NAVE DA PALAVRA

 

Edição nº29 - 26/05/00

Cheiro de Deus, Retratos e a Bandeira do Divino

     Dizem que a infância é, entre todas as idades, a mais bonita. Mentira. Talvez seja, isto sim, a mais dolorosa, e eu, que sou freudiana convicta, sei que de lá também saltam monstros, uns menores, outros maiores e, assim, vai a vida, magnífica.

     Infância é tempo rude, de aprendizado perdido em meio a brincadeiras. Delas, ficam cicatrizes com gosto de meninice, as conseguidas entre pregos e estrepes, entre tombos e joelhos ralados, cacos de vidro do viver, perdidos todos entre as folhas dos cadernos antigos, cheiros de comida ou de pessoas, mais de pessoas, creio eu, que de comida.

     Tive, durante toda a infância, adoração por biscoitos de polvilho, rudes biscoitos feitos pela mão de minha materna avó. Mas como eram bons! Pão feito em casa, amassados pela mão dela, também eram outros, num tempo de fermentos poucos. Pão com café, café com leite, manteiga farta e leite espumando.

     São essas, além dos cheiros de jasmim, minhas lembranças mais fundas.

     Mas um outro dia, lembrando fatos, contei a um amigo sobre a maior surpresa que teve uma menina de 5 anos no sítio do avô: a chegada de uma folia de reis, em começos de um janeiro perdido entre tantos janeiros, pés de jaca, bois, cavalos, vacas e bezerros e um cafezal sem fim de que me lembro o cheiro, ainda hoje, tantos anos passados, perdidos.

     Uma tarde, estava a menina de que lhes falo na varanda da casa com o avô. Acho que a família inteira reunida vendo meu tio mais novo perdido entre os bezerros, apartando-os. Foi quando, inesperadamente, surgiu à porteira um bando de gente com roupas coloridas, dois palhaços na frente de todos, dando piruetas e soltando gritinhos agudos. E violas e violeiros.

     Tremi de medo e susto: o que seria aquilo?

     Meu avô, respeitoso nas botas de homem sério, desceu a escadinha estreita: teria ouvido as estripulias do meu coração quando olhou para trás e me estendeu a mão, me convidando para ir juntos receber aquela gente esquisita?

     Acho que sim.

     Medrosa, trêmula e de pernas bambas, acompanhei meu avô em meu vestido de babados. E vieram eles, cantando uma música para mim desconhecida, saudando o dono da casa, saudando e pedindo licença para a bandeira entrar:

     "Ô de casa, te pedimos/ licença pra nossa entrada/ a bandeira do divino/ visita a sua morada..."

     Eu nada entendia, de olhos arregalados e amedrontadamente mais menina do que era. Um homem negro e magrinho vinha na frente empunhando a bandeira. Meu avô tirou o chapéu e eu percebi, pelo jeito dele, que a coisa era séria demais.

     Deixei-me estar ali, pelo caminhozinho da porteira à casa, atrás de todos. Lindo aquilo, porque intuí que cantavam algo sagrado, embora a aparência fosse de espalhafato puro. Devo ter posto minhas pequenas mãos para trás, curiosa que sempre fui, vendo tudo, registrando instantes que hoje fazem parte da minha mais sublime memória religiosa. E cantaram, e batiam palmas acompanhando a viola... se minha memória não é falha, vi os olhos azuis de meu avô cheios de água salgada.

     Depois beberam em xicrinhas, comeram biscoitos de polvilho, pão e bolo, se sentaram pelos cantos do alpendre, bem debaixo da fúria dos olhos de minha avó, que detestava ser perturbada.

     E se foram com seus cheiros de suor, com suas cantorias, com suas violas.

     Na saída, tornei a descer as escadinhas, segurando meu vestido de menina. Foi quando meu avô me disse em tom de ordem:

- Despeça-se e beije a bandeira!

     O homem negro abaixou-se, trouxe a bandeira até meus lábios. Eu a segurei e pude sentir o cheiro dela: acre, como se de algo antigo e guardado. Um cheiro do sagrado nascido das entranhas escuras do profano. E centenas de fotografias coladas ali, inúmeros rostos, criaturas viventes, seres desta vida, em retratos três por quatro.

- Mas avô, a bandeira está sujinha!

- Pois beije, menina, estou mandando!

     Beijei a Bandeira do Divino que, assim que recebeu meu beijo, foi levantada e saiu pela porteira tremulando suas fitinhas e santos, seus retratos...

     Muitas coisas apaguei da memória, mas esta, especialmente, não poderia. E sempre que penso em Deus, imagino que ele deve ter aquele cheiro, o cheiro acre, gritante e humano da bandeira que um dia me deram para beijar na infância. Cheiro de negros e brancos, cheiro de canto e de riso. Cheiro que me acompanha todas as vezes que penso na infância, em Deus e nas bandeiras de que sinto saudade.

 

Esther PS Rosado
estherr@iconet.com.br
Esther PS Rosado é professora de Literatura e Redação em curso pré-vestibular.