
>> Allan / CVA - Na sua tese de doutorado,
você mostra como a sociabilidade açoriana se fundamenta
sobre um forte caráter jocoso. Qual a extensão desta
jocosidade? Em que momentos ela aparece mais? A farra
seria um deles?
Eugênio - Na pesquisa realizada, a sociabilidade
ilhôa foi caracterizada a partir dos espaços sociais
locais (freguesia, vizinhança, ensaios da banda,
novenas, festas); dos tempos e eventos rituais (festas
do Divino, pesca da tainha, eleições); das agressões
performáticas (jocosidade verbal, rivalidade entre
grupos); dos mecanismos de troca e quitação de
dádivas/dívidas (votos, favores, ajudas); das relações
“clientelistas” e do significado das promessas; e,
finalmente, das próprias falas nativas sobre o “outro”,
seja o “camarada”, o político, o morador de fora ou o
próprio santo. Neste contexto, encontrei certas formas
básicas de interação social, todas embebidas umas nas
outras, de modo que não se pode separá-las, a não ser
analiticamente. Estas formas básicas traduzem relações
explícitas de jocosidade, rivalidade, cooperação,
hierarquia e troca de dádivas, dívidas e promessas,
sendo estes os núcleos constitutivos da sociabilidade
entre os ilhéus.
No caso específico da jocosidade, propus a perspectiva
de vê-la, não à maneira clássica, como um tipo de
parentesco, mas como um gênero de interação (p. e., a
narração de piadas seria outro gênero). Nessa
perspectiva, mais atenção é dada aos aspectos
performáticos das relações às mudanças de enquadre
(frame) nas situações de fala, etc. Eis aqui um
tema pertinente à chamada “etnografia da fala”. Assim,
sendo a jocosidade uma forma generalizada de interação,
anotei a sua ocorrência nas festas religiosas, nos
botecos, nas ruas, ranchos de pesca, dentro das
embarcações, nos encontros de família, nas mesas de
dominó, nos bingos entre mulheres, nos jogos de futebol
de várzea, nos programas locais de rádio, entre
criadores de pássaros, nas repartições públicas, na
profusão dos apelidos e, naturalmente nas farras do boi.
Nessas situações, onde predomina a interação face to
face, sabe-se perfeitamente quando o enquadre vai
mudar da pura mentira para o insulto verbal, de um tipo
de riso a outro, da conversa sem narrador ao narrador de
platéias, e assim por diante.
>> Tereza / CVA - A "farra do boi" foi descrita
por alguns pesquisadores como signo de resistência
cultural ; no entanto, os conflitos em torno da "farra
do boi" vêm se transformando, incorporando novos atores
e inserindo-se em contextos bastante diversos. Você
diria que a "farra do boi" pode ser considerada, ainda
hoje, um signo de resistência? Por que?
Eugênio - Não tenho muita predileção pela noção
de resistência cultural. Ela (pre)supõe uma força
unívoca e centralizada (como o Estado, a Sociedade, o
Poder, etc) e uma idéia de ação militante, como se já
estivesse implícita nos grupos sociais. Ela pode ter um
caráter descritivo em situações de conflitos nítidos em
dado momento, mas não tem rendimento analítico. Na
primeira parte dos anos noventa, pode-se dizer que os
farristas resistiam teimosamente em manter suas farras,
em nome das classificações a que eram submetidos e por
sentirem-se visados, como bodes expiatórios. Nessa
época, os nativos alegavam que eram "farristas" para
justificar a continuidade do costume. Hoje, além desta
alegação, dizem também que são "manezinhos" e/ou
"açorianos". Resulta que as farras tornaram-se mais
claramente signos de identidade local, servindo como
diacrítico e, seu uso, difundindo-se por outros setores,
como imprensa, políticos, redes de ensino, autoridades
locais e organizações culturais do litoral. |