UM
INCIDENTE
Em
casa do sr. imperador há uma lida, uma
barafunda, que eu sei lá!…
Roupas
brancas ao sol, secas de goma, os estandartes de
seda pelas janelas fora, enrolados, grandes
cestos de verdura e flores sobre o balcão,
molhos de canas de foguetes por aqui ou por acolá,
mesas lavadas ao sol, um montão de cadeiras, em
desordem, de pés ao ar umas, de lado outras…
Vê-se que há ali trabalho… E que balbúrdia,
que confusão!… Todos andam esbaforidos e
apressados…
Rapazes
que acarretam coisas de fora - loiças, bancos,
alguidares; grupos de raparigas com cestos de
copos e garrafas; homens sisudos e atarefados
que armam os arcos - à porta de entrada, ao
portão e a atravessar o caminho…
- Também não
fica mau!…
E a cozinha
do imperador fumega todo o santo dia, em roças
de fumo que é uma coisa!…
A
cada fornada de pão que se coze atira-se uma
resposta, quando se toma
a presa às massas queima-se um foguete.
E aqui a
senhora imperatriz tem que atender a tudo, dar
expediente a tudo…
O magarefe
ainda de braços ensanguentados, a comprida faca
na mão e o suor em camarinhas pelo peito - a
camisa aberta, dá a derredeira demão à carne:
aquela para cozer, aquela para assar, aquela
para os senhores padres, aquela para os
cantores, esta para…
_ Não se
poipa… Há para tudo com a graça do Senhor
Espírito Santo!…
E a
cozinheira e as ajudantes de braços arregaçados,
as saias presas à cintura, os lenços atados
para trás, vão e vêm e voltam, e andam numa
confusão…
- Vamos
daqui, vamos daqui…
- Meninos,
brincar lá para fora…
E pela porta
da cozinha sai um enxame de crinças,
enfarinhadas, trazendo pedaços de pão, retoiçando
alegres…
O senhor
imperador, esse, então, nem falar nisso…
- É preciso
um homem ter cabeça para estas coisas…
- O Senhor
Espírito Santo ajuda…
E dá-se um
gole de aguardente a este que está suado, um
copo de vinho àquele - para ir depressa, uma
fatia de pão àquele outro para levar aos
pequenos…
-
Há para todos com a graça do Senhor Espírito
Santo!…
Mas à tarde
fez-se uma relativa quietação pacificadora…
- Não tarda
aí essa gente…
Essa
gente eram os
vizinhos, os conhecidos, as pessoas devotas, que
todas iam rezar o Terço ao Divino Espírito
Santo.
Deu-se então
à casa a ordem possível, que a sala de fora
essa está sempre arranjada…
O altar da
Coroa é uma coisa linda, de rendas e flores e
lumes, a sala é um céu, de cortinados e de lençoís
de linho, afestoada de lenços de seda e
engalanada de cordões e anéis de oiro…
E como quer
que nestes dias só se trate de coisas indispensáveis
à vida - a lenha para as fornadas de vésperas,
moenda para o pão da festa e comida para o
gado, a senhora imperatriz deixou de andar em
dia com a bisbilhotice das vizinhas; mas ao
marido sempre vão dizer as coisas. Ela não
sabe como é. Acha-o triste. Quem serve
sempre
tem desgosto!
- Coitado!
Tenho dó dele! - comentava a que atiçava o
lume do forno, afectando uma grande inquietação.
E depois dum
suspiro, mal reprimido:
-Ah! línguas,
línguas, quem as apanhasse picadas entre esta
lenha!…
A senhora
imperatriz estacou no meio da cozinha, com as mãos
nas ilhargas e o rosto em camarinhas:
- Mas que é
que foi agora?!
- Que é que
foi?! A comadre está farta de o saber!
- Assim Deus
me salve, como não sei nada! Que foi?!…
- Antes
tratasses do forno! - enviessou uma lá dum
canto, muito aborrecida, a temperar um molho.
Mas a
senhora imperatriz insistia: não era bem que em
sua casa, e em dias daqueles, se dissessem
coisas que ela não pudesse saber…
E a do
forno, com grandes gestos, assomadiça:
- Antes eu
estivesse calada!… Vá a comadre tratar do seu
governo!…
A dona da
casa exaltou-se: que não tivesse o atrevimento
de lhe dar ordens e que já que falava por meia
língua havia de dizer o resto!
- Eu cá não
digo nada!
- Há-de
dizer!
- Dize,
criatura! intervieram as outras, fazendo sinais
para aquilo não ir por diante.
Um grupo de
mulheres que chegava açodado com coisas
precisas, inteirado do incidente, achou que a
senhora imperatriz tinha carradas de razão… A
outra se sabia alguma coisa a respeito do dono
da casa devia declará-lo, até para não se
fazerem juízos terminários
, porque às vezes uma pessoa andava vendida
inocente…
E a sujeita:
- A respeito
de meu compadre, daquelas barbas honradas, o quê,
filhas?!… Foi cá uns zuns-zuns que me
passaram pelos ouvidos, mas a respeito doutra
pessoa…
E muito
sacudida:
- Ora aí
está! Fiquem vocemecês agora descansadas!
- De outra
pessoa?!…
Foi uma
explosão!
É bem
feito, que havíamos de estar em nossas casas!
- Eu cá se
não fosse com medo de algum castigo do Senhor
Espírito Santo…
- Ó
mulheres! isso não é com vocês! gritava a do
forno.
Uma vinha
com uma colher para a senhora imperatriz provar
um tempero, mas esta repeliu-a, protestando colérica
que a deixassem, que já estava quase doida, que
lhe mudassem o nome que tinha se aquilo se não
pusesse a claro…
A outra
contiuava a bravejar, algumas berravam que
daquela maneira ficava o governo por fazer,
outras protestavam alto contra os mexericos que
roubavam o sossego das pessoas, e o alarido
estendendo-se pela casa fora, chegou ao balcão,
ao pátio e à rua.
Toda a gente
correu por ali dentro, ansiosa de saber de que
se tratava. O senhor imperador veio também, pálido
e enfiado, ainda com um foguete e um tição, de
olho assarapantado, receando que o tecto da
cozinha tivesse vindo abaixo.
A coisa
estava custosa de aclarar.
Todas
falavam ao mesmo tempo, alto e com grandes
gestos, e o senhor imperador não sabia a qual
atender.
O magarefe,
nos bicos dos pés, sobre a soleta da porta da
cozinha, perguntava se algum caldeirão tinha
estoirado, e uma mulher, que emprestara pratos,
entrava a inquirir, possessa, se se tinha
quebrado a loiça.
Ninguém se
entendia!
O senhor
imperador, nervoso, encaminhou-se para o balcão,
atirou o foguete, para que se soubesse que não
tinha acontecido nenhuma desgraça, e voltou a
ver se conseguia deslindar a questão.
A explosão
da cólera entre o mulherio que redemoinhava na
cozinha estava no seu auge.
A mulher do
forno deliberara, finalmente, falar.
As suas
palavras eram repetidas naquele pandemónio,
espumante de indignação:
- O João
Rodrigues tinha dito que o vinho do senhor
imperador ainda era mais somenos que vinagre!
O senhor
imperador abalou, a atirar mais foguetes:
- Ora! Ora!
Nunes
da Rosa, “Um incidente”,
in Gente das Ilhas,
2ª
ed., Angra
do Heroísmo,
1978, pp. 57-61.
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