A Festa do Divino Espírito Santo
Rita Amaral
“Assim como os três reis magos
Que seguiram a estrela-guia
A Bandeira segue em frente
Atrás de melhores dias, ai, ai...”
(“Bandeira do Divino”, Ivan Lins)
A
Festa do Divino Espírito Santo é uma das
festas mais recorrentes em todos os
calendários turísticos e sobre festas
que pude encontrar. Sua realização,
contudo, parece adquirir maior
relevância em regiões de colonização
mais recente, como é o caso do
Centro-Oeste brasileiro onde outras ela
é a mais constante nos calendários das
cidades. Pouco se sabe sobre sua origem
como evento no Brasil a não ser que ela
veio com os portugueses no período
colonial, quando era efusivamente
comemorada. Segundo vários autores ela
foi sofrendo transformações
paulatinas,“decaindo” na preferência
popular por alguns anos, devido, talvez,
ao empobrecimento das regiões onde se
solidificaram como forma de culto ao
Espírito Santo, pois elas parecem ter
tido início, no Brasil, nas áreas de
mineração do ouro, como Minas Gerais e
Goiás.
A respeito dos
primeiros tempos da Festa do Divino no
Brasil e as formas pelas quais teria
sido levada à região central, existem
poucas e imprecisas informações, tanto
nos vários autores que dela trataram e
também segundo alguns moradores desta
região. Acredita-se que o costume veio
de Portugal, trazido pelos missionários
jesuítas e primeiros colonos. E dizem
que a festa estava já difundida em todo
país antes de chegar à região central (Araujo,
1955,
1959;
Alves, 1971;
Amaral, 1976;
Brandão, T. 1976i;
Bruno, 1953;
Carneiro, 1974;
Cascudo, 1969,
1971;
Dantas, 1976;
Kornerup, 1974;
Lacerda, 1977;
Moraes Filho, 1979
e muitos outros).
A crença no
Espírito Santo é reconhecida como um dos
principais focos das formas de
religiosidade popular do Centro-Oeste,
contrariamente ao que acontece no
Nordeste e Sudeste do país, onde outros
santos padroeiros, como os juninos,
ocupam o lugar que no Brasil Central se
destina ao Divino. Diz-se ainda que a
festa está intimamente ligada ao período
da mineração de ouro e se conservou
especialmente nas velhas cidades goianas
do século XVIII, sendo rara e pouco
solene nas cidades que foram fundadas
depois do ciclo do ouro. Segundo Carlos
Brandão (1978),
as pessoas de origem mais pobre de
Pirenópolis (onde realizou seus
principais estudos), ligam a origem da
festa à sua antigüidade apenas. A festa
é tradicional, para estas pessoas, “porque
é costume muito antigo”. Já nos
discursos das pessoas “letradas”, há
referências históricas, nomes e datas.
Algumas versões da origem da festa são
verdadeiros mitos narrados por moradores
como uma versão que Brandão publicou,
contada um habitante de Pirenópolis que,
segundo ele, dizia possuir conhecimentos
pessoais que até 1974 não eram
conhecidos sequer por pessoas de sua
família. Segundo esta versão:
“Ainda na Idade
Média teria aparecido em Portugal um
monge considerado como um santo. Depois
de longos anos de retiro no deserto,
foi-lhe revelada a vinda próxima de uma
nova era de relações entre os homens
sobre a Terra: a época do Espírito
Santo. A humanidade teria já
ultrapassado a época do Pai (o Antigo
Testamento) e, ao seu tempo, terminava o
seu trânsito por sobre a época do Filho
(o Novo Testamento). Estaria para chegar
ao mundo a época final, a do Espírito
Santo, marcada pelo advento de uma
implantação definitiva da paz, do amor
da bondade entre todos os homens do
mundo. [...] O monge voltou às
cidades e procurou difundir a revelação
recebida, tida imediatamente como
revolucionária pelas autoridades
eclesiásticas do seu tempo. Suas idéias
proféticas conquistaram inúmeros
adeptos, logo perseguidos por uma igreja
oficial, ao mesmo tempo medieval e
fechada. Segundo a versão, ‘só em
Portugal foram queimadas mais de 400
pessoas por sua crença no Espírito
Santo‘. Inúmeros adeptos da nova crença
migraram para o Brasil, logo depois de
sua colonização e, depois da conquista
dos espaços mediterrâneos, ocuparam,
prioritariamente, antes as terras de
Minas Gerais e, depois, os espaços de
Goiás e, em menor escala, os de Mato
Grosso” (Brandão,
1978: 65).
Existem evidências
históricas dessa versão, que próprio
Brandão (1978:
143, nota 50)
apresenta e que são uma boa demonstração
dos modos de variação dos fatos
históricos quando incorporados às
práticas de grupos de pessoas vinculadas
a festejos populares de expressão
católica. Um exemplo de que os vazios do
mito são muitas vezes preenchidos com
elementos históricos do mesmo modo que
os vazios da história podem ser
preenchidos por criações míticas.
A
festa do Divino Espírito Santo
realiza-se no Domingo de Pentecostes,
festa móvel católica, que acontece
sempre cinqüenta dias depois da Páscoa,
em comemoração à vinda do Espírito Santo
sobre os apóstolos de Jesus Cristo. Ela
se realiza em inúmeras localidades do
país. No Brasil central, contudo, parece
ser a mais relevante e mobilizante das
festas. Se nas demais regiões temos
outras festas aglutinadoras da população
(como o Carnaval no sudeste, as festas
juninas no norte e nordeste, as FESTS no
sul), a festa do Divino Espírito Santo
cumpre este papel no Brasil central,
embora não seja oficialmente reconhecido
como santo padroeiro da maioria das
cidades em que acontece.
Existe um culto pessoal do Espírito
Santo em toda a região central. Segundo
Brandão, as pessoas recorrem ao Divino
em busca dos mesmos milagres esperados
dos santos da igreja católica fazendo,
inclusive, promessas. Ele não tem
atributos específicos, ou seja, não tem
um dom específico de cura ou proteção,
como é o caso de São Brás que protege a
garganta, ou Santo Antônio, que protege
os namorados. Por esta razão, ao Divino
tudo se pede, embora ele perca em
quantidade de promessas e votos para São
Benedito. Finalmente, o Divino Espírito
Santo não tem culto institucionalizado
por parte de algum segmento social, seja
classe, profissão ou etnia.
Os
motivos apresentados nos discursos das
pessoas que fazem a festa, para
realizá-la remetem, segundo vários
autores, a uma firme crença no Divino,
reconhecida em toda região. E as pessoas
que Brandão entrevistou diziam que
“sempre tiveram essa fé com o Divino”. E
por isso que a festa foi criada e se
repete todos os anos. A crença no
Espírito Santo explica a festa. Ela é
compreendida como um modo próprio da
cidade expressar sua crença, promovendo
uma situação de múltiplos rituais de
louvor e homenagem ao Espírito Santo.
Como
acontece nas grandes festas, apesar de o
momento central acontecer num único dia,
no caso o Domingo de Pentecostes
(chamado por todos de“Domingo do
Divino”), ela começa bem antes, não
apenas no espírito dos participantes,
como também nos preparativos e escolhas
que devem ser feitos. No período que
antecede a festa, os momentos centrais
são o do sorteios dos “encargos do
Divino”e a “Coroação do Imperador”.
A
Festa do Divino coloca dentro de sistema
de ações de trocas e serviços, pessoas
socialmente diferenciadas em posições
também diversas e muitas vezes
interdependentes. Pode-se mesmo dizer
que é sobre estas trocas simbólicas
de modos de participação que se
constitui, na prática, a Festa do
Divino. Ela instaura uma transformação
não apenas na vida da sociedade local
como também na vida pessoal dos
participantes, como de resto acontece
com todas as festas, mas especialmente
com as festas devocionais.
Aqueles que se comprometem com os
festejos do Divino redefinem-se, uns
para com os outros, ao se integrarem a
um sistema de posições e relações que
apesar de algumas vezes derivarem de
relações que acontecem em outras áreas
da sociedade local, somente possuem
valor dentro da situação da festa e de
seus vários rituais. Isto significa
que empregado e patrão, por exemplo,
podem ter seus papéis invertidos,
reforçados ou anulados no sistema
religioso da festa.
Como um ritual
religioso e que é, ao mesmo tempo, visto
como folclórico, passível de ser
entendido como demonstração da
identidade local, a Festa do Divino é um
acontecimento que deve ter as
características do culto ao Espírito
Santo e ser organizado de forma a
constituir um acontecimento da cidade (Brandão,
1978;
Moraes Filho, 1979).
Assim, sua organização deve ter sempre
em vista a possibilidade de ampliação de
cultos e rituais de esfera individual ou
restrito a pequenos grupos, até as
dimensões da cidade ou mais amplas, já
que as festas se expandem ao ponto de
alcançar as áreas rurais ao redor e
outros cidades e de absorver pessoas de
toda a região, e mesmo de fora dela. A
Festa do Divino de Pirenópolis, estudada
por Brandão, é exemplar e será usada
como tal aqui, representando um exemplo
ideal, que não contém, necessariamente,
todas as variações possíveis do sistema
da festa.
O principal
responsável pela preparação e realização
da festa éo imperador do Divino,
devendo ser, ao mesmo tempo, seu maior
investidor e aquele através de quem a
cidade presta suas homenagens ao
Espírito Santo, o Divino. Como uma
espécie de representante temporário do
Divino Espírito Santo, o imperador se
torna objeto de todas as homenagens e
deferências durante a comemoração. Por
esta razão, o momento principal em toda
a sucessão de momentos do festejo, que
dura dias, é o da “Coroação do
imperador”.É o momento em que
simbolicamente o Espírito Santo vem à
terra, sobre o imperador do Divino ou
personificado nele, como na época dos
apóstolos, e em que a festa promove, num
único ritual, seus dois principais
atores e personagens: o imperador e o
padre. E é também o momento em que a
sociedade local estabelece os termos
rituais da continuidade da festa do
Divino, de modo solene, ao estabelecer a
passagem de um “ano imperial”
[48] para
outro.
Considerada, como outras, uma festa
popular, a Festa do Divino é realizada
sob o duplo controle das autoridades
eclesiásticas e da cidade, em geral. As
“autoridades da cidade” podem ser
as pessoas em melhor condições
financeiras, como fazendeiros,
comerciantes, empresários etc., como
pessoas que gozam algum tipo de
prestígio local, comportando,
evidentemente, exceções. As pessoas que
promovem a Festa do Divino ocupam,
geralmente, posições derivadas das
relações de trabalho na sociedade local,
seja este trabalho urbano ou rural. São
conhecidos que se organizam para esta
finalidade, e os candidatos a festeiro
em geral são fazendeiros, comerciantes
ou outros que se conhecem de algum modo
através de relações de trabalho. Em
certos casos, ocupam posições
específicas na festa por causa das
posições que ocupam na sociedade. Assim,
combinam-se os dois sistemas: o da festa
e o das relações sociais.
Preparação da Festa — As Folias do
Divino
Um ano antes da
realização da Festa do Divino são
distribuídos os chamados “encargos”
da festa, ou seja, os papéis ou funções
que cada um deverá exercer na
Festa-representação
que é a Festa do Espírito Santo. Estes
encargos são sorteados entre todos os
que se apresentam como candidatos. Quem
se candidata deve estar ciente dos
custos que o encargo envolve, embora
muitas pessoas sabendo disso façam da
candidatura ao encargo o sacrifício
implícito em uma promessa que será paga
com o trabalho e investimento material
na festa. Os principais encargos da
Festa do Divino são:
Mordomo da novena:
Um mordomo para cada noite da novena é
sorteado, contando-se, portanto, com
nove mordomos da novena. Eles são
responsáveis pela organização e parte
dos gastos com a “reza da novena” (velas
e um eventual café com bolinhos
oferecido aos que participam dela).
Folião da Cidade:
Responsável pela Folia do Espírito
Santo, que percorre a cidade nos dias
finais da Semana Santa e poucos dias
antes da festa. Ele pode participar
diretamente da folia ou pagar a algum
folião para sair com a banda em seu
lugar. Se ele próprio for o Folião,
recebe as homenagens costumeiras de
folia nas casas por onde passa. Se pagar
pela Folia, recebe homenagens apenas dos
demais foliões.
Mordomo das Velas:
Responsável pelos gastos com velas e
também com energia elétrica durante os
domingos do período da festa.
Mordomo da Bandeira:
Responsável pela guarda e manutenção
(incluindo reformas) da Bandeira do
Divino. É quem conduz em procissão a
Bandeira do Divino e a coloca no mastro
para o hasteamento. De sua casa sai a
Procissão da Bandeira nos anos em que
ela acontece. Segundo Brandão (1978), em
alguns anos ou cidades é o Mordomo da
Bandeira acompanha essa procissão em
lugar de destaque.
Mordomo do Mastro:
É encarregado de obter e preparar o
mastro da “Bandeira do Divino”,
providenciar seu levantamento e também
pela queima de fogos.
Mordomo da Fogueira:
Responsável pela construção da fogueira
e sua queima, durante o levantamento do
mastro e da bandeira, e ainda pela
queima dos fogos.
Imperador do Divino:
É o responsável pela coordenação da
festa juntamente com o padre da igreja
local e alguns “mordomos, e pela maior
parte dos investimentos feitos. Organiza
os eventos da festa, arcando com grande
parte dos gastos coletivos das
Cavalhadas desde os dias do ensaio. Paga
pelos fogos, pela decoração da cidade
(ajudado pela prefeitura) e pelas
apresentações das duas bandas. Recebe as
pessoas da festa e visitantes em sua
casa, onde deve oferecer comida e
bebida. De sua casas saem: Alvorada do
Sábado e do Domingo, Procissão da Coroa,
Procissão do Espírito Santo e os
Cavaleiros, para ensaio. Voltam à sua
casa: Procissão da Volta da Coroa,
Bandeira e Cortejo ao final da festa.
O imperador do
Divino tem lugar de honra nas missas
(sentado num trono), nas procissões e
nas Cavalhadas (palanque imperial). Ele
é homenageado em diferentes situações
pelos cavaleiros, pela banda de música e
pelos foliões do Espírito Santo. Usa os
principais símbolos da festa: a coroa do
Divino e o cetro (Brandão,
1978).
Nos
dois últimos dias da Semana Santa, o
Folião da Cidade a percorre com a
primeira Folia do Divino de uma
nova Festa. O pequeno cortejo de
instrumentistas e cantores divide-se
entre os bairros e vilas da cidade e
seus integrantes procuram visitar o
maior número possível de casas em busca
de donativos para a festa. A coroa do
imperador é levada da casa deste pelos
foliões, que percorrem com ela e a
Bandeira, os lugares de “peditório”.
Essa atividade também é conhecida como
“Bandeira do Divino”, e pode sair
novamente durante a semana da novena.
Como
ninguém é tão pobre que não tenha o que
ofertar ao Divino e nem tão rico que a
ele não precise pedir nada, a “Bandeira”
vai de porta em porta, cada uma delas,
na cidade ou nas fazendas ao redor,
cantando e recolhendo donativos. Desde
um cafezinho até às esmolas propriamente
ditas, tudo se pede cantando, e em nome
do Divino Espírito Santo. As cantigas
são significativas do universo simbólico
envolvido na festa do Divino:
“A bandeira aqui chegou
Um favor quer merecer:
Uma xícara de café
Para os foliões beber”
E
enquanto a dona da casa oferece o café,
a “Bandeira”, com seus menestréis
adornados de fitas, e chefiados pelo “alferes
da bandeira”,canta, por exemplo:
“O divino entra
contente
Nas casas mais pobrezinhas
Toda esmola ele recebe
Frangos, perus e galinhas”
“O Divino é muito rico
Tem brasões e tem riqueza,
mas quer fazer sua festa
Com esmolas da pobreza”
(Moraes
Filho, 1979: 41)
Algumas vezes, contudo, vendo a pobreza
dos devotos nas casas por onde passa,
a“Bandeira” deixa algo em vez de levar.
“Na última
casa, bem separada das outras, não havia
quadros [de santos] nem rádio, o
colono não pode oferecer nada, nem café.
‘Nós não tem o que possa dar, mas queria
que a bandeira fosse lá’, veio avisar o
menino. A casa miserável, escura, suja
de barro e com muitas crianças chorando.
A folia cantou muito para eles e ainda
deixou dinheiro. A família segurando a
bandeira, com muita devoção” (Galvão,
1977: 64).
Segundo Brandão,
as folias rurais, de foliões cavaleiros”
foram grandes e muito solenes no
passado, e ainda hoje mantém a mesma
estrutura ritual para pedir ofertas ao
Divino nas chácaras, sítios e fazendas
da redondeza: deslocam-se pedem esmola e
agradecem, cerimônia que realizam
levando uma das bandeiras do Divino.
Eles costumam pedir pousada nos lugares
mais distantes, rezar terços e mesmo
realizar bailes“dominados por catiras
nos locais onde a folia pousa” (Brandão,
1978: 35).
Por
volta de quinze dias antes do Domingo
de Pentecostes, e cerca de uma semana
antes do início da semana da novena a
cidade já vive intensamente a sua festa.
Postes e árvores são pintados de
vermelho e branco, as cores do Divino.
Os cavaleiros e pastorinhas fazem seus
ensaios e, entre fogos, doces, bolos e
salgados, café e bebida, o Imperador do
Divino começa a fazer os seus maiores
gastos da festa; a viver os momentos
mais importantes de seu “ano imperial”.
A Novena do Espírito Santo
Oito
dias antes do Sábado do Divino, começam
as novenas conhecidas como Novenário
do Espírito Santo. No primeiro dia
da novena a cidade é despertada duas
vezes: a primeira com a Banda de
Couro (com os caixeiros e caixeiras
do Divino), à quatro horas da manhã, a
segunda com a banda de música, às
cinco horas. Ainda no primeiro dia, uma
sexta-feira, e no último, um sábado,
além das Alvoradas, há tocatas da
banda de música ao meio-dia. O imperador
queima fogos pelo menos de madrugada,
quando há Alvoradas, e depois de cada
reza de novena, já à noite.
Segundo Brandão (1978),
em Pirenópolis as rezas de novena são
solenes. São cantadas em latim pelo coro
da cidade, que se acompanha de alguns
músicos da banda, flautas e violinos.
Foi adicionada ao ritual uma missa
posterior à novena, que o padre oficia
em algumas noites. Ao fim da reza da
novena de cada noite, todos os presentes
cantam o Hino do Divino. Para cada noite
de novena há um mordomo, como vimos,
sorteado junto com o Imperador e demais
encargos da festa. Sua função é dirigir
a reza no seu dia. Alguns deles recebem
a Folia do Divino em sua casa e oferecem
comida e bebida aos visitantes. É uma
parte essencialmente religiosa da festa.
O Sábado do Divino
Às
seis horas da tarde do último dia da
novena, sai da casa do Mordomo da
Bandeira, para a igreja matriz, a
primeira grande procissão da festa: a
Procissão da Bandeira. Ela é a única
que não tem como origem ou destino final
a casa do Imperador do Divino.
O
cortejo é acompanhado pela banda de
música, que durante todo o trajeto
executa um dobrado marcial. Moças
vestidas de vermelho e branco conduzem a
Bandeira do Divino, o objeto simbólico
de maior importância na procissão. A
bandeira geralmente é feita pelo Mordomo
da Bandeira ou no caso de uma bandeira
antiga, reformada sob sua supervisão.
Ela permanece em sua casa até o sábado
em que, abençoada pelo padre depois da
missa do último dia de novena, é
solenemente hasteada em seu mastro. Tal
como a bandeira, o mastro é colorido
de vermelho e branco, as cores do
Espírito Santo. O mordomo do mastro,
encarregado, por sorteio, de faze-lo (o
mastro deve ter em torno de 15 a 18
metros de altura), levanta o mastro,
auxiliado pelos demais mordomos, logo
depois da missa de sábado. Acende-se
também a fogueira. Durante o hasteamento
os três mordomos (do mastro, da bandeira
e da fogueira) organizam uma queima de
fogos. É costume que Imperador
“responda” com outra queima.
O Sábado do Divino
marca também o início da parte
profana da festa. Ao meio-dia saem
às ruas bandos de Mascarados a
cavalo. Cobertos de máscaras de papelão
ou papier maché colorido, a
maioria com a forma de cabeças de bois
com grandes chifres enfeitados com
flores de papel, vestindo roupas
coloridas e brilhantes ou fantasias que
se referem ao personagem da máscara,
galopam pelas ruas das cidade durante as
tardes e as noites, desde o sábado até a
terça-feira. Geralmente são jovens da
cidade ou vindos de fazendas dos
arredores. A maioria dos cavaleiros se
veste do mesmo modo (máscara e fantasias
iguais), com poucas exceções e galopam
juntos, especialmente quando se
apresentam no “Campo das Cavalhadas”.
Eles não são, contudo, grupos
organizados para um determinado
divertimento, mas simples grupos de
galope, jovens que se divertem pelas
ruas em correrias e abordando moças, com
flertes e galanteios, gracejando ou
pedindo dinheiro para comprar bebidas.
É considerada obrigação de cada
mascarado não se deixar identificar nem
mesmo pelos seus parentes durante os
primeiros dias de saída. Durante as
Cavalhadas de Mouros e Cristãos eles
se apresentam nos intervalos das
atuações. Na terça-feira, ao final dos
festejos, saem atrás da banda de música
e vão com ela até a casa do Imperador,
para, juntamente com as muitas pessoas
envolvidas no evento, “entregar a
festa” (Brandão,
1978).
No Sábado do
Divino acontecem, portanto, os últimos
festejos religiosos preparatórios do
Domingo de Pentecostes e os primeiros da
parte profana dos festejos do Divino,
que inclui eventos extremamente
apreciados pela população. As Cavalhadas
estão entre os mais esperados e alegres
da Festa do Divino, embora em alguns
lugares a prática esteja perdendo
importância, como notam alguns autores (Alves,
1971;
Carvalho, 1977;
Pina, 1971). A
luta entre Cristãos e Mouros também pode
acontecer sem os cavalos, com lutas de
espadas pelas ruas, intensamente
dramatizadas.
O Domingo do Divino
Se a Alvorada de
Sábado é acompanhada pelas ruas da
cidade por uma grande quantidade de
pessoas, a de Domingo costuma ser
acompanhada por muitas mais, quase todas
as da cidade e mais visitantes. Esta
Alvorada não sai da igreja matriz, mas
da casa do Imperador do Divino, às cinco
horas da manhã, depois que este oferece
aos músicos da banda “café e quitandas”.
De lá ela parte em direção a diferentes
ruas e lugares da cidade, em um percurso
tradicional, mas que pode ser alterado
conforme a necessidade ou vontade dos
que o determinam. O percurso destas
procissões valoriza os espaços que
contém, pois sacraliza cada um deles, e
os que vivem nestes espaços sacralizados
sentem-se como se a presença do Espírito
Santo se espalhasse pelo ar,
sacralizando suas casas e suas vidas.
(Alves,
1971;
Brandão, 1973).
O
cortejo segue a banda, que divide o
percurso em dois tipos de toques
diferentes: durante o deslocamento de um
ponto a outro toca dobrados alegres,
músicas populares atuais ou outras,
regionais e, durante as paradas, executa
o hino do Divino, que parte do cortejo
costuma cantar. Os principais pontos de
parada são geralmente a igreja local
(perto da qual geralmente se encontra o
mastro do Divino), as casas das pessoas
com “encargos do Divino” e as casas de
antigos moradores ligados à festa e que
já não podem sair para acompanhar a
Bandeira pela cidade, em procissão.
Durante uma Alvorada de Domingo o hino
do Divino é executado várias vezes.
Quando o dia clareia completamente, a
Alvorada se dissolve em frente à igreja
local.
Os
eventos seguintes do domingo também saem
da casa do imperador. O primeiro é a
Procissão da Coroa. Nela, o
imperador é levado em cortejo, dentro de
seu “quadro”, formado por varas de cor
vermelha e precedido por um grupo de
moças, também vestidas de vermelho e
branco, com bandeiras do Divino
semelhantes à que se hasteou no mastro,
na noite anterior. O andor do divino é
carregado por quatro moças, com roupas
iguais às das que carregam as bandeiras.
Um grupo maior de meninas, com idade
entre cinco e dez anos, totalmente
vestidas de branco levam bandeirinhas
com a “pomba do Divino”.
O
andor é cercado de flores e representa,
como a figura da pomba, o Espírito
Santo. No interior de seu “quadro”, o
imperador, usando a coroa e com seu
cetro de “prata” nas mãos, é acompanhado
pela esposa ou parente que carrega a
bandeja sobre a qual repousa a “Coroa do
Divino” quando não está em uso, na casa
do imperador, durante o ano imperial.
Atrás do “quadro”
do imperador seguem os membros de
irmandades e demais acompanhantes da
procissão. A Procissão da Coroa
aproxima-se da igreja matriz ao som dos
sinos dobrando e do estrondo de vários
fogos. O Imperador do Divino e seu
cortejo entram pela porta principal e se
colocam junto ao altar, de frente para o
povo. A seu lado fica sua esposa e ao
redor, ocupando toda área do altar, as
moças, virgens e outros acompanhantes do
cortejo. O padre reza a missa e nela as
cantigas cantadas são as tradicionais da
festa (Alves;
1971;
Brandão; 1983,
Pina, 1971 e
outros).
O sorteio dos encargos
Após esta missa,
as pessoas da cidade que têm maior
afinidade e interesse na festa (os que
desejam pagar uma promessa, por
exemplo), participam, na sacristia da
igreja, do sorteio dos “encargos do
Divino” para o ano seguinte. As pessoas
que participam anualmente do sorteio
chamam-se, entre si, de “irmãos de
sorte” ou “irmãos do Divino”, embora
em muitos lugares jamais tenha chegado a
existir uma confraria do Espírito Santo,
como existiram em outras cidades
brasileiras (Brandão,
1978).
A
escolha dos encargos do Divino obedece
aos rituais de um sorteio solene. Em
duas pequenas sacolas pretas de pano são
colocados papéis enrolados. Uma delas
contém os nomes dos candidatos e a outra
a relação dos encargos. Um dos
escrutinizadores retira o nome de um
candidato e outro, geralmente o próprio
padre, retira o nome do encargo
correspondente. Assim, qualquer
candidato, de acordo com sua sorte, pode
ser escolhido, pelo Divino, para
qualquer dos encargos, inclusive o de
imperador, que pode ser retirado em
qualquer momento do sorteio, sob o olhar
de uma assistência formada por todos os
“irmãos na sorte”: parentes, amigos,
pessoas comprometidas com a festa em
anos anteriores, e os responsáveis pela
apuração. Toda a expectativa é pelo
sorteio do nome do imperador e
geralmente quando a notícia chega à sua
casa, ouvem-se fogos estourando.
A princípio,
qualquer pessoa nascida na cidade, mesmo
os que residem fora dela, podem propor
seu nome como candidato aos encargos da
festa, desde que preencham a condição de
não estar sendo o imperador atual, e ser
católico “de vida exemplar”. E há ainda
a crença de que o lado para onde a
bandeira aponta, movida pelo vento,
quando o mastro acaba de ser erguido, é
aquele onde o futuro imperador
provavelmente reside (Pina,
1971).
Findo o sorteio, tem lugar a
Procissão da Volta da Coroa, bem
reduzida, que retorna à casa do
imperador, tendo deixado na igreja o
andor do Espírito Santo. Ao chegar à
casa do imperador, este deposita no
altar seus objetos simbólicos (coroa,
cetro, bandeiras e bandeja) e oferece
aos presentes doces, salgados e bebidas.
Dentre estesalimentos, alguns são
considerados indispensáveis e devem
estar presentes por seu caráter
marcadamente simbólico, como é o caso
das “verônicas” (feitas de açúcar e
limão e gravadas com os símbolos da
festa, como a pomba, Nossa Senhora, a
coroa), e ainda os “pãezinhos do
Espírito Santo”. Em algumas festas
do Divino é costume também serem
distribuídas verônicas e pãezinhos do
Espírito Santo de casa em casa, e cada
casa deve receber ao menos um destes
alimentos.
Neste mesmo dia, ainda, acontecem os
rituais da Procissão do Espírito
Santo, a Missa Vespertinae a
Coroação do Novo Imperador. Na
Procissão do Espírito Santo reúnem-se o
imperador atual e o “novo”. Este vai à
casa do imperador e os dois juntos saem
em procissão, seguindo o mesmo
itinerário da Procissão da Coroa. Neste
momento ainda é o imperador atual que
usa os símbolos de realeza. Seguem,
então, o atual imperador, sua esposa e
um auxiliar e atrás destes o novo
imperador e um parente. Durante a missa
vespertina o imperador atual fica em seu
trono com o séquito à sua volta. Depois
desta missa o padre da cidade realiza a
Coroação do Imperador, considerada por
muitos um momento fundamental na festa.
É
interessante notar que a partir desta
coração tem-se a presença de dois
imperadores, um efetivo, coroado no ano
anterior, cujo “mandato”está se
extinguindo e outro, também efetivo
porque coroado, cujo mandato ainda não
começou e só começará no ano seguinte.
“Os dois
imperadores aproximam-se de um pequeno
genuflexório colocado diante do altar e
coberto de pano branco. Colocam-se de
joelhos diante do padre. Este retira a
coroa do imperador atual e a oferece aos
dois, para que a beijem. Neste momento
canta-se o Hino do Espírito Santo, após
o que a coroa é solenemente colocada na
cabeça do novo imperador. O mesmo
procedimento é feito com o cetro, sem
que se entoe outra vez o hino. Com um
pequeno ramo de folhas verdes o padre
esparge água benta sobre os dois
imperadores. Esta cerimônia de coroação
marca o final dos festejos religiosos. O
novo imperador retorna à sua casa em
pequena procissão, agora com o cetro e a
coroa. Essa procissão não se inclui no
“Programa da Festa” e, embora seja uma
tradição dos festejos do Espírito Santo,
não se considera que faça parte oficial
dela” (Brandão,
1978: 28).
A Festa “Profana”
A
festa é vista como tendo uma parte
religiosa e uma parte profana. Os
eventos da parte considerada profana
começam, geralmente, com a saída dos
mascarados, a cavalo, e terminam com o
cortejo final de “entrega da Festa”, na
casa do Imperador.
À parte o desfile
de mascarados, que é bastante aleatório
e pode acontecer a qualquer momento do
período da festa sendo, como observa
Brandão (1978),
uma série de cavalgatas aleatórias, a
Festa ainda tem como momentos marcantes
do divertimento popular as Cavalhadas
(ou “Guerra entre Mouros e Cristãos” ou,
ainda, simplesmente “Mouros e
Cristãos”)e as Pastorinhas.
Alguns autores sugerem mesmo que as
Cavalhadas são, organizacionalmente, o
ponto central da Festa (Alves,
1971;
Pina; 1971).
Segundo Brandão, esta ênfase é
exagerada, e afirma que, do ponto de
vista ritual, as Cavalhadas são apenas
um evento a mais na série de eventos da
festa. Tanto que em alguns lugares
sequer existem, existiram, ou até
desapareceram há muito tempo de algumas
cidades onde ainda hoje se festeja o
Espírito Santo, como em Goiás e
Mossâmedes. Com ele concorda Kornerup (1974),
que ressalta os vários momentos da festa
como igualmente relevantes.
As
Cavalhadas, consideradas um
espetáculo específico da festa do Divino
consistem em tardes de combates e
disputas entre doze cavaleiros cristãos
e doze mouros. Do mesmo modo que
acontece com a apresentação das
Pastorinhas, é um ritual minuciosamente
ensaiado. Pelo menos quinze dias antes
da primeira apresentação, os cavaleiros
se reúnem, desde madrugada, no chamado
“pasto real” para ensaiarem as carreiras
e discursos do ritual.
Nos
dois primeiros dias, geralmente à tarde,
são realizados a entrada e o desfile dos
cavaleiros, a cena de morte do
espia-mouro, as carreiras de combate de
lanças, pistola e espada após a troca de
embaixadas e o desafio entre os dois
reis. Ao final, no Domingo, o pedido de
trégua e reinício das carreiras de
lutas. Por fim, a derrota e prisão dos
mouros, o discurso de conversão
do rei mouro e o batismo dos
derrotados. Na tarde do último
domingo são feitas carreiras de
conciliação e homenagens à assistência.
Realizam-se ainda os jogos eqüestres de
“argolinhas” ou de “cabecinhas”.
De sábado a
terça-feira, realizam-se as “Revistas
de Pastorinhas”. A apresentação das
Pastorinhas na Festa do Divino Espírito
Santo vêm sendo feitas desde o começo do
século e é um costume que parece se
mantém com vigor. Apresentam-se ainda,
na parte profana da Festa, autos
folclóricos, danças etc. (Araujo,
1955, 1959;
Alves, 1971;
Amaral, 1976;
Brandão, T. 1976i;
Bruno, 1953;
Carneiro, 1974;
Cascudo, 1969,
1971;Dantas,
1976;
Kornerup, 1974;
Lacerda, 1977;
Moraes Filho, 1979
e muitos outros).
Na Festa do
Divino de Pirenópolis, provavelmente
a mais famosa do Brasil Central,
acontecem ainda, constando como
“festejos profanos” no calendário
oficial (Brandão,
1978), a
Procissão do Reinado de São Benedito e
Nossa Senhora do Rosário. Elas se
assemelham às procissões do Espírito
Santo, em menor escala, e também são
distribuídos doces, salgados e licores
na casa de alguns dos participantes.
Os
festejos profanos só terminam, onde há
Cavalhadas, depois que os cavaleiros vão
à igreja descarregar as pistolas em
frente a porta, atirando para o alto e
os mascarados e cortejos festivos da
cidade vão à porta da casa do Imperador
para “entregar a festa”. Só então ela é
considerada encerrada.
“Na casa do
imperador atual são finalmente
guardadas, pela última vez, as bandeiras
do Divino que vieram do ‘campo de luta’
das Cavalhadas, e sobram para a última
noite uma última apresentação do ‘Drama’
e a últimas andanças dos mascarados do
Divino” (Brandão,
1978: 34).
Novamente vemos a
festa mediando sistemas e termos
e organizando grupos, hierarquias, a
passagem do tempo, a renovação do
sagrado, mediando o sagrado e o profano,
o passado e o presente, a vida
particular e a pública, a casa e a rua,
a devoção e a diversão. Através da
procissão, o sagrado entra de casa em
casa, em busca da humanidade, invertendo
os termos de uma relação onde o que se
dá é sempre o contrário. Carregado num
andor, no momento de sua passagem o
Divino irmana os fiéis à sua volta.
Redefinem-se, a partir da organização de
sua festa, as relações de lealdade de
grupos, categorias e classes, dando
lugar a uma única; a dos fiéis, dos
súditos do imperador do divino.
Neutralizam-se os conflitos, que dão
lugar à íntima relação de devoção e fé
para com o Espírito Santo. Nas
procissões, como notou Da Matta (1978),
todos se irmanam com o santo e, por meio
dessa relação (que assume a forma de
ligação típica de proteção e mediação)
ficam ligados a todos os demais fiéis,
que também seguem e vêem o santo. A
intenção é, portanto, ligar-se ao santo.
Nesta caminhada que é física e social,
as ruas se transformam e ficam
diluídas as fronteiras entre elas e as
casas, tornando-se a procissão uma
mediação sagrada entre vida pública e
particular. Entre mundo “interno“ e
mundo “externo”,entre o “aqui” e o
“além”. Tanto é assim que à passagem da
procissão, portas e janelas permanecem
abertas, para que o santo possa ver a
casa, do mesmo modo que todos os que
acompanham a procissão, estabelecendo
assim, não apenas a unidade e igualdade
social como ainda uma homogeneidade
espacial, todo o mundo sacralizando-se a
partir da passagem da procissão, porque
o sagrado está acima dos homens e com
ele.
A
Festa do Divino apresenta, em menor
escala (razão pela qual só é possível
descrevê-la em termos de seus eventos
rituais, e menos do entorno da produção
da festa), como será possível notar após
a leitura do capítulo seguinte, modos
semelhantes de organização para a
produção e desenvolvimento das grandes
festas religiosas brasileiras. O exemplo
do Círio de Nazaré, a seguir,
pode mostrar a alguns destes “padrões”
em funcionamento, em escala grandemente
ampliada.