Vibram
clarins. A praça ao sol fulgura. Vão começar as
cavalhadas.
Pelo vão da tranqueira aberta sobre a arena,
surge um corpo de pajens, o que deve, nas
escaramuças que se preparam, servir os
cavaleiros. Vêm a pé. Vestem indumentária do seu
tempo, sem espadas, porém. Trazem o tricórnio na
mão, mostrando as cabeleiras premidas por um
laço a catongan. Estão a dois de fundo e,
assim, marcham até ao centro do terreno onde,
estacando, fazem ao vice-rei cortesias do
estilo: recuam o pé direito, tocando com o
joelho o chão da praça, enquanto que, mantendo a
cabeça recurvada, tocam o queixo num dos ângulos
do tricórnio, posto em massa sobre o peito. E,
logo, evoluindo em uma fila singela, avançam
para se dividirem, depois, em dois grupos: um
que toma o caminho da direita, outro, o da
esquerda. Aos compassos da marcha batida, que
ressoa, voltam eles depois e saem pelo vão da
tranqueira, para logo surgirem acompanhados das
azemolas, pejadas de guizos e que carregam em
vastos surrões de couro, os assuntos que vão
servir à prática dos jogos: lanças, postes de
argolinhas, cabeças em massa, alcanzias e mil
outras utilidades pequeninas.
Fazem os animais, então, antes de ser
descarregados, o circuito da praça, seguidos
pelos seus guias que, depois, os aliviam da
carga, colocando-a sobre a arena, de forma a bem
servir, oportunamente, os cavaleiros que não
tardam. Só aí é que os mesmos entram em duas
filas de seis, ao todo doze, distingüidos pela
cor dos vestuários. Mostram os de uma fila
vestimentas verdes, os da outra, cor de rosa.
Calçam todos igualmente, porém, luva branca na
mão esquerda, e trazem no tricórnio, alevantada,
uma grande pluma da mesma cor. Não mostram
botas, senão polainas, também brancas, das
altas, das de atacar, o excedente da fita em
amplo laço caído sobre a perna. As selas dos que
trazem as roupas cor de rosa, são vermelhas, e
as dos que trazem roupas verdes, amarelas.
Combinando com tais cores estão, ainda, as
rédeas, cabeçadas, rabichos e pontas das guias.
São, porém, uniformes os xaréis, bem como os
peitorais e seus enfeites; as ferragens são
prateadas, bem assim os copos dos freios e dos
estribos. Trazem na mão, os cavaleiros, lanças
decontoadas e logo de entrada fazem marchar, a
passo, as suas cavalgaduras. Não tiram o chapéu.
Majestosos e serenos vão eles, assim, ao
encontro do anfi-teatro, olhando perfilados o
camarim do vice-rei, para fazer a continência
espetaculosa dos sete tempos. Consiste essa
continência num destro e elegante manejo
executado pela lança, que toma sete posições
diferentes, até ser arremessada, afinal, para
trás, onde fica com a botana encalhada entre os
dedos do jogador que completa o sétimo tempo,
fazendo cair o braço, com graça, até descansá-lo
sobre a coxa. Três vezes é repetida a cortesia.
Acabada a última, deixam os cavaleiros os
recontros das lanças de rastro, avançam ainda
mais, em direção ao camarim, até a um ponto onde
se vê um vulto estranho surgindo do terreno,
todo envolto em damasco vermelho e que mais
tarde se verá o que é. Isso feito, dividem-se
eles em dois grupos, momento em que, levantando
os cavalos de galope, terçam as lanças ao meio,
pegando-lhes com a mão direita voltada para
baixo. O galope é vistoso e, nas passagens que
fazem os dois grupos, um junto ao outro, os
cavaleiros erguem o braço direito para cima,
olhando, cada um, com graça e agrado, o seu
competidor.
Segue-se a manobra dos círculos, em rodopio,
fazendo os cavaleiros da fileira do centro
galopar os seus cavalos na ação da volta ao
revés para não voltar a cara aos cavaleiros da
fileira que anda por fora. E várias figuras,
outras, vão mostrando a destreza dos jogadores e
suas alimárias até terminar pela ocupação de
pontos opostos na arena, bem separados os grupos
pela cor do que vestem.
Há um minuto de descanso: é o momento em que os
pajens, portadores de cabeças de papelão
pintado, avançam e as vão colocando, espalhadas,
sobre o solo. Têm elas um tamanho natural e
firmam-se, quando postas no chão, pela base do
pescoço. Preparado o recinto para novo jogo,
voltam eles a trocar as lanças decontoadas, que
trazem, por outras de fina ponta. A sorte é
divertida. O cavaleiro sai de arma em riste com
o mister de trazer, nela, tantas cabeças quantas
for possível. Atenção! Que as músicas cessaram e
o número curioso principia.
Avança o primeiro da fila à esquerda. É um
verde. Corre, atira a lança, esforça-se, porém,
sem nada conseguir. Nem uma cabeça fisgou. E é
assim que volta desbaratado e triste sob o
formidável apupo das bancadas que assobiam…
Agora, um outro, um cor de rosa, que acomete.
Bravo! Foi, porém, de raspão… A ponta de aço
feriu a primeira cabeça: feriu, mas resvalou.
Com as outras dá-se ainda o mesmo e desastrado
jogo. Tal qual o seu antecessor, não marca ele
um só ponto… E volta descoroçoado. O terceiro,
que é um verde, porém, traz duas cabeças. A
praça inteira exulta, grita, aplaude. O cor de
rosa, a seguir, mais feliz, ainda, enfia quatro!
Há delírio no povo. Aplaude-se a valer. Os
verdes, no entanto, no fim de certo tempo,
ganham a partida por três pontos.
Voltam os pajens, portadores de novas cabeças,
agora colocadas em plintos altos, de metro e
meio de altura.
Substituem-se as lanças por pistolas. O jogo é
simples, basta visar e atirar, que a cabeça,
logo, se despenhará. E cabeça por terra, ponto
marcado. Dá-se começo à escaramuça. Durante
vinte minutos as pistolas espoucam. Os aplausos
da massa sublinham os pontos feitos.
Os verdes ainda ganham desta vez. Evoés, gritos,
clamores! Minuto de descanso aos cavaleiros.
Sempre que estes descansam e os pajens saem a
preparar o âmbito da função, as músicas
clangoram. Já elas, porém, vibraram. E
emudeceram para dar início a outro número do
programa. E número de sucesso!
Dois pajens – um da fração verde, outro da
contrária – saem, cada qual dos castelos rivais,
onde se encantonam os cavaleiros, e caminham em
direção ao vulto embuçado, que já vimos colocado
bem em face ao camarim do vice-rei. E o
desvendam, arrancando os panos de damasco que o
envolvem. Surge à luz do sol, então, o busto
esplêndido de um homem de pau, trajado à romana,
tendo no braço esquerdo um escudo, e no outro um
vastíssimo azorrague. Assenta a figura em
pivot sobre um robusto pedestal fincado ao
solo. O povo logo o reconhece. Rebentam, com os
aplausos, gritos das bancadas:
- Estafermo! Estafermo!
Já estão prontos em fila os cavaleiros para
dar-se princípio à escaramuça. Sai o primeiro
jogador levando, em riste, a lança decontoada.
Já deu rédea ao cavalo para que ele corra
livremente; já firmou, sob o braço, a arma com
que há de ferir o centro do escudo da figura,
todo voltado para ele. O povo espera o golpe. Na
carreira, a lança fere, em cheio, o broquel. Com
o choque rápido, o estafermo, que gira sobre o
pino, lança automaticamente no ar o azorrague
terrível, que arremete contra cavaleiro e
cavalo. Não os atinge, porém. Por isso o povo
aplaude. A habilidade do jogador é fugir, como
esse fugiu, ao latego, de sorte que nem a
montada o receba de leve.
Não são esses, mas, os menos hábeis, aqueles que
mais divertem e mais fazem gozar o público,
porque basta um ligeiro desvio de lança para que
o vergaste venha sobre a montada ou sobre ele,
de tal sorte castigando-lhe o descuido ou a
imperícia. E tão forte é a vergastada que o
homem se encolhe todo sobre a cilha, quasi a
cair, e o animal, se a recebe, espinoteia e
abala em corrida desenfreada, não raro atirando
fora do estribo o próprio cavaleiro.
Parece que dos jogos esse é o que mais interessa
e mais deleita o público, tanto que, mal ele
termina, depois de muito fazer rir, agora com o
triunfo dos cor de rosa, num torneio de
agilidade e destreza, são todos unanimemente a
reclamar páreo novo, em extra. O programa,
porém, está longo demais. O sol já não assistiu
as últimas investidas do estafermo; perdendo,
portanto, um espetáculo bem divertido. O
horizontes arroxeiam. Os postes das argolinhas
já estão sendo preparados pelos pajens.
Correm-se as argolinhas, cumprindo-se o ritual
da boa cavalaria, que manda o jogador, quando
vence, entregar à dama do seu afeto a prenda
arrancada pela lança. Há, ainda, um número de
alcanzias – formas finíssimas de barro, ocas, do
tamanho de uma laranja, dentro das quais se põem
geralmente, flores, fitas ou papéis recortados
de cores várias. A marca é feita
atabalhoadamente, apressadamente, que não se
quer demorar o último número do programa.
Não há tempo, por isso, para correr, como se
contava e devia, o desafio das canas – canas de
açúcar que os cavaleiros deviam rebater,
cortando-as a espada pelo meio, - nem o número
dos pombos, muito semelhante ao das argolinhas.
A noite já vem perto e é necessário precipitar
quanto antes o combate final dos mouros e
cristãos. O estafermo já voltou ao seu rebuço de
damasco, e os postes e cacos de alcanzia foram
varridos da arena. Vêm antes de novo as azemolas
carregar o que a princípio trouxeram. A praça
fica limpa, até de pajens e de cavaleiros. Eis,
porém, que de repente, a galope, estes últimos
voltam – em dois grupos distintos, divididos:
primeiro o partido mouro, que se vai colocar na
parte extrema da praça, dando costas ao camarim
do vice-rei: depois o partido cristão. Cada um
traz a bandeira da sua crença, e, nuas, as
espadas de combate. Sempre dos mouros partiu a
provocação. Por isso um deles avança e,
concitando os seus à peleja, declama:
- Invencíveis guerreiros! Os cristãos vizinhos
nos incitam! Juremos pelo Alcorão morrer ou
vencer. Por Maomé!
E para os cristãos:
- Em nome do Profeta, rendei-vos ou tereis que
morrer!
Resposta dos cristãos:
- Os guerreiros da cruz não se rendem jamais,
que a vitória é sempre do Céu! Aceitamos o
desafio mouros reprobos! Defendei-vos!
As massas então avançam e a peleja estabelece-se
cerrada e vigorosa. Previamente, os mais ágeis e
adestrados são sempre escolhidos para o bando
cristão, a fim de melhor garantir a vitória do
céu.
O combate dura bastante tempo. O tocado de leve
pela arma contrária trata logo de cair porque se
arrisca, se não cair, a levar do adversário,
então, uma pranchada a valer.
Vencem, enfim, os cristãos. Senhores na luta,
portanto, ei-los ao centro da praça, brandido as
armas no ar, ovantes, gritando com fervor!
- Viva a Santa Madre Igreja!
- Viva Nosso Senhor Jesus Cristo!
Uma girândola de rojões sobe, de novo, aos ares.
As músicas atacam compassos finais.
Já Sua Excelência o senhor vice-rei, apressado,
pôs o pé no estribo doirado do seu coche e
abalou, enquanto à saída do pórtico da entrada,
há ambulantes que gritam as suas mercâncias,
negros que oferecem cabeças de alcatrão e
lanternas para os caminhos. Aglomeram-se
veículos de toda sorte e de todos os feitios:
coches, paquebotes, carrinhos de arruar,
florões, cadeirinhas e liteiras.
A noite já tombou sobre a praça, já envolveu
toda a cidade, já acendeu, na altura, as mais
lindas estrelas do céu. Noite alta, noite
profunda, noite silenciosa, mas sem lua. O povo
caminha, dirigindo-se para os lados da Sé, à
frouxa luz conduzida pelos negros, recordando as
minúcias da folgança, satisfeito das delícias da
tarde. A cidade, perto, avulta em massa espessa,
surgindo da treva, mostrando embora, de longe em
longe, clarões avermelhados que palpitam, que
cintilam, luzes que repontam aqui, ali, e acolá,
vagamente aclarando betesgas, caminhos, alfurjas
e travessas por onde se recorta a linha sinuosa
do povo que vem da praça e que se recolhe. São
as luzes dos candeeiros de azeite nos oratórios
das esquinas. Nunca se deitou tão tarde a
cidade.
Oito horas da noite.
(EDMUNDO, Luiz.
O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis) |