A CANOA DO DIVINO

-- Brebare-se bra festa do Difino, "seu" Andônio!
Antônio Condeixa já conhecia a escrita: o patrão fantasiado de "Imperador", ia dar uma batida naquelas bibocas. Embora toda gente o considerasse judeu, Miguel Jorge era católico -- e do bom. Casado com brasileira, batizava todos os filhos na igreja e não perdia missa quando havia padre na cidade. Estava tão adaptado aos costumes do lugar, que era agora o organizador da Festa do Divino Espírito Santo. Havia quem atribuísse a iniciativa de Miguel Jorge a interesse subalterno.
-- Regatão não perde vaza!... diziam.
Mas era devoção, ele fizera uma promessa ao Divino Espírito Santo quando o seu caçula fora picado de cobra. O pirralho sarara: ele nunca mais se esqueceu da promessa. Era homem de palavra, apesar de regatão. Também, viera pro Brasil tão gito, que já virara quase brasileiro. Só a fala é que ainda estava um pouco atravessada. Mas com o tempo is acabar falando direito.
Um mês antes da festa, Miguel Jorge, tomando a frente da procissão, com o título decorativo de "Imperador", em companhia de "Juízes", "Mordomos" e devotos do Divino, metia-se dentro de três vastas canoas, todas empavesadas de bandeirolas brancas e encarnadas, -- uma pomba simbólica pintada no centro e outras esculpidas nos mastros cheios de fitas e guirlandas -- e lá começava a correr aqueles mundos de mato e água.
Dois tambores, nas canoas, anunciavam a passagem do cortejo no silêncio verde dos igarapés e paranás, dos furos e rios, dos paranamirins e igapós.
-- Bum... Bum... Quitibum... Bum...
As barraquinhas das margens se abriam, contentes, à passagem das "montarias do Divino", e das pontes de atracação, repletas de homens, mulheres e crianças, que lhes acenavam com bandeiras e gestos de alegria, recebiam eles homenagens e esmolas!
Nos sítios e rocinhas as montarias atracavam, e a mata acordava com o fragoído do fundunço. Eram festas de arromba, que reuniam povo de todas aquelas beiradas de rio.
A barraca de Canuto daquela feita recebeu a visita do "Divino". Juntou gente como beia para apreciar a festa. De todas as barracas das redondezas vieram devotos. Tropa era tanta, que até parecia putirum.
A "Coroa do Divino", que os festeiros conduziam na montaria da frente, dentro de uma bandeja de prata, toda enlaçada de fitas, foi levada prá barraca de Canuto.
Miguel Jorge em pessoa carregava ela. Todos os presentes vinham beijá-la na mão dele. E o regatão, cumprindo à risca o ritual da festa do Divino, pousava-a um instantinho na cabeça de cada pessoa que a beijava. Em seguida, colocou-se a Coroa numa mesa no centro da sala, coberta com a colcha nova que Canuto comprara pra enfeitar a camarinha de Conceição. Quatro velas ficaram ardendo em volta dela, dia e noite.
A barraca de Canuto, apesar de ser casa de pobre, estava com um ar festivo e importante. Sendo a pessoa mais conceituada e graúda das redondezas, ele acolhia com efusão os vizinhos e os conhecidos.
-- Vão entrando. Não tenham cerimônias. Façam de conta que estão em suas casas.
Enquanto os portadores da Coroa descansavam e madornavam no copiar, a sala se agitava num alarido desadorado de festa.
De noite, houve ladainha, tirada pelo próprio Canuto, que engrolava com dignidade eclesiástica um latinório divertido e pitoresco
-- Virgo predicanda...
-- Ora pro nobis!...
-- Virgo Potens...
-- Ora pro nobis!...
-- Estrella Matutina...
-- Ora pro nobis!...
Acabada a ladainha, foi um deus-nos-acuda. A orquestra -- uma rabeca, um cavaquinho e uma flauta -- atacou o seu programa cutuba de polcas e chotes, e a tropa entrou decidida nas danças. Os homens, em geral, mais graciosos e desenvoltos que as mulheres, cujos passos na sala eram pesados e tímidos.
Condeixa e Conceição foram par constante. Enfiavam polca em cima de polca, chegando a levantar poeira. E nem davam mostras de cansaço. Era só tocar a música, eles estavam arrastando os pés. Ele todo perequeté, vaidoso e contente, ela dengosa e assanhada, toda cheia de quindins. As outras moças, mordidas de despeito e inveja, cochichavam pelos cantos, num fuchico danisco.
-- Que grude, Minha Nossa Senhora!
-- Nunca vi rabicho tão indecente.
-- Gente apresentada, soco!
O ronco da orquestra continuava, indiferente, animando os pares e espantando os bichos da mata.
De repente, por causa de uma pisadela que um rapaz deu no pé de uma moça, ia havendo um rolo.
-- Não enxerga, seu pé de mão de pilão!
-- Pé de mão de pilão é sua mãe!
Era uma rixa antiga, entre dois paroaras, que acabaria em conflito, decidindo-se à ponta de faca, se não fosse a disposição de Canuto, que respeitado e temido, botando a cabeça na porta gritou pros contendores:
-- Que diabo de bate-boca é esse? Acabem com essa joça que isto aqui não é casa de Mãe Joana!
Foi água na fervura. Os valentões botaram a viola no saco.
Mal receberam as suas esmolas (novilhas, vitelas, carneiros, galinhas, bacorinhos, ovos, tartarugas, paneiros de farinha, beijus, peixe seco, frutas, um de tudo, menos dinheiro ), os festeiros do Divino deitaram os troços dentro das canoas e levantaram o panete pra outro sítio, -- onde se havia de repetir o mesmo cerimonial, -- quebrando o silêncio matutino dos rios e igarapés com o ronco monótono do tambor, que acordava num alvoroço de alegria todas as barracas das ribanceiras...
Bum-bum... Bum-bum... Bum-bum...
Conceição teve, logo que a Canoa do Divino partiu, dias sucessivos de sonhos e de inquietação. Não estava nada tranqüila. Tivera momentos bons naquela noite animada de fusué. Mas desde que Condeixa partira se lhe fechara o coração... Não atinava bem com o motivo. Mas um não-sei-que-diga lá dentro lhe dizia que alguma coisa estava pra acontecer...
(Depois da romaria fluvial, era a festa, na cidade. As canoas deviam atracar no porto na véspera do dia do Divino Espírito Santo. O programa constava de ladainha, banquete, leilão, danças e missa cantada. Um nunca acabar de festas! As esmolas arrecadadas, tirantes as que iam servir para o banquete da Comissão, seriam arrematadas em leilão, na praça da Matriz, a fim de arranjar uns bagarotes para pagar a missa e o sermão do padre.)
Todo mundo fazia maus juízos sobre a honestidade do regatão:
-- No frigir dos ovos, Miguel Jorge vai fazer um bom arranjo.
-- Ele tira sempre a sua lambugem.
-- Qual! desta vez regatão levou uma bucha danada!
(Mas Miguel Jorge era, por exceção, nessas coisas de devoção, honrado e sincero.)
...Não arredava o pensamento daquilo: Condeixa, a festa, a sua situação... Que ia ser da sua vida? Condeixa gostaria mesmo dela? Homem não gosta de mulher: acostuma... E as tenções dele seriam boas? Teria ele dançado com outras moças nos sítios por onde passara? E, no leilão da Matriz, teria tido coragem de deixar que o outro arrematasse a cuia pitinga que ela ofertara ao santo ? E se ele, na festa, se engraçasse de outra cunhatã? Feição dele era de que gostava dela. Mas... Sabia não! Este mundo dá tantas voltas!
-- Quando é que a gente casa, bichinho?
-- Ora, minha nega, eu ainda ganho tão pouco
-- Que é que tem, bichinho? Eu não faço questão de estadão...
-- Mas eu estou liso, Conceição.
-- E bem. Mas neste estado é que eu não posso ficar. Se papai souber, o que é que vai ser de nós?
-- Agora é impossível... Vamos esperar que "Seu" Miguel aumente o meu ordenado...
E foi se embora, sem atar nem desatar...
-- Erê catu, minha nega, até curi!...
Aquela noite aziaga, no silêncio triste da sua camarinha, escutando o canto agourento do murututu -- Credo! -- foi um drama calado de sonhos, de sobressaltos, de incertezas acabrunhadoras. Rolando na rede sem achar posição, interrogou em vão o destino, e não pregou os olhos.
A primeira cantada do galo veio encontrá-la acordada ainda, de olhos secos, assuntando na vida, sem saber o que fazer. Que é que ia ser da vida dela, minha Nossa Senhora de Nazaré? E quando o pai soubesse de tudo?... Nem gostava de pensar... Pegou no sono, já de manhãzinha, quando o sol botou a cara larga de fora, por cima da cabeleira verde das sumaumeiras, para espiar no igarapé os banhos dos pássaros madrugadores.
 

Peregrino Júnior