CAVALHADAS

Ilustração de autor ignorado. In Luiz Edmundo, O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reisVibram clarins. A praça ao sol fulgura. Vão começar as cavalhadas.

Pelo vão da tranqueira aberta sobre a arena, surge um corpo de pajens, o que deve, nas escaramuças que se preparam, servir os cavaleiros. Vêm a pé. Vestem indumentária do seu tempo, sem espadas, porém. Trazem o tricórnio na mão, mostrando as cabeleiras premidas por um laço a catongan. Estão a dois de fundo e, assim, marcham até ao centro do terreno onde, estacando, fazem ao vice-rei cortesias do estilo: recuam o pé direito, tocando com o joelho o chão da praça, enquanto que, mantendo a cabeça recurvada, tocam o queixo num dos ângulos do tricórnio, posto em massa sobre o peito. E, logo, evoluindo em uma fila singela, avançam para se dividirem, depois, em dois grupos: um que toma o caminho da direita, outro, o da esquerda. Aos compassos da marcha batida, que ressoa, voltam eles depois e saem pelo vão da tranqueira, para logo surgirem acompanhados das azemolas, pejadas de guizos e que carregam em vastos surrões de couro, os assuntos que vão servir à prática dos jogos: lanças, postes de argolinhas, cabeças em massa, alcanzias e mil outras utilidades pequeninas.

Fazem os animais, então, antes de ser descarregados, o circuito da praça, seguidos pelos seus guias que, depois, os aliviam da carga, colocando-a sobre a arena, de forma a bem servir, oportunamente, os cavaleiros que não tardam. Só aí é que os mesmos entram em duas filas de seis, ao todo doze, distingüidos pela cor dos vestuários. Mostram os de uma fila vestimentas verdes, os da outra, cor de rosa. Calçam todos igualmente, porém, luva branca na mão esquerda, e trazem no tricórnio, alevantada, uma grande pluma da mesma cor. Não mostram botas, senão polainas, também brancas, das altas, das de atacar, o excedente da fita em amplo laço caído sobre a perna. As selas dos que trazem as roupas cor de rosa, são vermelhas, e as dos que trazem roupas verdes, amarelas. Combinando com tais cores estão, ainda, as rédeas, cabeçadas, rabichos e pontas das guias.

São, porém, uniformes os xaréis, bem como os peitorais e seus enfeites; as ferragens são prateadas, bem assim os copos dos freios e dos estribos. Trazem na mão, os cavaleiros, lanças decontoadas e logo de entrada fazem marchar, a passo, as suas cavalgaduras. Não tiram o chapéu. Majestosos e serenos vão eles, assim, ao encontro do anfi-teatro, olhando perfilados o camarim do vice-rei, para fazer a continência espetaculosa dos sete tempos. Consiste essa continência num destro e elegante manejo executado pela lança, que toma sete posições diferentes, até ser arremessada, afinal, para trás, onde fica com a botana encalhada entre os dedos do jogador que completa o sétimo tempo, fazendo cair o braço, com graça, até descansá-lo sobre a coxa. Três vezes é repetida a cortesia. Acabada a última, deixam os cavaleiros os recontros das lanças de rastro, avançam ainda mais, em direção ao camarim, até a um ponto onde se vê um vulto estranho surgindo do terreno, todo envolto em damasco vermelho e que mais tarde se verá o que é. Isso feito, dividem-se eles em dois grupos, momento em que, levantando os cavalos de galope, terçam as lanças ao meio, pegando-lhes com a mão direita voltada para baixo. O galope é vistoso e, nas passagens que fazem os dois grupos, um junto ao outro, os cavaleiros erguem o braço direito para cima, olhando, cada um, com graça e agrado, o seu competidor.

Segue-se a manobra dos círculos, em rodopio, fazendo os cavaleiros da fileira do centro galopar os seus cavalos na ação da volta ao revés para não voltar a cara aos cavaleiros da fileira que anda por fora. E várias figuras, outras, vão mostrando a destreza dos jogadores e suas alimárias até terminar pela ocupação de pontos opostos na arena, bem separados os grupos pela cor do que vestem.

Há um minuto de descanso: é o momento em que os pajens, portadores de cabeças de papelão pintado, avançam e as vão colocando, espalhadas, sobre o solo. Têm elas um tamanho natural e firmam-se, quando postas no chão, pela base do pescoço. Preparado o recinto para novo jogo, voltam eles a trocar as lanças decontoadas, que trazem, por outras de fina ponta. A sorte é divertida. O cavaleiro sai de arma em riste com o mister de trazer, nela, tantas cabeças quantas for possível. Atenção! Que as músicas cessaram e o número curioso principia.

Avança o primeiro da fila à esquerda. É um verde. Corre, atira a lança, esforça-se, porém, sem nada conseguir. Nem uma cabeça fisgou. E é assim que volta desbaratado e triste sob o formidável apupo das bancadas que assobiam… Agora, um outro, um cor de rosa, que acomete. Bravo! Foi, porém, de raspão… A ponta de aço feriu a primeira cabeça: feriu, mas resvalou. Com as outras dá-se ainda o mesmo e desastrado jogo. Tal qual o seu antecessor, não marca ele um só ponto… E volta descoroçoado. O terceiro, que é um verde, porém, traz duas cabeças. A praça inteira exulta, grita, aplaude. O cor de rosa, a seguir, mais feliz, ainda, enfia quatro! Há delírio no povo. Aplaude-se a valer. Os verdes, no entanto, no fim de certo tempo, ganham a partida por três pontos.

Voltam os pajens, portadores de novas cabeças, agora colocadas em plintos altos, de metro e meio de altura.

Substituem-se as lanças por pistolas. O jogo é simples, basta visar e atirar, que a cabeça, logo, se despenhará. E cabeça por terra, ponto marcado. Dá-se começo à escaramuça. Durante vinte minutos as pistolas espoucam. Os aplausos da massa sublinham os pontos feitos.

Os verdes ainda ganham desta vez. Evoés, gritos, clamores! Minuto de descanso aos cavaleiros. Sempre que estes descansam e os pajens saem a preparar o âmbito da função, as músicas clangoram. Já elas, porém, vibraram. E emudeceram para dar início a outro número do programa. E número de sucesso!

Dois pajens – um da fração verde, outro da contrária – saem, cada qual dos castelos rivais, onde se encantonam os cavaleiros, e caminham em direção ao vulto embuçado, que já vimos colocado bem em face ao camarim do vice-rei. E o desvendam, arrancando os panos de damasco que o envolvem. Surge à luz do sol, então, o busto esplêndido de um homem de pau, trajado à romana, tendo no braço esquerdo um escudo, e no outro um vastíssimo azorrague. Assenta a figura em pivot sobre um robusto pedestal fincado ao solo. O povo logo o reconhece. Rebentam, com os aplausos, gritos das bancadas:

- Estafermo! Estafermo!

Já estão prontos em fila os cavaleiros para dar-se princípio à escaramuça. Sai o primeiro jogador levando, em riste, a lança decontoada. Já deu rédea ao cavalo para que ele corra livremente; já firmou, sob o braço, a arma com que há de ferir o centro do escudo da figura, todo voltado para ele. O povo espera o golpe. Na carreira, a lança fere, em cheio, o broquel. Com o choque rápido, o estafermo, que gira sobre o pino, lança automaticamente no ar o azorrague terrível, que arremete contra cavaleiro e cavalo. Não os atinge, porém. Por isso o povo aplaude. A habilidade do jogador é fugir, como esse fugiu, ao latego, de sorte que nem a montada o receba de leve.

Não são esses, mas, os menos hábeis, aqueles que mais divertem e mais fazem gozar o público, porque basta um ligeiro desvio de lança para que o vergaste venha sobre a montada ou sobre ele, de tal sorte castigando-lhe o descuido ou a imperícia. E tão forte é a vergastada que o homem se encolhe todo sobre a cilha, quasi a cair, e o animal, se a recebe, espinoteia e abala em corrida desenfreada, não raro atirando fora do estribo o próprio cavaleiro.

Parece que dos jogos esse é o que mais interessa e mais deleita o público, tanto que, mal ele termina, depois de muito fazer rir, agora com o triunfo dos cor de rosa, num torneio de agilidade e destreza, são todos unanimemente a reclamar páreo novo, em extra. O programa, porém, está longo demais. O sol já não assistiu as últimas investidas do estafermo; perdendo, portanto, um espetáculo bem divertido. O horizontes arroxeiam. Os postes das argolinhas já estão sendo preparados pelos pajens. Correm-se as argolinhas, cumprindo-se o ritual da boa cavalaria, que manda o jogador, quando vence, entregar à dama do seu afeto a prenda arrancada pela lança. Há, ainda, um número de alcanzias – formas finíssimas de barro, ocas, do tamanho de uma laranja, dentro das quais se põem geralmente, flores, fitas ou papéis recortados de cores várias. A marca é feita atabalhoadamente, apressadamente, que não se quer demorar o último número do programa.

Não há tempo, por isso, para correr, como se contava e devia, o desafio das canas – canas de açúcar que os cavaleiros deviam rebater, cortando-as a espada pelo meio, - nem o número dos pombos, muito semelhante ao das argolinhas.

A noite já vem perto e é necessário precipitar quanto antes o combate final dos mouros e cristãos. O estafermo já voltou ao seu rebuço de damasco, e os postes e cacos de alcanzia foram varridos da arena. Vêm antes de novo as azemolas carregar o que a princípio trouxeram. A praça fica limpa, até de pajens e de cavaleiros. Eis, porém, que de repente, a galope, estes últimos voltam – em dois grupos distintos, divididos: primeiro o partido mouro, que se vai colocar na parte extrema da praça, dando costas ao camarim do vice-rei: depois o partido cristão. Cada um traz a bandeira da sua crença, e, nuas, as espadas de combate. Sempre dos mouros partiu a provocação. Por isso um deles avança e, concitando os seus à peleja, declama:

- Invencíveis guerreiros! Os cristãos vizinhos nos incitam! Juremos pelo Alcorão morrer ou vencer. Por Maomé!

E para os cristãos:

- Em nome do Profeta, rendei-vos ou tereis que morrer!

Resposta dos cristãos:

- Os guerreiros da cruz não se rendem jamais, que a vitória é sempre do Céu! Aceitamos o desafio mouros reprobos! Defendei-vos!

As massas então avançam e a peleja estabelece-se cerrada e vigorosa. Previamente, os mais ágeis e adestrados são sempre escolhidos para o bando cristão, a fim de melhor garantir a vitória do céu.

O combate dura bastante tempo. O tocado de leve pela arma contrária trata logo de cair porque se arrisca, se não cair, a levar do adversário, então, uma pranchada a valer.

Vencem, enfim, os cristãos. Senhores na luta, portanto, ei-los ao centro da praça, brandido as armas no ar, ovantes, gritando com fervor!

- Viva a Santa Madre Igreja!

- Viva Nosso Senhor Jesus Cristo!

Uma girândola de rojões sobe, de novo, aos ares. As músicas atacam compassos finais.

Já Sua Excelência o senhor vice-rei, apressado, pôs o pé no estribo doirado do seu coche e abalou, enquanto à saída do pórtico da entrada, há ambulantes que gritam as suas mercâncias, negros que oferecem cabeças de alcatrão e lanternas para os caminhos. Aglomeram-se veículos de toda sorte e de todos os feitios: coches, paquebotes, carrinhos de arruar, florões, cadeirinhas e liteiras.

A noite já tombou sobre a praça, já envolveu toda a cidade, já acendeu, na altura, as mais lindas estrelas do céu. Noite alta, noite profunda, noite silenciosa, mas sem lua. O povo caminha, dirigindo-se para os lados da Sé, à frouxa luz conduzida pelos negros, recordando as minúcias da folgança, satisfeito das delícias da tarde. A cidade, perto, avulta em massa espessa, surgindo da treva, mostrando embora, de longe em longe, clarões avermelhados que palpitam, que cintilam, luzes que repontam aqui, ali, e acolá, vagamente aclarando betesgas, caminhos, alfurjas e travessas por onde se recorta a linha sinuosa do povo que vem da praça e que se recolhe. São as luzes dos candeeiros de azeite nos oratórios das esquinas. Nunca se deitou tão tarde a cidade.

Oito horas da noite.


(EDMUNDO, Luiz.
O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis)