Vale da Senhora da Póvoa
(Vale de Lobo)
Usos e
Costumes
Uma
das festas tradicionais que se realizam em Vale de Lobo , eram as
Folias, festas dedicadas ao Espírito Santo, e, o Dr. Jaime Lopes
Dias, na sua obra “Etnografia da Beira”, na página 85, Volume I, em
1944, escreve o seguinte:
Vem de tempos
distantes a devoção e as festas em honra do Espírito Santo. Instituídas em
Alenquer pela Rainha Santa Isabel, difundiram-se e arreigarram-se
por tal forma no nosso país que as próprias providências régias
contra os bodos se curvaram perante elas, consentindo-lhes o que a
nenhumas outras era permitido.
E por isso, se muito raras são as
povoações que o não adoram em capela em capela própria ou em altar
privativo na Igreja Matriz, igualmente em muitas se mantêm , como
forma de adoração, velhos usos que, na sua origem, devem filiar-se
em antigos cultos politeísticos.
Quem, ainda hoje, em qualquer dos domingos
ou dias santificados que vão da Ressurreição ao Pentecostes,
percorrer algumas povoações do distrito de Castelo Branco,
encontrará vestígios, mais que evidentes desse culto, na folia,
espécie de confraria, meio sagrada, meio profana, instituída para
implorar a protecção divina contra pragas e malinas que às vezes
infestavam os campos.
Banido do seu ritual e indumentária o que
tinha de mais irrisório, a folia compõem-se de um rei, um pagem, um
alferes, dois mordomos e seis fidalgos. Tem uma bandeira com sua
oleografia ou bordado onde o Espírito santo é representado por uma
pomba, uma varinha de madeira guarnecida com fitas de seda e flores
artificiais, e uma coroa de lata igualmente ornamentada com fitas e
flores.
O rei leva a varinha, o alferes a
bandeira, o pagem a coroa, os mordomos cada um sua lanterna, um dos
fidalgos o tambor e, igualmente, outros fidalgos, uma pandeireta e
uma viola, nas raras localidades onde estes instrumentos eram
usados.
Em todas as festas e procissões, os
fidalgos, divididos em dois grupos: o fala ou sonora, e o segundo
contra baixo ou falsete ou tipi, não deixam de entoar seus cânticos
próprios e característicos com versos por ele improvisados ou
herdados de seus antepassados.
Providências recentes do Episcopado
proibiram a exibição das folias.
Cantavam assim o Credo:
I
II III
Todos devemos estar firmes
Palavras de Deus escritas Estas são certas e boas
Crentes em nossa
fé Quem as aprendeu as sabe
E advertidas na terra
O que vemos e não vemos São
três pessoas divinas São três pessoas distintas
Devemos crer que assim é. As
da Santíssima Trindade Que um só Deus encerra
IV
V VI Pois a segunda
pessoa É um Deus que tanto
pode Tomou a humanidade Chama-se Verbo
Divino E o seu poder é
tanto O que não foi de varão A quem devemos
amar Que se veio fazer
homem Tudo por sua vontade A toda a hora e
contínuo Por obra do Espírito
Santo Para a nossa salvação
VII
VIII IX Sua mãe, Nossa
Senhora Milagre tão espantoso
Perseguido dos judeus A seus peitos o
criou, Que deste mistério
sai Que foram falsos à fé, Concebeu e
gerou, Sendo Deus tão
poderoso Não teve pai enquanto Deus E sempre Virgem
ficou Como homem, não teve pai Mas
teve mãe que o mesmo é
X
XI XII Nosso Senhor
nos mostrou Morreu verdadeiramente.
Tornou a ressuscitar Sinais da sua
paixão, Como isto é
verdade, Da sexta para domingo, Foram tantos e
tais Corpo e alma
presente, E logo, no mesmo instante Que não têm
comparação Junto com a
Divindade. Tirou as almas do Limbo.
XIII
XIV XV A sua Luz foi
aviso Há uma Igreja
católica, Outros mais altos mistérios Que a todos
alumiou, Da congregação se
trata, Se contêm nesta doutrina, Abrindo-se o
Paraíso A cabeça desta
paróquia Deixou-os Deus sem remédio Para quem tanto
o esperou É o pontífice – o
Papa E na Igreja a Medicina
XVI
XVII XVIII
A comunicação
dos santos Remissão dos
pecados? É bem feita a confissão, E dos
Bem-Aventurados, Deixou-a Deus na nossa
mão, Havendo arrependimento, Seus
merecimentos são tantos Para sermos
perdoados Acusando-se o pecado Que são nossos
advogados Por meio da
confissão E confessando-o a tempo
XIX
XX XXI Quem houver de
comungar Salvo se alguém se achar
Já depois da comunhão, Deve de estar
em jejum, Numa doença tão
grave, Um tão alto sacrifício, Para bem
receber Que haja de
comungar, Recebamos com atenção O nosso bom
Jesus. Em caso de
necessidade Um tão alto benefício
XXII
XXIII Ressurreição da
carne, Há uma vida eterna Depois de todos
os mortos, Lá no dia do Juízo É certo e é
verdade. Os maus irão ao
inferno Que tornam as
almas aos corpos Os bons para o Paraíso Cantavam assim,
o Bendito e Louvado: I
II III
Bendita e louvada
seja Vós, sendo filha de
Adão Sois a açucena mais pura A conceição de
Maria Sois da culpa
reservada Que Deus no Jardim criou Que dos anjos é
senhora Porque na mente
divina Por serdes um feliz sacrário E dos homens é
guia Sois pura e
imaculada Onde o Verbo encarnou
IV
V VI Vós sois mãe do
Rei primeiro Mais formosa sois que a lua,
Se lá nesse Paraíso Criadora
universal, Entre espinhos e
girassol, Aquela Eva pecou Que vos criou o
Eterno Enfim, excedes
Senhora Esteve sempre pura De sem culpa
original A candura do mesmo
Sol Da culpa o mundo livrou
VII
VIII Na terra lírio
plantado Mãe de Deus, advogada Entre espinhos e
flores Por nós sempre intercedei Lembrai-vos dos
vossos filhos Para que, na vossa graça Sois mãe dos
pecadores Mereçamos a glória – Amen Só os
fidalgos são inamovíveis e compete-lhes escolher anualmente, entre
as famílias “limpas” do lugar, os demais componentes da folia.
Todos os domingos e dias santificados,
da Ressurreição ao Pentecostes, a curiosa instituição vai a casa do
rei, que se incorpora com a varinha e um dos fidalgos com o tambor,
assiste à missa, percorre, com todas as insígnias, as ruas por onde
é de uso passarem as procissões, vai deixar na Igreja a bandeira, a
coroa e as lanternas, e segue para o jantar (refeição do meio dia),
que se sucede, em cada um dos domingos, em casa do rei, alferes,
pagem e mordomos.
Os jantares têm pratos obrigatórios: as
sopas, arroz, ensopado, prato desconhecido (contém iguaria que vem
para a mesa escondida) e arroz doce.
No final é oferecido a cada um dos
convivas um ramalhete de flores.
No começo do
jantar, antes das sopas, os fidalgos cantam:
I II III
Somos convidados
Bendito e louvado seja Este divino
maná
E chegados a comer O
Divino Sacramento Quem o receber
dignamente
Quem nos convidou Que é
doce maná dos anjos Terá por certo
viver
Deixe-o Deus viver Das
almas, feliz sustento No céu
eternamente IV Descei pombinha sagrada Desse luzeiro divino Vinde buscar nossas almas Sem vós não têm alívio
Antes do
ensopado, também de pé, cantam o Testamento do Senhor:
I
II III
No alto monte Calvário
Cristo para caber nela A S. Pedro deixou as
chaves
Estava Cristo à morte,
Um pé sobre o outro tinha Que o Paraíso governe
Numa cama tão estreita
Quis fazer o testamento A S. Miguel as balanças
Que nela volver-se não pode Para
repartir o que havia Que todas as almas pese
IV
A S.
Francisco as chagas
Que Deus lhe deu primeiro
Para lhe mostrar o sangue
De Jesus Cristo Verdadeiro
Ao arroz-doce, cantavam: I
II III
Caminhava a Virgem
pura S. José vai agastado
Calai-vos José, bom velho Pelas montanhas,
de inverno, Em se ver pelas montanhas,
Calai-vos José, meu bem. Caminhava para
Belém A Virgem vai mui
alegre Que uma noite passageira, Pejada do Padre
Eterno Leva Jesus nas
entranhas Onde quer a passarei.
IV
V VI Semeou-se o pão
divino Esta espiga
nasceu O galo quando cantou, Nas entranhas da
senhora, Numa noite de
Natal Cantou com muita alegria Nasceu uma tal
espiga Junto à meia
noite Cantem anjos e arcanjos, Que sustenta a
gente toda Antes do galo
cantar Bendita seja Maria.
Ao prato desconhecido, procurando em
quadras improvisadas adivinhar o conteúdo, cantavam:
Vivam a nossa mordoma
E sua família em geral
Traz-nos uma adivinha
Que é do reino vegetal
Ao receberem o ramalhete de flores,
cantam versos alusivos à dona da casa e a cada um dos confrades da
folia:
I
II III Viva a nossa
mordoma Ora viva, viva e
viva Viva o nosso alferes Com todos os seus
primores Esta nossa
companhia De amores tocado Que nos quis
convidar Que assim o manda
Deus Era um lírio roxo Com um ramalhete
de flores Jesus e Santa
Maria Que estava granado
IV
V VI Viva o nosso
pagem Viva o nosso
tesoureiro Vivam os nossos mordomos De amores
querido Mui nobre e
honrado Mui nobres e honrados, Era um lírio
roxo Viva muitos anos,
viva, Vivam muitos anos, vivam, Que estava
florido Para que seja bem
logrado Para que sejam bem logrados
VII
Padre,
Filho e Espírito Santo
Três
pessoas e um só Deus
Senhor
Rei, dê-nos licença
Que dêmos
graças a Deus
E rezam. Terminado o jantar,
dão nova volta à povoação e acompanham o rei a sua casa, onde deixam
a varinha e o tambor
A Folia sai, pela
primeira vez, no domingo da Ressurreição, a última no domingo de
Pentecostes (Espírito Santo), e em dia do Corpo de Deus para
proclamar os confrades de escolha anual, toma parte em todas as
festas locais e assiste a todas as romarias que se realizam no termo
da freguesia ou vizinhanças.
O alferes percorre,
com a bandeira, todas as ruas da povoação, no dia do Corpo de Deus.
O povo aguarda-o pelas janelas e portas, para beijar o símbolo do
Espírito Santo.
A Folia depõe neste
mesmo dia a bandeira e as lanternas na Igreja e vai a casa de cada
um dos novos eleitos fazer entrega dos distintivos: a varinha e o
tambor ao rei, a banda onde se apoia a bandeira ao alferes e a
coroa ao pagem.
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Era,
e ainda hoje (1996) se mantém a tradição de matarem o porco pela
época do Natal. A carne era metida em arcas salgadeiras, para aí ser
conservada. Hoje as arcas cairam em desuso, e utilizam arcas
frigoríficas para o efeito. Pretendia-se que a carne desse para todo
o ano. Fazem os enchidos, chouriças, farinheiras morcelas e
presunto. Estes enchidos e presuntos são curados ao fumeiro. As
casas, regra geral, não tinham lareiras nem tectos nas cozinhas. O
fogo era feito no chão de pedra e o fumo saía livremente através do
telhado. Para curarem os enchidos, penduravam-nos em paus de pinho,
fazendo com eles um tecto na cozinha.
No dia da matança, comem normalmente o sarrabulho, ou seja, as
partes do porco de menos interesse, (fígado, rins, coração e bofes)
que não se conservam, guisados com batatas.
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