Memórias
de um Sargento de Milícias
XIX
DOMINGO DO ESPÍRITO SANTO
Era
esse dia domingo do Espírito Santo. Como todos sabem, a
festa do Espírito Santo é uma das festas prediletas do
povo fluminense. Hoje mesmo que se vão perdendo certos hábitos,
uns bons, outros maus, ainda essa festa é motivo de
grande agitação; longe porém está o que agora se passa
daquilo que se passava nos tempos a que temos feito
remontar os leitores. A festa não começava no domingo
marcado pela folhinha, começava muito antes, nove dias
cremos, para que tivesse lugar as novenas. O primeiro anúncio
da festa eram as Folias. Aquele que escreve estas Memórias
ainda em sua infância teve ocasião de ver as Folias, porém
foi já no seu último grau de decadência, e tanto que só
as crianças como ele davam-lhe atenção e achavam nelas
prazer; os mais, se delas se ocupavam, era unicamente para
lamentar a diferença que faziam das primitivas. O que
dantes se passava, bem encarado, não estava muito longe
de merecer censura; porém era costume, e ninguém vá lá
dizer a alguma velha desse tempo que aquilo devia ser por
força muito feio, porque leva uma risada na cara, e ouve
uma tremenda filípica contra as nossas festas de hoje.
Entretanto
digamos sempre o que eram as Folias desse tempo, apesar de
que os leitores o saberão pouco mais ou menos. Durante os
9 dias que precediam ao Espírito Santo, ou mesmo não
sabemos se antes disso, saía pelas ruas da cidade um
rancho de meninos, todos de 9 a 11 anos, caprichosamente
vestidos à pastora: sapatos de cor-de-rosa, meias
brancas, calção da cor do sapato, faixas à cintura,
camisa branca de longos e caídos colarinhos, chapéus de
palha de abas largas, ou forrados de seda, tudo isto
enfeitado com grinaldas de flores, e com uma quantidade
prodigiosa de laços de fita encarnada. Cada um destes
meninos levava um instrumento pastoril em que tocavam,
pandeiro, machete e tamboril. Caminhavam formando um
quadrado, no meio do qual ia o chamado imperador do
Divino, acompanhados por uma música de barbeiros, e
precedidos e cercados por uma chusma de irmãos de opa
levando bandeiras encarnadas e outros emblemas, os quais
tiravam esmolas enquanto eles cantavam e tocavam.
O
imperador, como dissemos, ia no meio: ordinariamente era
um menino mais pequeno que os outros, vestido de casaca de
veludo verde, calção de igual fazenda e cor, meias de
seda, sapatos afivelados, chapéu de pasta, e um enorme e
rutilante emblema do Espírito Santo ao peito: caminhava
pausadamente e com ar grave.
Confessem
os leitores se não era coisa deveras extravagante
ver-se um imperador vestido de veludo e seda,
percorrendo as ruas cercado por um rancho de pastores,
ao toque de pandeiro e machete. Entretanto, apenas se
ouvia ao longe a fanhosa música dos barbeiros, tudo
corria à janela para ver passar a Folia: os irmãos
aproveitavam-se do ensejo, e iam colhendo esmolas de
porta em porta.
Enquanto
caminhava o rancho tocava a música de barbeiros;
quando parava, os pastores, acompanhando-se com seus
instrumentos, cantavam; as cantigas eram pouco mais ou
menos no gênero e estilo desta:
O
Divino Espírito Santo
É
um grande folião,
Amigo
de muita carne,
Muito
vinho e muito pão.
Eis
aí o que era a Folia, eis aí o que o compadre e o
afilhado encontraram no caminho.
A
este episódio da Folia seguiam-se outros de que vamos
em breve dar conta aos leitores. Por agora porém
voltemos aos nossos visitantes.
Chegaram
eles à casa de D. Maria, e acharam ainda todos à
janela, porque acabava de passar a Folia. D. Maria
recebeu-os com a sua costumada amabilidade. Leonardo
ao entrar lançou logo os olhos para a sobrinha de D.
Maria; porém, sem saber por quê, não teve desta vez
mais vontade de rir-se; entretanto a menina continuava
a ser feia e esquisita; nesse dia estava ainda pior do
que nos outros. D. Maria tinha tido pretensões de
asseá-la; vestira-lhe um vestido branco muito curto,
pusera-lhe um lenço de seda encarnado ao pescoço e
penteara-a de bugres. Por isso, agora que tendo ela
tirado a costumada viseira de cabelos, lhe podemos ver
o rosto, digamos, em abono da verdade, que se estava
nesse dia mais esquisita quanto ao todo, podia-se-lhe
notar que não era tão feia de cara como a princípio
pareceu.
O
caso foi que o Leonardo começou a olhar para ela sem
mais vontade de rir-se; olhou uma, duas, três,
quatro, muitas vezes enfim, sem que nunca satisfizesse
ao que ele interiormente chamava curiosidade de
apreciar aquela figura.
A
menina por sua parte continuava no seu inalterável
silêncio e concentração, de olhos baixos e queixo
no peito. Entretanto quem tivesse hábito de
observador fino poderia ter visto algum levantar de pálpebras
rápido, e algum olhar fugaz dirigido para o lado do
Leonardo.
D.
Maria e o compadre conversaram segundo o seu
costume.
Na
ocasião da saída, D. Maria, dirigindo-se ao
compadre, disse-lhe:
—
Olhe, escute: nós hoje vamos ao Campo ver o fogo,
bem podíamos ir todos juntos; que diz?
—
Sim, podíamos, respondeu o compadre: eu tinha de
ir só com o meu rapaz; mas uma vez que me
oferece, iremos todos juntos. E leva a senhora a
sua menina, não é?
—
Oh! levo, coitada; ela nunca viu o fogo; no tempo
do pai nunca saía...
Sem
pensar, o Leonardo estremeceu de contente:
pareceu-lhe que desse modo teria mais ocasião de
satisfazer a sua curiosidade. A menina nem se
mexeu; pareceu-lhe aquilo absolutamente
indiferente.
—
Pois então estamos ajustados, acrescentou o
compadre, e à noite cá as viremos buscar.
E
saíram.
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