Nota prévia: A
minha mãe, na sua compulsão pela escrita, que eu herdei,
escreveu no fim dos seus oitentas uma crónica sobre
as festas do Espírito Santo. Faltou-lhe o componente
gastronómico, à terceirense.
Vou preencher essa lacuna, com um excerto do meu livro
"O gosto de bem comer".

Função do Espírito Santo por ocasião das festas do
Dia de Portugal, realizadas em Angra do Heroísmo em
Junho de 2003 na Rua de São Pedro, Angra do Heroísmo,
Terceira, Açores.
Função do Espírito Santo
de
João Vasconcelos Costa
(Terceira)
(...)
Era imperdoável não incluir uma referência icónica do
património gastronómico açoriano, reflectindo uma
profunda tradição dos ilhéus, que é a da
refeição do dia do Espírito
Santo, uma festa especialmente importante nos
Açores. Aliás, dobre-se a língua, com o sentido de
respeito telúrico que os açorianos têm para com o
altíssimo terríbil, semeador de vulcões e sismos: na
minha terra diz-se o Divino Senhor Espírito Santo, às
vezes apenas o Divino. Com muitas variantes, mas não
substanciais, a cozinha do Espírito Santo faz-se em
todas as ilhas, mas atinge o seu ponto alto na Terceira,
de onde me vêm as influências maternas.
O culto
do Espírito Santo parece ter origens nas grandes
conturbações milenaristas, com a ideia da proximidade de
uma idade do Espírito Santo, mas veio a tomar forma mais
aparente por acção dos franciscanos espirituais,
perseguidos na França e na Itália (recorde-se “O nome
da Rosa”, de Umberto Eco) mas bem acolhidos em
Aragão. Daí ser idéia bem implantada que o culto do
Espírito Santo teria vindo para Portugal com a Rainha S.
Isabel. Ao fim de tantos séculos, e em parte por
oposição ou, pelo menos, reserva por parte da Igreja,
sobreviveu no continente e no Brasil (aqui, até mais
tarde e mesmo até hoje) apenas vestigialmente, em
algumas manifestações localizadas, como a festa dos
tabuleiros em Tomar ou a festa do Espírito Santo do
Penedo, em Sintra. Mas há notícia de festas do
Espírito Santo em muitos outros lugares ainda nas duas
primeiras décadas do século passado. Curiosamente, era
ao longo do vale do Tejo, e mais em particular no Alto
Tejo, que se concentravam mais particularmente essas
festividades. É a região que referi como possível origem
importante da colonização açoriana, principalmente a de
S. Miguel.
E foi para os Açores que o culto
do Espírito Santo, religioso e também profano, foi
levado logo pelos primeiros povoadores, sobrevivendo até
hoje com a mesma pujança e com o mesmo valor ancestral
de religiosidade e de elemento identificador da
realidade antropológica açoriana. Não me
parece arriscado afirmar que, na grande diversidade
cultural do arquipélago, de ilha para ilha e até
entre subculturas da mesma ilha (por exemplo, entre
camponeses e pescadores), o grande traço
identificador comum, indiscutível, é o culto do Espírito
Santo. Razão teve o governo
regional em adoptar como hino regional o antiquíssimo
hino do Espírito Santo e em declarar a segunda feira de
Pentecostes como feriado regional. É este
profundo sentimento de identificação do homem açoriano
que justifica o florescimento de festas do Espírito
Santo, com algumas adaptações pitorescas, nas numerosas
comunidades açorianas da Califórnia, da Nova Inglaterra
e do Canadá.
No
entanto, há grandes variações nas festas, de ilha para
ilha, mas com uma matriz comum. É um bom exemplo de como
a variedade não prejudica, antes enriquece, um
património cultural comum bem sentido, profundamente,
como identificador de uma comunidade.
As
festas de Espírito Santo têm um componente importante de
humildade e igualdade (que se pode encontrar, tão
remotamente, nas saturnais romanas), próprias das
ideologias milenaristas e utopistas, de novo império,
retomadas por uma espécie de “filosofia nacional”, de
destino privilegiado, no discurso sobre o quinto Império
do Padre António Vieira e até, tão recentemente, por
saudosistas como Agostinho da Silva ou António Quadros.
Esse carácter de igualdade é simbolizado pelas versões
mais antigas das festas, hoje desaparecidas, como as dos
Impérios dos Nobres, em que estes coroavam
simbolicamente um pobre como detentor de um poder que,
de facto, nada significava na realidade social da época.
A coroação, hoje de uma criança, com o seu cortejo e
a sua cerimónia religiosa, continua a ser central em
todo o rito e a coroa de prata do Espírito Santo, o
grande símbolo das festas, assim como a bandeira de
adamascado vermelho com a pomba em prata, está presente
em todas as casas açorianas (e é um bom negócio para
as ourivesarias).
Disse
cerimónia religiosa, que há pelo menos dezenas de anos
se passa na igreja e com a participação do clero, mas
nem sempre foi assim. Por razões que não conheço a
fundo, mas que julgo relacionarem-se, por um lado, com a
reserva da Igreja pós-tridentina em relação a tudo o que
não fosse a ortodoxia religiosa e, por outro, com a
altivez e enorme força de carácter das comunidades
populares açorianas – veja-se o que diz Mouzinho da
Silveira, no seu testamento, a propósito dos corvinos
que foram à Terceira apresentar-lhe as suas
reivindicações – as festas
açorianas do Espírito Santo que chegaram até nós são
essencialmente populares e marginais à Igreja.
Até nos locais emblemáticos de culto, os
impérios ou teatros, que todo o visitante dos Açores
conhece, principalmente, pela sua profusão e riqueza de
arquitectura popular, na ilha Terceira. São pequenas
capelas, normalmente de um estilo barroco em versão
popular, com uma grande paleta de cores, encimadas pela
pomba do Espírito Santo em vez da cruz.
Na altura das festas, abrem-se
de par a par as suas portas, não para que entrem as
pessoas, que lá não cabem, mas para expor os símbolos,
coroa e bandeira, num trono de vários andares
exuberantemente decorado com flores e castiçais
valiosos.
(Tendo
chamado à baila Mouzinho da Silveira, abro um parêntese
para contar a história, tal como a conheço. Não podem
imaginar o que ainda é hoje o isolamento dos corvinos,
os cerca de quatrocentos habitantes do Corvo, a ilha
minúscula que fica nos confins do arquipélago. Viviam
oprimidos pelos altos encargos do regime senhorial, que
a revolução de 1820, com os tempos conturbados de
efervescências absolutistas que se lhe seguiram, nunca
chegou a abolir. Certo dia, depois da instalação na
Terceira do governo liberal de D. Pedro IV, um grupo de
corvinos meteu-se num pequeno barco e afrontou as muitas
milhas do terrível mar açoriano para chegarem à Terceira
e irem à viva voz com Mouzinho, a quem expuseram as suas
queixas. Mouzinho ficou de tal forma impressionado com
essa gente de enorme carácter e coragem que, não só
nessa noite de “directa”, como hoje dizem os jovens,
redigiu todos os decretos de abolição dos morgadios e
dos direitos feudais senhoriais, como dispôs no seu
testamento que queria ser enterrado no Corvo, junto dos
mais nobres portugueses que tinha conhecido. Ainda
espero que se venha a concretizar um dia essa exemplar
disposição testamentária do grande Mouzinho.)
Mas, porque afinal este é um livro de
cozinha, passemos ao outro elemento simbólico da
fraternidade de Espírito Santo, que é o da oferta a
todos os pobres da refeição das festas. O imperador,
eleito anualmente – ou melhor, leiloado pela melhor
oferta de grande festa – tem a obrigação de fornecer
essa refeição a todos os pobres do seu império, que
tanto pode corresponder a uma freguesia (nos Açores não
se diz aldeia) como até a uma rua da cidade, como
era na minha
meninice na rua do Saco em Ponta Delgada (uma rua que me
lembra, com todas as suas histórias, a Via del Corno de
Vasco Pratolini e que talvez, um dia, venha a ser a
referência de muitas memórias a passar a escrito, se o
Divino Senhor Espírito Santo me der vida e saúde…).
Essa
distribuição de alimentos varia um pouco de ilha para
ilha. Em todas é constituída basicamente
pela “pensão”. Mas em S.
Maria há várias refeições de Espírito Santo
e na Terceira há também o bodo
de leite, em que se traz as vacas,
engalanadas, para serem mungidas na praça da freguesia.
À margem da gastronomia, refira-se também o caso
excepcional da Terceira, com as suas touradas à corda.
Os terceirenses são uns “bon
vivants” (novamente contra a errada idéia
continental do açoriano tristonho).
Desde
logo, porque aproveitam todas as oportunidades para a
festa. Apesar de, convencionalmente, a festa de
Espírito Santo ser no domingo de Pentecostes, cada
freguesia terceirense – e também nas outras ilhas –
escolhe um dos fins de semana desde a Páscoa até ao
domingo da Trindade para a sua festa, para não haver
sobreposições e se aproveitar bem as festas de todas as
freguesias. E é um rodopio de toda a população
terceirense, durante várias semanas, por todas as
freguesias da ilha. Depois, com o bodo de leite no
sábado, a coroação no domingo, a tourada à corda na
segunda feira e o curtir da bebedeira na terça,
trabalha-se só três dias por semana durante todo esse
tempo. O que vale é que a terra é muito fértil.
A
distribuição de alimentos não se limita aos pobres.
Os membros de cada irmandade, como eram os meus pais,
pagam ao longo do ano uma quota (recolhida
por um grupo que percorre o império com a sua bandeira
do Espírito Santo) para também receberem a
pensão na altura das festas. A sua distribuição é
pitoresca, mas não sei se ainda se faz como era na
minha meninice. As vitualhas iam em carros de bois,
daqueles bem velhos, com rodas maciças de madeira, todos
enfeitados com grinaldas e arcos de flores de papel, com
uma grande roda frontal de flores de papel brilhante de
várias cores. Os próprios bichos, com a sua pachorra,
também iam bem enfeitados. À frente, os foliões, um
quarteto de tocadores de rabeca, viola da terra,
pandeireta e ferrinhos, vestidos com uma opa vermelha
toda às ramagens e com uma mitra à bispo, do mesmo
tecido. Atrás, na Terceira, ia
outro carro de bois enfeitado com ramos de faia, em que
se acumulava a malta miúda a fazer macacadas.
Por isto me dizia a
minha avó, quando eu julgava
dizer alguma coisa com graça, “ainda hás-de ir
no carro das faias”.
Apesar
de algumas variantes de ilha para ilha, como disse, a
“pensão” do Espírito Santo é composta basicamente por um
pão, uma boa quantidade de carne, um bolo de massa
sovada e uma garrafa de vinho de cheiro. Na minha
ilha, a carne é habitualmente
usada para um assado. Na Terceira, para além da alcatra,
faz-se um cozido de que se usam alguns ingredientes e o
caldo para uma sopa. Tudo isto compõe uma
refeição a que se chama a função do Espírito Santo e que
passo a descrever, tal como ainda hoje se faz
ritualmente em Algés, na minha família, normalmente a
cargo do meu irmão mais novo, o mais tradicionalista de
todos nós, e agora a perpetura a bênção maternal.
A
confecção básica é a do
cozido, de que se faz a sopa.
Para o cozido,
600 g
de carne de vaca (alcatra e aba), 300 g de toucinho
entremeado, 125 g de bacon (antigamente, toucinho
fumado), meia galinha, uma lingüiça grande (como já
disse, não usar a lingüiça do continente, mas sim
chouriço, de preferência um chouriço picante), 500 g de
fígado em
peça, 0,5 l de sangue de porco coagulado (já não se pode
usar o de vaca, que era o tradicional), um repolho, 6
batatas, uma cebola, 3 dentes de alho, sal, pimenta
preta, pimenta da Jamaica e tomilho (é o único prato de
cozinha popular portuguesa, que me lembre, que usa
tomilho – aqui está mais uma especificidade da cozinha
açoriana). Como se vê, o cozido açoriano, de que também
já descrevi atrás a variante micaelense das Furnas, é
menos variado do que muitos cozidos continentais. Não
fica nada pior por isso. Desses ingredientes, só o
sangue é que pode ser difícil de obter. Se tem um
talhante conhecido, peça-lhe que arranje o sangue
coagulado no matadouro. Com toda a família instalada no
continente, nunca tivemos dificuldade em obtê-lo.
Cortar as carnes, o fígado, o sangue e a galinha aos
pedaços e a linguiça em rodelas grossas. O repolho é
cortado em nacos grandes. Cozer tudo, excepto o fígado e
o sangue, com a cebola, o alho e os temperos, ficando o
repolho por cima. O fígado e o sangue são cozidos à
parte, em água com sal e pimenta e um ramo de hortelã.
Quando o cozido estiver pronto, juntar umas colheres do
molho da alcatra feita entretanto ou a fazer e uma cs
bem cheia de manteiga. O cozido é acompanhado com arroz
cozido no caldo.
Para
a sopa,
colocar numa terrina um pão caseiro partido (à mão,
segundo a tradição) em bocados grandes, com uma ramo de
hortelã e abafar com o caldo do cozido durante alguns
minutos. Juntar repolho e batata do cozido. Ao servir,
juntar a cada prato de sopa um pedaço de fígado e um de
sangue.
A
seguir, serve-se uma
alcatra. A alcatra é um ícone da cozinha
terceirense. Tem tanto valor afectivo para mim, como
parte do meu património construtor da personalidade, que
sou extremamente exigente. Ela faz-se em todas as
festas, com destaque para o Espírito Santo e as famílias
rivalizam na boa confecção da alcatra, daí o tal aspecto
de que falava, de património cultural. Começou a
popularizar-se cá, em alguns restaurantes, mas não é a
mesma coisa, a começar pela falta do típico recipiente
de assar, que é essencial para a qualidade do prato.
A
receita da minha família materna tinha fama, feita
com o vinho verdelho da quinta do meu bisavô no
Porto Martins. Era um vinho de produção familiar, mas
que tem a sua história. O meu primo Sousa Júnior foi um
notável infecciologista, da época da peste, catedrático
da Faculdade de Medicina do Porto. Reformado, foi vender
o vinho da família para uma taberna do Porto Martins, de
chinelos de ourelo, perdido em conversas à Nemésio
com os camponeses da terra.
A
rivalidade na qualidade da melhor alcatra da Terceira
era com a das grandes amigas Maias da minha avó, de quem
bem me lembro, porque elas tinham o seu vinho dos
Biscoitos. A sua família Brum é hoje a única que
teima, corajosamente, em cultivar o grande vinho dos
Biscoitos. Transformaram a quinta num excelente museu
de vinho para turistas e claro que lá vendem o seu
vinho. Não percam o trabalho magnífico de museologia do
vinho dos Biscoitos do meu caro amigo Luís Brum. Agora,
até há uma confraria.
Isto lembra-me outra história - nunca
consigo parar, nem quando vejo os meus amigos já
entorpecidos com as minhas histórias -, que, para
começar, tem que se dizer que o vinho dos Biscoitos tem
pelo menos 16º. Um dia, o meu pai teve que ir à Terceira
com quatro mestres para começar uma obra. Enquanto ele
ia visitar a família, combinou encontrar-se com os
mestres em
qualquer sítio, porque a obra era urgente. Encontro,
nada. O meu pai calcorreou a cidade de alto a
baixo e foi encontrá-los numa taberna do Alto das Covas,
a dormir profundamente sobre a mesa onde estavam creio
que seis garrafas de vinho dos Biscoitos, para eles uma
novidade.
O
alguidar da alcatra é
conservado com todo o cuidado pelas cozinheiras
terceirenses. É um recipiente de barro local, não
vidrado (esta é a característica mais importante), com
forma de alguidar mas mais alto e estreito. Antes de ser
usado, tem que ser obrigatoriamente preparado, ficando
uma semana cheio de água (que se muda duas vezes) com um
molho de hortelã, cinco dentes de alho esmagados, uma
cebola aos quartos e duas folhas de louro. Com o uso,
vai adquirindo “patine” da alcatra. Mas também há riscos
em deixar envelhecer demais um alguidar de alcatra. Um
dos meus irmãos preparou um dia uma alcatra e, ao
retirá-la do forno para a servir, com todos os
convidados já à mesa, partiu-se o fundo do alguidar e lá
ficou a alcatra espalhada por toda a cozinha.
Como
tenho um alguidar vindo da Terceira, nunca me preocupei
em encontrar cá um bom substituto. Agora que escrevo
este livro, noto esta minha falha, não podendo
aconselhar aos meus leitores uma boa alternativa. Mas,
com a descrição que fiz, talvez a encontrem. Se não,
usem um recipiente de barro não vidrado, relativamente
alto em relação ao diâmetro e experimentem. Mas é
provável que não fique uma alcatra genuína.
Há
três versões da alcatra. Na cozinha popular, ela é
feita com o vinho de cheiro, o vinho tinto de muito má
qualidade feito das uvas americanas com que se
replantaram os vinhedos açorianos depois da praga da
filoxera, no século XIX. Na cozinha aristocrática, como
disse, usa-se vinho verdelho, onde se arranja, agora só
nos Biscoitos. Na terceira versão, actual, uso outro
vinho branco. É importante que seja um branco de muito
boa qualidade. Em princípio, para um assado de carne,
devia ser um branco seco. Mas, se quiser aproximar-se da
tradição rica de usar verdelho ou vinho dos Biscoitos,
faça uma excepção à regra e substitua na minha receita o
meio litro de vinho branco por 4 dl de branco seco e 1
dl de moscatel ou de Madeira meio-seco. Melhor ainda,
o Madeira verdelho ou seco. 2,5 kg de uma mistura de
carnes, cortadas em pedaços grandes: 2/3 de folha ou
ponta de alcatra e 1/3 de aba grossa (segundo a
nomenclatura do continente, que difere da açoriana; nos
Açores, seriam, respectivamente, rabadilha e lagarto); 2
cebolas grandes, 4 dentes de alho, sal, 12 grãos de
pimenta preta, 8 grãos de pimenta da Jamaica, uma folha
de louro, 6 cs de manteiga, 250 g de toucinho fumado,
hoje bacon (retirando a carne!) e 0,5 l de vinho branco.
Tradicionalmente, usava-se também um osso com bastante
tutano, o que enriquecia notavelmente o prato. Hoje é
proibido.
Colocar às camadas alternadas os pedaços de carne, a
cebola às rodelas finas, os alhos pisados com a casca, a
manteiga e os temperos. A última camada não deve ser de
cebola. Regar com o vinho e um pouco de água, a cobrir,
e assar em forno muito quente. Dar voltas com frequência
e acrescentar de tempos a tempos umas colheres de vinho
(nas duas primeiras vezes) e depois de água. Ao fim de
algumas horas (cerca de seis horas!), a carne deve estar
a desfiar e o molho gordo e apurado.
A alcatra melhora muito se feita com
antecedência e depois reaquecida, quantas mais vezes
melhor. Este é mais um dos pratos açorianos que se serve
sem acompanhamento. O acompanhamento é o pão que, sem
ser considerado má educação, se vai embebendo bem no
molho. Para maior cerimónia, sugiro aos meus leitores
que sirvam a alcatra para os pratos
individuais com uma boa fatia de pão rústico
ligeiramente torrado, mas nunca com arroz ou batatas,
como nos restaurantes continentais que servem “alcatra”.
No
fim da refeição, a
massa sovada.
Há muitas receitas, mas esta é considerada a
melhor dos vários ramos e raminhos da família:
1 kg de farinha, 400 g de
açúcar, 1 chávena de leite, 8 ovos, 60 g de manteiga, 70
g de banha, 40 g de fermento de padeiro, 1 colher chá de
sal. Derreter o açúcar no leite quente. À parte,
derreter em banho-maria a manteiga e a banha. Aquecer os
ovos, inteiros, em água morna e diluir o fermento e o
sal num pouco de água quente. Misturar tudo e amassar
muito bem, dando muitas voltas à massa e, como diz o
nome, calcando-a com o punho. Polvilhar com
farinha, embrulhar num pano e deixar a levedar num
local a boa temperatura. Formar os bolos,
semi-esféricos e, segundo a tradição de origem
religiosa, dar-lhes com uma faca um talho em forma de
cruz. Deixar levedar novamente e levar ao forno bem
quente, durante cerca de uma hora, no tabuleiro
polvilhado com farinha.
É
indispensável ter na mesa muitos confeitos, uma
velhíssima tradição portuguesa, hoje esquecida, de umas
pequenas porções de açúcar em ponto muito alto, de
alfenim, aromatizadas com
erva doce e moldadas com forma de framboesas. Ainda
hoje, estão sempre na nossa função familiar, porque o
meu irmão A. L. é perito em fazê-las, como tudo o que é
doce. Na Terceira, o açúcar em alfenim também serve para
moldar as variadas figuras que ornamentam e deliciam os
gulosos pelo super-doce: pombas, cobras, cães, tudo o
que vem à cabeça. Não é dia para pensar em dietas e
calorias.
Finalmente, nada disto me sabe bem se não me curvar
antes perante a mesa de Espírito Santo que o meu irmão
arma, miniatura dos teatros do Divino: mini-bandeira,
coroa, castiçais, flores, tudo contra o mais puro branco
do melhor linho ilhéu. E, em fundo, o belíssimo terço do
Espírito Santo, este sem rival açoriano com o micaelense.
E, com
tudo isto, a minha velha fórmula:
sou muito açoriano porque sou
muito português e sou muito português porque sou muito
açoriano.
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