As Festas do
Divino Espírito Santo no Continente
Num país em
que festas e romarias populares travam, há milénios, uma
luta pela sobrevivência com a sempre insuficiente tolerância
eclesiástica, apoiando-se em relações devocionais profundas
e, muitas vezes, em conexões ancestrais e telúricas com
lugares místicos e sagrados, as Festas do Espírito Santo
constituem, deste modo, casos especiais. Casos especiais
porque foram, durante séculos, objecto de apoios
determinantes do poder secular e religioso responsáveis, em
última instância, pela sua implantação. Porque se tratam de
cultos relativamente modernos, inspirados nas filosofias
trinitárias que o século XII viu surgir na Europa. Porque
não ligados por conexões telúricas ao lugar e à aldeia, não
se sustentando, assim, em raízes pré-cristãs ignotas e
profundamente arreigadas no imaginário místico e mítico
popular.
Festividades essencialmente formais, sumptuosas, envolvendo
encenações complexas de entronização e desenvolvendo
percursos cerimoniais particularmente ostentatórios estas,
contudo, não irão resistir a um processo quase que
inevitável de popularização, visto este como elemento de
profanização corruptora (ou mais precisamente de profanação)
mas impulsionador, igualmente, de um impregnar gradual de
formas de sacralidade popular mais funcionais e conforme os
padrões festivos há milénios dominantes entre nós.
Tal popularização, decorrente do apropriar destas
iniciativas por parte das populações, iniciou-se muito cedo,
em rigor desde que estas festas se tornaram um inequívoco
acontecimento festivo entre nós. A introdução nestas de
elementos pouco condizentes com a lógica canónica (arraiais,
“grandes comezainas”, danças, cantares, jogos ou corridas de
vacas ou bois) e posteriormente a sua gradual dominância,
acarretará um inevitável desprestígio institucional e um
olhar desconfiado das autoridades, que o reforço da
intolerância cinquecentista (na Inquisição personificado)
irá tornar determinante desenvolvendo-se, a partir daí,
perseguições várias, em interdições bispais e ordenações
reais consubstanciadas.
A revitalização e adequação contemporâneas verificadas
nalgumas destas festividades não obsta porém ao apagar da
memória de todo um processo intenso de decadência, que foi
reduzindo a iniciativa quase só ao bodo e à imponência maior
e menor dos cortejos do pão.
À morte do boi (ou bois) destinados integralmente aos pobres
como na Azinhaga ou em Tomar, ou parcialmente como na Meia
Via, sucede-se agora a repartição por todos aqueles que
contribuem para as despesas (já não, ou não
obrigatoriamente, os irmãos da confraria) e que por tal
receberão uma prestação em carne proporcional à esmola dada
e denominada “peza” nas solenidades torrejanas da Olaia e
Meia Via e, ainda, em Tomar.
O juiz é sempre o portador da coroa que transporta, solene e
reverentemente, à cabeça do cortejo. Os títulos honoríficos,
contudo, desapareceram já há muito tempo. Nalguns casos como
na Olaia era ainda usual os carros de bois transportarem o
pão, o vinho e o pão. Em Tomar e na Azinhaga ainda o é, após
reanimação do costume.
O pão continua a ser benzido, sendo distribuído publicamente
na Carregueira junto à igreja do Espírito Santo e no Sardoal
junto à capela da mesma invocação. Na Meia Via e na Olaia, é
benzido mas não repartido.
Todas incluem arraial com “comes e bebes”, bandas, jogos
tradicionais, danças e actividades lúdicas afins. Na
Azinhaga, por sistema, e na Meia Via, ocasionalmente,
correm-se ainda touros, correspondam eles àqueles que vão
ser imolados ou não.
Em quase todas, a coroa constitui o processo hoje usual de
transmissão do direito de organizar os festejos. No Sardoal,
na Olaia e na Meia Via esta é guardada durante o ano em casa
do futuro juiz que durante a festa lhe constrói um altar em
lugar de destaque onde fica exposta publicamente. “Quarto da
prenda” se lhe chama na Meia Via, “quarto da coroa” na Árgea/Olaia,
“casa da coroa” em Carregueiros/Tomar e, em tempos idos, na
própria sede do concelho
Sendo a maior parte destas povoações localidades de pequena
dimensão, os encargos foram sempre problema candente que
condicionou fortemente a sua evolução. De uma maneira geral,
tal questão cedo levou a um alargar do campo potencial de
contribuições, espraiando-se para fora dos limites estritos
da confraria num processo de democratização organizacional
que, porém, por falta de suficiente motivação devocional,
encontra muitas dificuldades em manter-se vigoroso.
Condições especiais, históricas, culturais e geofísicas,
explicam a sua, ainda hoje, particular pujança nos Açores.
Mas isso é conversa para uma outra oportunidade.
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