A Festa do Divino Espírito Santo

Rita Amaral

“Assim como os três reis magos
Que seguiram a estrela-guia
A Bandeira segue em frente
Atrás de melhores dias, ai, ai...”


(“Bandeira do Divino”, Ivan Lins)

 

A Festa do Divino Espírito Santo é uma das festas mais recorrentes em todos os calendários turísticos e sobre festas que pude encontrar. Sua realização, contudo, parece adquirir maior relevância em regiões de colonização mais recente, como é o caso do Centro-Oeste brasileiro onde outras ela é a mais constante nos calendários das cidades. Pouco se sabe sobre sua origem como evento no Brasil a não ser que ela veio com os portugueses no período colonial, quando era efusivamente comemorada. Segundo vários autores ela foi sofrendo transformações paulatinas,“decaindo” na preferência popular por alguns anos, devido, talvez, ao empobrecimento das regiões onde se solidificaram como forma de culto ao Espírito Santo, pois elas parecem ter tido início, no Brasil, nas áreas de mineração do ouro, como Minas Gerais e Goiás.

 

A respeito dos primeiros tempos da Festa do Divino no Brasil e as formas pelas quais teria sido levada à região central, existem poucas e imprecisas informações, tanto nos vários autores que dela trataram e também segundo alguns moradores desta região. Acredita-se que o costume veio de Portugal, trazido pelos missionários jesuítas e primeiros colonos. E dizem que a festa estava já difundida em todo país antes de chegar à região central (Araujo, 1955, 1959; Alves, 1971; Amaral, 1976; Brandão, T. 1976i; Bruno, 1953; Carneiro, 1974; Cascudo, 1969, 1971; Dantas, 1976; Kornerup, 1974; Lacerda, 1977; Moraes Filho, 1979 e muitos outros).

 

A crença no Espírito Santo é reconhecida como um dos principais focos das formas de religiosidade popular do Centro-Oeste, contrariamente ao que acontece no Nordeste e Sudeste do país, onde outros santos padroeiros, como os juninos, ocupam o lugar que no Brasil Central se destina ao Divino. Diz-se ainda que a festa está intimamente ligada ao período da mineração de ouro e se conservou especialmente nas velhas cidades goianas do século XVIII, sendo rara e pouco solene nas cidades que foram fundadas depois do ciclo do ouro. Segundo Carlos Brandão (1978), as pessoas de origem mais pobre de Pirenópolis (onde realizou seus principais estudos), ligam a origem da festa à sua antigüidade apenas. A festa é tradicional, para estas pessoas, “porque é costume muito antigo”. Já nos discursos das pessoas “letradas”, há referências históricas, nomes e datas. Algumas versões da origem da festa são verdadeiros mitos narrados por moradores como uma versão que Brandão publicou, contada um habitante de Pirenópolis que, segundo ele, dizia possuir conhecimentos pessoais que até 1974 não eram conhecidos sequer por pessoas de sua família. Segundo esta versão:

“Ainda na Idade Média teria aparecido em Portugal um monge considerado como um santo. Depois de longos anos de retiro no deserto, foi-lhe revelada a vinda próxima de uma nova era de relações entre os homens sobre a Terra: a época do Espírito Santo. A humanidade teria já ultrapassado a época do Pai (o Antigo Testamento) e, ao seu tempo, terminava o seu trânsito por sobre a época do Filho (o Novo Testamento). Estaria para chegar ao mundo a época final, a do Espírito Santo, marcada pelo advento de uma implantação definitiva da paz, do amor da bondade entre todos os homens do mundo. [...] O monge voltou às cidades e procurou difundir a revelação recebida, tida imediatamente como revolucionária pelas autoridades eclesiásticas do seu tempo. Suas idéias proféticas conquistaram inúmeros adeptos, logo perseguidos por uma igreja oficial, ao mesmo tempo medieval e fechada. Segundo a versão, ‘só em Portugal foram queimadas mais de 400 pessoas por sua crença no Espírito Santo‘. Inúmeros adeptos da nova crença migraram para o Brasil, logo depois de sua colonização e, depois da conquista dos espaços mediterrâneos, ocuparam, prioritariamente, antes as terras de Minas Gerais e, depois, os espaços de Goiás e, em menor escala, os de Mato Grosso” (Brandão, 1978: 65).

Existem evidências históricas dessa versão, que próprio Brandão (1978: 143, nota 50) apresenta e que são uma boa demonstração dos modos de variação dos fatos históricos quando incorporados às práticas de grupos de pessoas vinculadas a festejos populares de expressão católica. Um exemplo de que os vazios do mito são muitas vezes preenchidos com elementos históricos do mesmo modo que os vazios da história podem ser preenchidos por criações míticas.

 

A festa do Divino Espírito Santo realiza-se no Domingo de Pentecostes, festa móvel católica, que acontece sempre cinqüenta dias depois da Páscoa, em comemoração à vinda do Espírito Santo sobre os apóstolos de Jesus Cristo. Ela se realiza em inúmeras localidades do país. No Brasil central, contudo, parece ser a mais relevante e mobilizante das festas. Se nas demais regiões temos outras festas aglutinadoras da população (como o Carnaval no sudeste, as festas juninas no norte e nordeste, as FESTS no sul), a festa do Divino Espírito Santo cumpre este papel no Brasil central, embora não seja oficialmente reconhecido como santo padroeiro da maioria das cidades em que acontece.

 

Existe um culto pessoal do Espírito Santo em toda a região central. Segundo Brandão, as pessoas recorrem ao Divino em busca dos mesmos milagres esperados dos santos da igreja católica fazendo, inclusive, promessas. Ele não tem atributos específicos, ou seja, não tem um dom específico de cura ou proteção, como é o caso de São Brás que protege a garganta, ou Santo Antônio, que protege os namorados. Por esta razão, ao Divino tudo se pede, embora ele perca em quantidade de promessas e votos para São Benedito. Finalmente, o Divino Espírito Santo não tem culto institucionalizado por parte de algum segmento social, seja classe, profissão ou etnia.

 

Os motivos apresentados nos discursos das pessoas que fazem a festa, para realizá-la remetem, segundo vários autores, a uma firme crença no Divino, reconhecida em toda região. E as pessoas que Brandão entrevistou diziam que “sempre tiveram essa fé com o Divino”. E por isso que a festa foi criada e se repete todos os anos. A crença no Espírito Santo explica a festa. Ela é compreendida como um modo próprio da cidade expressar sua crença, promovendo uma situação de múltiplos rituais de louvor e homenagem ao Espírito Santo.

 

Como acontece nas grandes festas, apesar de o momento central acontecer num único dia, no caso o Domingo de Pentecostes (chamado por todos de“Domingo do Divino”), ela começa bem antes, não apenas no espírito dos participantes, como também nos preparativos e escolhas que devem ser feitos. No período que antecede a festa, os momentos centrais são o do sorteios dos “encargos do Divino”e a “Coroação do Imperador”.

 

A Festa do Divino coloca dentro de sistema de ações de trocas e serviços, pessoas socialmente diferenciadas em posições também diversas e muitas vezes interdependentes. Pode-se mesmo dizer que é sobre estas trocas simbólicas de modos de participação que se constitui, na prática, a Festa do Divino. Ela instaura uma transformação não apenas na vida da sociedade local como também na vida pessoal dos participantes, como de resto acontece com todas as festas, mas especialmente com as festas devocionais.

 

Aqueles que se comprometem com os festejos do Divino redefinem-se, uns para com os outros, ao se integrarem a um sistema de posições e relações que apesar de algumas vezes derivarem de relações que acontecem em outras áreas da sociedade local, somente possuem valor dentro da situação da festa e de seus vários rituais. Isto significa que empregado e patrão, por exemplo, podem ter seus papéis invertidos, reforçados ou anulados no sistema religioso da festa.

 

Como um ritual religioso e que é, ao mesmo tempo, visto como folclórico, passível de ser entendido como demonstração da identidade local, a Festa do Divino é um acontecimento que deve ter as características do culto ao Espírito Santo e ser organizado de forma a constituir um acontecimento da cidade (Brandão, 1978; Moraes Filho, 1979). Assim, sua organização deve ter sempre em vista a possibilidade de ampliação de cultos e rituais de esfera individual ou restrito a pequenos grupos, até as dimensões da cidade ou mais amplas, já que as festas se expandem ao ponto de alcançar as áreas rurais ao redor e outros cidades e de absorver pessoas de toda a região, e mesmo de fora dela. A Festa do Divino de Pirenópolis, estudada por Brandão, é exemplar e será usada como tal aqui, representando um exemplo ideal, que não contém, necessariamente, todas as variações possíveis do sistema da festa.

 

O principal responsável pela preparação e realização da festa éo imperador do Divino, devendo ser, ao mesmo tempo, seu maior investidor e aquele através de quem a cidade presta suas homenagens ao Espírito Santo, o Divino. Como uma espécie de representante temporário do Divino Espírito Santo, o imperador se torna objeto de todas as homenagens e deferências durante a comemoração. Por esta razão, o momento principal em toda a sucessão de momentos do festejo, que dura dias, é o da “Coroação do imperador”.É o momento em que simbolicamente o Espírito Santo vem à terra, sobre o imperador do Divino ou personificado nele, como na época dos apóstolos, e em que a festa promove, num único ritual, seus dois principais atores e personagens: o imperador e o padre. E é também o momento em que a sociedade local estabelece os termos rituais da continuidade da festa do Divino, de modo solene, ao estabelecer a passagem de um “ano imperial” [48] para outro.

 

Considerada, como outras, uma festa popular, a Festa do Divino é realizada sob o duplo controle das autoridades eclesiásticas e da cidade, em geral. As “autoridades da cidade” podem ser as pessoas em melhor condições financeiras, como fazendeiros, comerciantes, empresários etc., como pessoas que gozam algum tipo de prestígio local, comportando, evidentemente, exceções. As pessoas que promovem a Festa do Divino ocupam, geralmente, posições derivadas das relações de trabalho na sociedade local, seja este trabalho urbano ou rural. São conhecidos que se organizam para esta finalidade, e os candidatos a festeiro em geral são fazendeiros, comerciantes ou outros que se conhecem de algum modo através de relações de trabalho. Em certos casos, ocupam posições específicas na festa por causa das posições que ocupam na sociedade. Assim, combinam-se os dois sistemas: o da festa e o das relações sociais.


 

Preparação da Festa — As Folias do Divino

 

Um ano antes da realização da Festa do Divino são distribuídos os chamados “encargos” da festa, ou seja, os papéis ou funções que cada um deverá exercer na Festa-representação que é a Festa do Espírito Santo. Estes encargos são sorteados entre todos os que se apresentam como candidatos. Quem se candidata deve estar ciente dos custos que o encargo envolve, embora muitas pessoas sabendo disso façam da candidatura ao encargo o sacrifício implícito em uma promessa que será paga com o trabalho e investimento material na festa. Os principais encargos da Festa do Divino são:

Mordomo da novena:
Um mordomo para cada noite da novena é sorteado, contando-se, portanto, com nove mordomos da novena. Eles são responsáveis pela organização e parte dos gastos com a “reza da novena” (velas e um eventual café com bolinhos oferecido aos que participam dela).

Folião da Cidade:
Responsável pela Folia do Espírito Santo, que percorre a cidade nos dias finais da Semana Santa e poucos dias antes da festa. Ele pode participar diretamente da folia ou pagar a algum folião para sair com a banda em seu lugar. Se ele próprio for o Folião, recebe as homenagens costumeiras de folia nas casas por onde passa. Se pagar pela Folia, recebe homenagens apenas dos demais foliões.

Mordomo das Velas:
Responsável pelos gastos com velas e também com energia elétrica durante os domingos do período da festa.

Mordomo da Bandeira:
Responsável pela guarda e manutenção (incluindo reformas) da Bandeira do Divino. É quem conduz em procissão a Bandeira do Divino e a coloca no mastro para o hasteamento. De sua casa sai a Procissão da Bandeira nos anos em que ela acontece. Segundo Brandão (1978), em alguns anos ou cidades é o Mordomo da Bandeira acompanha essa procissão em lugar de destaque.

Mordomo do Mastro:
É encarregado de obter e preparar o mastro da “Bandeira do Divino”, providenciar seu levantamento e também pela queima de fogos.

Mordomo da Fogueira:
Responsável pela construção da fogueira e sua queima, durante o levantamento do mastro e da bandeira, e ainda pela queima dos fogos.

Imperador do Divino:
É o responsável pela coordenação da festa juntamente com o padre da igreja local e alguns “mordomos, e pela maior parte dos investimentos feitos. Organiza os eventos da festa, arcando com grande parte dos gastos coletivos das Cavalhadas desde os dias do ensaio. Paga pelos fogos, pela decoração da cidade (ajudado pela prefeitura) e pelas apresentações das duas bandas. Recebe as pessoas da festa e visitantes em sua casa, onde deve oferecer comida e bebida. De sua casas saem: Alvorada do Sábado e do Domingo, Procissão da Coroa, Procissão do Espírito Santo e os Cavaleiros, para ensaio. Voltam à sua casa: Procissão da Volta da Coroa, Bandeira e Cortejo ao final da festa.

O imperador do Divino tem lugar de honra nas missas (sentado num trono), nas procissões e nas Cavalhadas (palanque imperial). Ele é homenageado em diferentes situações pelos cavaleiros, pela banda de música e pelos foliões do Espírito Santo. Usa os principais símbolos da festa: a coroa do Divino e o cetro (Brandão, 1978).

 

Nos dois últimos dias da Semana Santa, o Folião da Cidade a percorre com a primeira Folia do Divino de uma nova Festa. O pequeno cortejo de instrumentistas e cantores divide-se entre os bairros e vilas da cidade e seus integrantes procuram visitar o maior número possível de casas em busca de donativos para a festa. A coroa do imperador é levada da casa deste pelos foliões, que percorrem com ela e a Bandeira, os lugares de “peditório”. Essa atividade também é conhecida como “Bandeira do Divino”, e pode sair novamente durante a semana da novena.

 

Como ninguém é tão pobre que não tenha o que ofertar ao Divino e nem tão rico que a ele não precise pedir nada, a “Bandeira” vai de porta em porta, cada uma delas, na cidade ou nas fazendas ao redor, cantando e recolhendo donativos. Desde um cafezinho até às esmolas propriamente ditas, tudo se pede cantando, e em nome do Divino Espírito Santo. As cantigas são significativas do universo simbólico envolvido na festa do Divino:

“A bandeira aqui chegou
Um favor quer merecer:
Uma xícara de café
Para os foliões beber”

E enquanto a dona da casa oferece o café, a “Bandeira”, com seus menestréis adornados de fitas, e chefiados pelo “alferes da bandeira”,canta, por exemplo:

 

“O divino entra contente
Nas casas mais pobrezinhas
Toda esmola ele recebe
Frangos, perus e galinhas”

“O Divino é muito rico
Tem brasões e tem riqueza,
mas quer fazer sua festa
Com esmolas da pobreza”


(
Moraes Filho, 1979: 41)

Algumas vezes, contudo, vendo a pobreza dos devotos nas casas por onde passa, a“Bandeira” deixa algo em vez de levar.

“Na última casa, bem separada das outras, não havia quadros [de santos] nem rádio, o colono não pode oferecer nada, nem café. ‘Nós não tem o que possa dar, mas queria que a bandeira fosse lá’, veio avisar o menino. A casa miserável, escura, suja de barro e com muitas crianças chorando. A folia cantou muito para eles e ainda deixou dinheiro. A família segurando a bandeira, com muita devoção” (Galvão, 1977: 64).

Segundo Brandão, as folias rurais, de foliões cavaleiros” foram grandes e muito solenes no passado, e ainda hoje mantém a mesma estrutura ritual para pedir ofertas ao Divino nas chácaras, sítios e fazendas da redondeza: deslocam-se pedem esmola e agradecem, cerimônia que realizam levando uma das bandeiras do Divino. Eles costumam pedir pousada nos lugares mais distantes, rezar terços e mesmo realizar bailes“dominados por catiras nos locais onde a folia pousa” (Brandão, 1978: 35).

 

Por volta de quinze dias antes do Domingo de Pentecostes, e cerca de uma semana antes do início da semana da novena a cidade já vive intensamente a sua festa. Postes e árvores são pintados de vermelho e branco, as cores do Divino. Os cavaleiros e pastorinhas fazem seus ensaios e, entre fogos, doces, bolos e salgados, café e bebida, o Imperador do Divino começa a fazer os seus maiores gastos da festa; a viver os momentos mais importantes de seu “ano imperial”.


 

A Novena do Espírito Santo

 

Oito dias antes do Sábado do Divino, começam as novenas conhecidas como Novenário do Espírito Santo. No primeiro dia da novena a cidade é despertada duas vezes: a primeira com a Banda de Couro (com os caixeiros e caixeiras do Divino), à quatro horas da manhã, a segunda com a banda de música, às cinco horas. Ainda no primeiro dia, uma sexta-feira, e no último, um sábado, além das Alvoradas, há tocatas da banda de música ao meio-dia. O imperador queima fogos pelo menos de madrugada, quando há Alvoradas, e depois de cada reza de novena, já à noite.

 

Segundo Brandão (1978), em Pirenópolis as rezas de novena são solenes. São cantadas em latim pelo coro da cidade, que se acompanha de alguns músicos da banda, flautas e violinos. Foi adicionada ao ritual uma missa posterior à novena, que o padre oficia em algumas noites. Ao fim da reza da novena de cada noite, todos os presentes cantam o Hino do Divino. Para cada noite de novena há um mordomo, como vimos, sorteado junto com o Imperador e demais encargos da festa. Sua função é dirigir a reza no seu dia. Alguns deles recebem a Folia do Divino em sua casa e oferecem comida e bebida aos visitantes. É uma parte essencialmente religiosa da festa.


 

O Sábado do Divino

 

Às seis horas da tarde do último dia da novena, sai da casa do Mordomo da Bandeira, para a igreja matriz, a primeira grande procissão da festa: a Procissão da Bandeira. Ela é a única que não tem como origem ou destino final a casa do Imperador do Divino.

 

O cortejo é acompanhado pela banda de música, que durante todo o trajeto executa um dobrado marcial. Moças vestidas de vermelho e branco conduzem a Bandeira do Divino, o objeto simbólico de maior importância na procissão. A bandeira geralmente é feita pelo Mordomo da Bandeira ou no caso de uma bandeira antiga, reformada sob sua supervisão. Ela permanece em sua casa até o sábado em que, abençoada pelo padre depois da missa do último dia de novena, é solenemente hasteada em seu mastro. Tal como a bandeira, o mastro é colorido de vermelho e branco, as cores do Espírito Santo. O mordomo do mastro, encarregado, por sorteio, de faze-lo (o mastro deve ter em torno de 15 a 18 metros de altura), levanta o mastro, auxiliado pelos demais mordomos, logo depois da missa de sábado. Acende-se também a fogueira. Durante o hasteamento os três mordomos (do mastro, da bandeira e da fogueira) organizam uma queima de fogos. É costume que Imperador “responda” com outra queima.

 

O Sábado do Divino marca também o início da parte profana da festa. Ao meio-dia saem às ruas bandos de Mascarados a cavalo. Cobertos de máscaras de papelão ou papier maché colorido, a maioria com a forma de cabeças de bois com grandes chifres enfeitados com flores de papel, vestindo roupas coloridas e brilhantes ou fantasias que se referem ao personagem da máscara, galopam pelas ruas das cidade durante as tardes e as noites, desde o sábado até a terça-feira. Geralmente são jovens da cidade ou vindos de fazendas dos arredores. A maioria dos cavaleiros se veste do mesmo modo (máscara e fantasias iguais), com poucas exceções e galopam juntos, especialmente quando se apresentam no “Campo das Cavalhadas”. Eles não são, contudo, grupos organizados para um determinado divertimento, mas simples grupos de galope, jovens que se divertem pelas ruas em correrias e abordando moças, com flertes e galanteios, gracejando ou pedindo dinheiro para comprar bebidas. É considerada obrigação de cada mascarado não se deixar identificar nem mesmo pelos seus parentes durante os primeiros dias de saída. Durante as Cavalhadas de Mouros e Cristãos eles se apresentam nos intervalos das atuações. Na terça-feira, ao final dos festejos, saem atrás da banda de música e vão com ela até a casa do Imperador, para, juntamente com as muitas pessoas envolvidas no evento, “entregar a festa” (Brandão, 1978).

 

No Sábado do Divino acontecem, portanto, os últimos festejos religiosos preparatórios do Domingo de Pentecostes e os primeiros da parte profana dos festejos do Divino, que inclui eventos extremamente apreciados pela população. As Cavalhadas estão entre os mais esperados e alegres da Festa do Divino, embora em alguns lugares a prática esteja perdendo importância, como notam alguns autores (Alves, 1971; Carvalho, 1977; Pina, 1971). A luta entre Cristãos e Mouros também pode acontecer sem os cavalos, com lutas de espadas pelas ruas, intensamente dramatizadas.


 

O Domingo do Divino

 

Se a Alvorada de Sábado é acompanhada pelas ruas da cidade por uma grande quantidade de pessoas, a de Domingo costuma ser acompanhada por muitas mais, quase todas as da cidade e mais visitantes. Esta Alvorada não sai da igreja matriz, mas da casa do Imperador do Divino, às cinco horas da manhã, depois que este oferece aos músicos da banda “café e quitandas”. De lá ela parte em direção a diferentes ruas e lugares da cidade, em um percurso tradicional, mas que pode ser alterado conforme a necessidade ou vontade dos que o determinam. O percurso destas procissões valoriza os espaços que contém, pois sacraliza cada um deles, e os que vivem nestes espaços sacralizados sentem-se como se a presença do Espírito Santo se espalhasse pelo ar, sacralizando suas casas e suas vidas. (Alves, 1971; Brandão, 1973).

 

O cortejo segue a banda, que divide o percurso em dois tipos de toques diferentes: durante o deslocamento de um ponto a outro toca dobrados alegres, músicas populares atuais ou outras, regionais e, durante as paradas, executa o hino do Divino, que parte do cortejo costuma cantar. Os principais pontos de parada são geralmente a igreja local (perto da qual geralmente se encontra o mastro do Divino), as casas das pessoas com “encargos do Divino” e as casas de antigos moradores ligados à festa e que já não podem sair para acompanhar a Bandeira pela cidade, em procissão. Durante uma Alvorada de Domingo o hino do Divino é executado várias vezes. Quando o dia clareia completamente, a Alvorada se dissolve em frente à igreja local.

 

Os eventos seguintes do domingo também saem da casa do imperador. O primeiro é a Procissão da Coroa. Nela, o imperador é levado em cortejo, dentro de seu “quadro”, formado por varas de cor vermelha e precedido por um grupo de moças, também vestidas de vermelho e branco, com bandeiras do Divino semelhantes à que se hasteou no mastro, na noite anterior. O andor do divino é carregado por quatro moças, com roupas iguais às das que carregam as bandeiras. Um grupo maior de meninas, com idade entre cinco e dez anos, totalmente vestidas de branco levam bandeirinhas com a “pomba do Divino”.

 

O andor é cercado de flores e representa, como a figura da pomba, o Espírito Santo. No interior de seu “quadro”, o imperador, usando a coroa e com seu cetro de “prata” nas mãos, é acompanhado pela esposa ou parente que carrega a bandeja sobre a qual repousa a “Coroa do Divino” quando não está em uso, na casa do imperador, durante o ano imperial.

 

Atrás do “quadro” do imperador seguem os membros de irmandades e demais acompanhantes da procissão. A Procissão da Coroa aproxima-se da igreja matriz ao som dos sinos dobrando e do estrondo de vários fogos. O Imperador do Divino e seu cortejo entram pela porta principal e se colocam junto ao altar, de frente para o povo. A seu lado fica sua esposa e ao redor, ocupando toda área do altar, as moças, virgens e outros acompanhantes do cortejo. O padre reza a missa e nela as cantigas cantadas são as tradicionais da festa (Alves; 1971; Brandão; 1983, Pina, 1971 e outros).


 

O sorteio dos encargos

 

Após esta missa, as pessoas da cidade que têm maior afinidade e interesse na festa (os que desejam pagar uma promessa, por exemplo), participam, na sacristia da igreja, do sorteio dos “encargos do Divino” para o ano seguinte. As pessoas que participam anualmente do sorteio chamam-se, entre si, de “irmãos de sorte” ou “irmãos do Divino”, embora em muitos lugares jamais tenha chegado a existir uma confraria do Espírito Santo, como existiram em outras cidades brasileiras (Brandão, 1978).

 

A escolha dos encargos do Divino obedece aos rituais de um sorteio solene. Em duas pequenas sacolas pretas de pano são colocados papéis enrolados. Uma delas contém os nomes dos candidatos e a outra a relação dos encargos. Um dos escrutinizadores retira o nome de um candidato e outro, geralmente o próprio padre, retira o nome do encargo correspondente. Assim, qualquer candidato, de acordo com sua sorte, pode ser escolhido, pelo Divino, para qualquer dos encargos, inclusive o de imperador, que pode ser retirado em qualquer momento do sorteio, sob o olhar de uma assistência formada por todos os “irmãos na sorte”: parentes, amigos, pessoas comprometidas com a festa em anos anteriores, e os responsáveis pela apuração. Toda a expectativa é pelo sorteio do nome do imperador e geralmente quando a notícia chega à sua casa, ouvem-se fogos estourando.

 

A princípio, qualquer pessoa nascida na cidade, mesmo os que residem fora dela, podem propor seu nome como candidato aos encargos da festa, desde que preencham a condição de não estar sendo o imperador atual, e ser católico “de vida exemplar”. E há ainda a crença de que o lado para onde a bandeira aponta, movida pelo vento, quando o mastro acaba de ser erguido, é aquele onde o futuro imperador provavelmente reside (Pina, 1971).

 

Findo o sorteio, tem lugar a Procissão da Volta da Coroa, bem reduzida, que retorna à casa do imperador, tendo deixado na igreja o andor do Espírito Santo. Ao chegar à casa do imperador, este deposita no altar seus objetos simbólicos (coroa, cetro, bandeiras e bandeja) e oferece aos presentes doces, salgados e bebidas. Dentre estesalimentos, alguns são considerados indispensáveis e devem estar presentes por seu caráter marcadamente simbólico, como é o caso das “verônicas” (feitas de açúcar e limão e gravadas com os símbolos da festa, como a pomba, Nossa Senhora, a coroa), e ainda os “pãezinhos do Espírito Santo”. Em algumas festas do Divino é costume também serem distribuídas verônicas e pãezinhos do Espírito Santo de casa em casa, e cada casa deve receber ao menos um destes alimentos.

 

Neste mesmo dia, ainda, acontecem os rituais da Procissão do Espírito Santo, a Missa Vespertinae a Coroação do Novo Imperador. Na Procissão do Espírito Santo reúnem-se o imperador atual e o “novo”. Este vai à casa do imperador e os dois juntos saem em procissão, seguindo o mesmo itinerário da Procissão da Coroa. Neste momento ainda é o imperador atual que usa os símbolos de realeza. Seguem, então, o atual imperador, sua esposa e um auxiliar e atrás destes o novo imperador e um parente. Durante a missa vespertina o imperador atual fica em seu trono com o séquito à sua volta. Depois desta missa o padre da cidade realiza a Coroação do Imperador, considerada por muitos um momento fundamental na festa.

 

É interessante notar que a partir desta coração tem-se a presença de dois imperadores, um efetivo, coroado no ano anterior, cujo “mandato”está se extinguindo e outro, também efetivo porque coroado, cujo mandato ainda não começou e só começará no ano seguinte.

Os dois imperadores aproximam-se de um pequeno genuflexório colocado diante do altar e coberto de pano branco. Colocam-se de joelhos diante do padre. Este retira a coroa do imperador atual e a oferece aos dois, para que a beijem. Neste momento canta-se o Hino do Espírito Santo, após o que a coroa é solenemente colocada na cabeça do novo imperador. O mesmo procedimento é feito com o cetro, sem que se entoe outra vez o hino. Com um pequeno ramo de folhas verdes o padre esparge água benta sobre os dois imperadores. Esta cerimônia de coroação marca o final dos festejos religiosos. O novo imperador retorna à sua casa em pequena procissão, agora com o cetro e a coroa. Essa procissão não se inclui no “Programa da Festa” e, embora seja uma tradição dos festejos do Espírito Santo, não se considera que faça parte oficial dela” (Brandão, 1978: 28).


 

A Festa “Profana”

 

A festa é vista como tendo uma parte religiosa e uma parte profana. Os eventos da parte considerada profana começam, geralmente, com a saída dos mascarados, a cavalo, e terminam com o cortejo final de “entrega da Festa”, na casa do Imperador.

 

À parte o desfile de mascarados, que é bastante aleatório e pode acontecer a qualquer momento do período da festa sendo, como observa Brandão (1978), uma série de cavalgatas aleatórias, a Festa ainda tem como momentos marcantes do divertimento popular as Cavalhadas (ou “Guerra entre Mouros e Cristãos” ou, ainda, simplesmente “Mouros e Cristãos”)e as Pastorinhas. Alguns autores sugerem mesmo que as Cavalhadas são, organizacionalmente, o ponto central da Festa (Alves, 1971; Pina; 1971). Segundo Brandão, esta ênfase é exagerada, e afirma que, do ponto de vista ritual, as Cavalhadas são apenas um evento a mais na série de eventos da festa. Tanto que em alguns lugares sequer existem, existiram, ou até desapareceram há muito tempo de algumas cidades onde ainda hoje se festeja o Espírito Santo, como em Goiás e Mossâmedes. Com ele concorda Kornerup (1974), que ressalta os vários momentos da festa como igualmente relevantes.

 

As Cavalhadas, consideradas um espetáculo específico da festa do Divino consistem em tardes de combates e disputas entre doze cavaleiros cristãos e doze mouros. Do mesmo modo que acontece com a apresentação das Pastorinhas, é um ritual minuciosamente ensaiado. Pelo menos quinze dias antes da primeira apresentação, os cavaleiros se reúnem, desde madrugada, no chamado “pasto real” para ensaiarem as carreiras e discursos do ritual.

 

Nos dois primeiros dias, geralmente à tarde, são realizados a entrada e o desfile dos cavaleiros, a cena de morte do espia-mouro, as carreiras de combate de lanças, pistola e espada após a troca de embaixadas e o desafio entre os dois reis. Ao final, no Domingo, o pedido de trégua e reinício das carreiras de lutas. Por fim, a derrota e prisão dos mouros, o discurso de conversão do rei mouro e o batismo dos derrotados. Na tarde do último domingo são feitas carreiras de conciliação e homenagens à assistência. Realizam-se ainda os jogos eqüestres de “argolinhas” ou de “cabecinhas”.

 

De sábado a terça-feira, realizam-se as “Revistas de Pastorinhas”. A apresentação das Pastorinhas na Festa do Divino Espírito Santo vêm sendo feitas desde o começo do século e é um costume que parece se mantém com vigor. Apresentam-se ainda, na parte profana da Festa, autos folclóricos, danças etc. (Araujo, 1955, 1959; Alves, 1971; Amaral, 1976; Brandão, T. 1976i; Bruno, 1953; Carneiro, 1974; Cascudo, 1969, 1971;Dantas, 1976; Kornerup, 1974; Lacerda, 1977; Moraes Filho, 1979 e muitos outros).

 

Na Festa do Divino de Pirenópolis, provavelmente a mais famosa do Brasil Central, acontecem ainda, constando como “festejos profanos” no calendário oficial (Brandão, 1978), a Procissão do Reinado de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. Elas se assemelham às procissões do Espírito Santo, em menor escala, e também são distribuídos doces, salgados e licores na casa de alguns dos participantes.

 

Os festejos profanos só terminam, onde há Cavalhadas, depois que os cavaleiros vão à igreja descarregar as pistolas em frente a porta, atirando para o alto e os mascarados e cortejos festivos da cidade vão à porta da casa do Imperador para “entregar a festa”. Só então ela é considerada encerrada.

“Na casa do imperador atual são finalmente guardadas, pela última vez, as bandeiras do Divino que vieram do ‘campo de luta’ das Cavalhadas, e sobram para a última noite uma última apresentação do ‘Drama’ e a últimas andanças dos mascarados do Divino” (Brandão, 1978: 34).

Novamente vemos a festa mediando sistemas e termos e organizando grupos, hierarquias, a passagem do tempo, a renovação do sagrado, mediando o sagrado e o profano, o passado e o presente, a vida particular e a pública, a casa e a rua, a devoção e a diversão. Através da procissão, o sagrado entra de casa em casa, em busca da humanidade, invertendo os termos de uma relação onde o que se dá é sempre o contrário. Carregado num andor, no momento de sua passagem o Divino irmana os fiéis à sua volta. Redefinem-se, a partir da organização de sua festa, as relações de lealdade de grupos, categorias e classes, dando lugar a uma única; a dos fiéis, dos súditos do imperador do divino. Neutralizam-se os conflitos, que dão lugar à íntima relação de devoção e fé para com o Espírito Santo. Nas procissões, como notou Da Matta (1978), todos se irmanam com o santo e, por meio dessa relação (que assume a forma de ligação típica de proteção e mediação) ficam ligados a todos os demais fiéis, que também seguem e vêem o santo. A intenção é, portanto, ligar-se ao santo.

 

Nesta caminhada que é física e social, as ruas se transformam e ficam diluídas as fronteiras entre elas e as casas, tornando-se a procissão uma mediação sagrada entre vida pública e particular. Entre mundo “interno“ e mundo “externo”,entre o “aqui” e o “além”. Tanto é assim que à passagem da procissão, portas e janelas permanecem abertas, para que o santo possa ver a casa, do mesmo modo que todos os que acompanham a procissão, estabelecendo assim, não apenas a unidade e igualdade social como ainda uma homogeneidade espacial, todo o mundo sacralizando-se a partir da passagem da procissão, porque o sagrado está acima dos homens e com ele.

 

A Festa do Divino apresenta, em menor escala (razão pela qual só é possível descrevê-la em termos de seus eventos rituais, e menos do entorno da produção da festa), como será possível notar após a leitura do capítulo seguinte, modos semelhantes de organização para a produção e desenvolvimento das grandes festas religiosas brasileiras. O exemplo do Círio de Nazaré, a seguir, pode mostrar a alguns destes “padrões” em funcionamento, em escala grandemente ampliada.