O
DIVINO E O PROFANO: A INSERÇÃO DE NOVOS DISCURSOS NA FESTA DO DIVINO
ESPÍRITO SANTO EM BARRA VELHA SC
Juliano Bernardes
Historiador pós graduando em História Social e Ensino de História
julianobernardes@yahoo.com.br
A Bandeira
do Divino
Os devotos do Divino, vão abrir sua morada, pra bandeira do menino,
ser bem-vinda, ser louvada. Deus vos salve esse devoto, pela esmola
em vosso nome, dando água a quem tem sede, dando pão a quem tem
fome. A bandeira acredita, que a semente seja tanta, que esta mesa
farta, que esta casa seja santa. Que o perdão seja sagrado, que a fé
seja infinita, que o homem seja livre, que a justiça sobreviva.
Assim como os três reis magos, que seguiram a estrela guia, a
bandeira
segue em frente, atrás de melhores dias. No estandarte vai escrito,
que ele voltará de novo, e o rei será bendito, ele nascerá do povo.
(Ivan Lins)
Abram-se as portas: o Divino está chegando...
Os fogos e o tambor anunciam, é tempo da festa do Divino. Muitas
portas se abrem, outras se fecham, olhares curiosos ou emocionados.
Este é o cenário que antecede a Festa do Divino Espírito Santo em
Barra Velha. Os foliões, juntamente com os Imperadores, familiares
ou amigos, cumprem o ritual que se repete há muitos anos em Barra
Velha: a visita das bandeiras às famílias. A Festa do Divino ocorre
geralmente cinqüenta dias após a Páscoa. Muitas gerações tiveram a
oportunidade de vivenciá-la. Os mais velhos guardam na memória as
antigas festas e acompanham com grande emoção as festas atuais.
De acordo com Gustavo Cortês1, a Festa do Divino é uma comemoração
européia. Como podemos observar a seguir em uma das explicações
acerca da origem da festa: Foi instituída pela rainha Isabel, casada
com o rei Dom Dinis, o lavrador, na cidade de Alenquer, onde foi
construída uma igreja em homenagem ao Divino Espírito Santo, no
início do século XIV. Conta a lenda que a rainha gostava de
distribuir esmolas para os pobres, especialmente comida. O rei,
sovina, passou a proibir a esposa dessa prática. Certa vez, quando
levava pão aos famintos na rua, ela foi surpreendida de repente pelo
rei, que lhe perguntou o que trazia. Temendo a reação do marido, ela
respondeu que trazia rosas. Ao verificar, espantado, o rei viu
lindas flores. Desse milagre parece ter nascido a tradição de se
distribuir comida para todos os participantes nas comemorações do
Divino. A devoção se espalhou rapidamente em Portugal e se tornou
festa coletiva de
grande interesse popular.
1 CORTÊS, Gustavo Pereira. Dança Brasil!: festas e danças populares.
Belo Horizonte: Editora Leitura, 2000. p.24.
No Brasil, a Festa do Divino foi instituída pelos imigrantes
europeus, espalhando-se por todo o país, com destaque para o
litoral, através dos imigrantes açorianos. Diversas bibliografias
abordam as festividades ao Divino Espírito Santo demonstrando as
peculariedades da festa na localidade abordada2. Acerca da Festa do
Divino em Barra Velha, praticamente não existem obras que retratam a
origem da festa na cidade3. A memória oficial da cidade demonstra
que as
primeiras festas do Divino Espírito Santo foram organizadas pela
família de Joaquim Alves da Silva, considerado o fundador de Barra
Velha, como podemos observar na fala do pesquisador Acácio Gazino
Borba Coelho4: a celebração dos festejos do Divino Espírito Santo
foi trazida ao Brasil pelos açorianos
que vieram efetuar a pesca da baleia, para extração do óleo que
seria usado na iluminação pública da cidade do Rio de Janeiro. Pelos
relatos dos antigos habitantes de Barra Velha que chegaram até
nossos dias, consta que as primeiras festas do Divino Espírito Santo
nesta cidade, foram organizadas pela família de Joaquim Alves da
Silva (Fundador de Barra Velha), isto, mais ou menos 150 anos atrás.
Conta-nos a história que D. Pedro II e a Imperatriz Dona Tereza
Cristina quando em visita à província de Santa Catarina em 1845,
foram convidados por Joaquim Alves da Silva a participarem dos
festejos do Divino Espírito Santo nesta localidade, na antiga Igreja
de Nossa Senhora do Rosário. Na impossibilidade de comparecer, D.
Pedro II teria enviado um casal de nobres de sua comitiva, para
representá-los, nos citados festejos, isto em 1845. Desta deferência
de D. Pedro II resultou que o padroeiro da localidade passou a ser
São Pedro
de Alcântara em honra ao Imperador. Desta data em diante comemora-se
todos os anos a festa do Divino Espírito Santo em Barra Velha,
sempre mantendo-se a tradição e a mesma simbologia de sua origem em
1318. Terminada a festa, as coroas e bandeiras voltam à guarda da
família Borba, o que ocorre há mais de 70 anos5.
Embora a memória oficial de Barra Velha, demonstre a origem da Festa
do Divino através da família de Joaquim Alves da Silva, não existe
nenhuma documentação que comprove esta informação, transmitida pela
oralidade. Com o objetivo de valorizar os verdadeiros guardiões da
memória , conheceremos as antigas festividades do Divino Espírito
Santo em Barra Velha, valorizando a memória dos velhos. Como nos
lembra Ecléa Bosi:
2 ALVES, Joi Cletison (Org). I Congresso Internacional das Festas do
Divino Espírito Santo. Florianópolis: UFSC, 2000.
CASCAES, Franklin Joaquim. Vida e Arte e a Colonização Açoriana.
Florianópolis: UFSC, 1981.
SOARES, Doralécio. Folclore Catarinense. Florianópolis: UFSC, 2002.
3 BOER, Peter. Barra Velha através dos tempos. Universal, 1993.
p.34. Esta obra faz uma pequena citação sobre a Festa do Divino
Espírito Santo de Barra Velha.
4 O Sr. Acácio Borba (in memoriam) foi professor de História em
Barra Velha. Por diversas vezes publicou pesquisas em jornais,
acerca da história da cidade.
5 O
histórico da festa do Divino, elaborado em março de 1983, pelo Sr.
Acácio Borba, encontra-se na paróquia de Barra Velha. a conversa
evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda: repassada
de nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens
caras, pela desaparição de entes amados, é semelhante a uma obra de
arte. Para quem sabe ouvi-la, é desalieanadora, pois contrasta a
riqueza e a potencialidade do homem criador de cultura
com a mísera figura do consumidor atual6.
Conhecer alguns aspectos importantes da festa do Divino Espírito
Santo em Barra Velha na perspectiva de homens e mulheres que
vivenciaram ou lhes transmitiram a história7, é extremamente
relevante. Eles estavam lá, participaram das missas e procissões,
foram Imperadores, dançaram, beberam, conheceram a queimada8, a
concertada9 e os licores, num período que a cerveja ainda era
desconhecida pela pequena população de Barra Velha. Um tempo em que
a comida e a bebida eram gratuitas na Festa do Divino, que aos
poucos foi se transformando. A memória destes velhos é fundamental
para percebermos as transformações
ocorridas na Festa do Divino no decorrer dos tempos, pois como
demonstra Bosi: nelas é possível verificar uma história social bem
desenvolvida: elas já atravessaram um determinado tipo de sociedade,
com características bem marcadas e conhecidas; elas já viveram
quadros de referência familiar e cultural igualmente reconhecíveis:
enfim, sua memória atual pode ser desenhada sobre um pano de fundo
mais definido do que a memória de uma pessoa mais jovem, ou mesmo
adulta, que, de algum modo, ainda está absorvida nas lutas e
contradições de um presente que a solicita muito mais intensamente
do que a uma pessoa de idade10.
Buscando suprir a necessidade de dar a palavra a vozes que foram
silenciadas11 , nos remetemos através da memória a um outro tempo.
Os velhos recordam a profunda emoção de receber as Bandeiras do
Divino12 em casa. Muitas vezes, o chão se cobria de flores para a
passagem das bandeiras.
6 BOSI, Ecléa, op.cit. p.82-83.
7 A Sra. Donília Bernardes Borba (84 anos), Sr. Lourenço Bernardes
(85anos) sua esposa, Sra. Laura Coelho Bernardes (71 anos) e a Sra.
Geysa Moura do Nascimento (66 anos) foram fundamentais para
conhecermos as antigas Festas do Divino Espírito Santo em Barra
Velha.
8 Bebida quente que possui como ingredientes principais o açúcar, a
cachaça e o gengibre.
9 Bebida que pode ser servida quente ou fria. Tem como ingredientes
principais: açúcar, cravo, canela, essência de baunilha, cachaça e
água.
10 BOSI, Ecléa, op.cit. p.60.
11 CHAUÍ, Marilena. Apresentação: os trabalhos da memória. In: BOSI,
Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3 ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994. p.19.
12 Barra Velha possui quatro bandeiras do Divino Espírito Santo.
Duas são utilizadas para visitar as residências nos meses que
antecedem a festa. As outras duas são utilizadas nos dias da festa.
A vermelha representa o Espírito Santo e a azul representa a
Santíssima Trindade.
Após as festividades religiosas, a Festa do Divino passava a ser
vivida de uma outra forma, com danças, comidas, e um intenso consumo
de bebidas alcoólicas, numa estreita relação entre o sagrado13 e o
profano14. Na festa do Divino Espírito Santo, esta profusão entre o
sagrado e o profano é bem visível. Durante as procissões e
celebrações, os fiéis rezam, cantam, pagam promessas, se emocionam
com o tempo sagrado15 . Sobretudo, com o encerramento das
celebrações religiosas, vive-se o lado profano da festa. Como
escreveu Carlos Rodrigues Brandão: Ora, em sua variação de formas e
alternativas o catolicismo parece ser, dentre todas as religiões
mais visíveis do Brasil, aquela que combina o maior número de formas
diferentes de celebrações, podendo fazê-las, inclusive, sucederem-se
umas às outras, do que resulta a própria festa católica. Assim, uma
Festa do Divino Espírito Santo, a folia precatória de antes dos
festejos, a novena, as procissões, a grande missa do domingo e os
folguedos, como os ternos de moçambiques e as cavalhadas. Apesar dos
esforços da Igreja para separar uma parte propriamente religiosa das
outras, folclóricas ou das francamente profanas, para o devoto
popular o sentido da festa não é outra coisa senão a
sucessão cerimonial de todas estas situações, dentro e fora do
âmbito restrito dos ritos da Igreja16.
Nas antigas festas do Divino, após as celebrações religiosas e a
saída do cortejo rumo à Casa do Império17, as pessoas se dirigiam
para um local especialmente preparado para a realização dos bailes e
onde eram servidas comidas e bebidas. Posteriormente, os festejos
foram transferidos para o pátio da Igreja Matriz, que após as
celebrações religiosas, fechava suas portas e a festa continuava nos
arredores. A igreja é considerada para o homem religioso como um
espaço sagrado, assim como os símbolos envoltos nas celebrações
religiosas. Como demonstra Mircea Elíade: para um crente, essa
igreja faz parte de um espaço diferente da rua onde ele se encontra.
A porta que se abre para o interior da igreja significa, de fato,
uma solução de continuidade. O limiar que separa os dois espaços
indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos de ser,
profano e religioso. O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, a
fronteira que distinguem e opõem dois mundos e o lugar paradoxal
onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode efetuar a passagem
do mundo profano para o mundo sagrado18.
13 Algo que é consagrado. Realidade que não pertence ao nosso mundo.
14 Oposto ao sagrado: relativo às coisas mundanas.
15 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões.
São Paulo, SP: Martins Fontes, 1992.
16 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. Campinas, SP:
Papirus, 1989, p.37.
17 Local de onde partem as procissões nos dias da festa.
18 ELIADE, Mircea. op.cit.p.28-29.
A Igreja Católica traz consigo, diversos símbolos que despertam a
experiência individual e transmudam-na em ato espiritual, em
compreensão metafísica do mundo19 . Para um homem não religioso, as
bandeiras do Divino Espírito Santo, não possuem qualquer relação com
o sagrado, enquanto que para um homem religioso, as bandeiras
representam o sagrado. Outro exemplo é a utilização do pão e do
vinho nas missas, que representam para a Igreja Católica o corpo e o
sangue de Jesus Cristo, denominado Eucaristia: fonte e ápice de toda
a vida cristã20 .
Assim escrito no Catecismo da Igreja Católica: na comunhão,
precedida pela oração do Senhor e pela fração do pão, os fiéis
recebem o pão do céu e o cálice da salvação , o Corpo e o Sangue de
Cristo, que se entregou para a vida no mundo . Porque este pão e
este vinho foram, segundo a antiga expressão, eucaristizados ,
chamamos este alimento de Eucaristia, e a ninguém é permitido
participar na Eucaristia senão aquele que, admitindo como
verdadeiros os nossos ensinamentos e tendo sido purificado pelo
Batismo para a remissão dos pecados e para o novo nascimento, levar
uma vida como Cristo ensinou21.
Em 1998, uma polêmica instaurou-se na paróquia e nas capelas de
Barra Velha. Como é de costume da Igreja Católica, após alguns anos
o padre é substituído por outro. O recém chegado padre Fernando
Gonçalves foi o precursor da inserção de um discurso que gerou
grande impacto nas festas da Igreja: a proibição da comercialização
de bebidas alcoólicas. A decisão de proibir a comercialização de
bebidas alcoólicas nas festas católicas em Barra Velha dividiu os
católicos.
Enquanto muitos aderiram às novas determinações, outros resistiram
fortemente. As opiniões acerca da proibição foram as mais diversas.
Alguns logo concordaram e outros se revoltaram em saber que a Igreja
deixou de comercializar bebidas alcoólicas nas festas.
Posteriormente, a decisão de proibir o consumo de bebidas alcoólicas
nas festas religiosas, estendeu-se por toda a diocese de Joinville,
dirigida por dom Orlando Brandes22 e outras dioceses também estão
aderindo à proibição23. Nos últimos anos, a imprensa vem noticiando
a decisão da diocese, como podemos ver a seguir:
Radicalismo que deu certo na Igreja: A Igreja Católica de Joinville,
também preocupada com o consumo de bebidas alcoólicas, decidiu
radicalizar e adotou a lei seca. A
19 Id. Ibid, p.172.
20 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Edição Típica Vaticana. São Paulo,
SP: Edições Loyola, 2000 p.365.
21 Id. Ibid, p.374.
22 Atualmente Dom Orlando Brandes é arcebispo de Londrina, PR e a
diocese de Joinville aguarda a posse de um novo bispo.
23 A diocese de Blumenau votou pela permanência das bebidas
alcoólicas nas festas católicas. polêmica decisão tomada depois de
várias reuniões e discussões com a comunidade, segundo o bispo Dom
Orlando Brandes, começa a mostrar resultados. Não forçamos ninguém a
nada. A própria comunidade aceitou e aprovou a decisão. Eles vão
mais alegres para as festas , afirma Brandes. As igrejas não
comercializam mais álcool nas festas religiosas de abrangência da
Diocese de Joinville. Atualmente 96% das igrejas respeitam a decisão
e de acordo com Dom Orlando, a medida fez aumentar a presença de
fiéis nas festas. Além disso, as pessoas que antes apenas compravam
o churrasco e levavam para casa, agora ficam na igreja para comer,
explica. Para o bispo, a não comercialização de álcool também
afastou aqueles que freqüentavam os eventos apenas para beber e
criar confusão. A decisão de não vender mais bebidas foi implantada
neste
ano. O clima agora é diferente. É mais espiritual e familiar ,
conclui o bispo. No caso das comunidades joinvilenses, é do pároco a
responsabilidade de tirar as bebidas alcoólicas das festas da
paróquia. Onde o padre fica neutro ou é contra, é impossível a
mudança de hábito , diz Brandes. Em 2000, a Igreja Católica há havia
discutido o problema na Campanha da Fraternidade. O tema foi Vida
sim, drogas não 24 ·.
As matérias publicadas no jornal A Notícia25, refletem somente a
opinião da Igreja sobre a proibição26. A diocese de Joinville
utiliza os meios de comunicação, destacadamente o jornal A Notícia,
para explicar as motivações da abolição da comercialização de
bebidas alcoólicas nas festividades católicas. A Igreja utiliza o
jornal como veículo de expressão de suas idéias.
Na visão da Igreja Católica, a proibição da comercialização de
bebidas alcoólicas justifica-se em desenvolver um trabalho de
conscientização das pessoas acerca das bebidas que contém álcool,
através de seu caráter prejudicial. Para uma melhor compreensão e
aceitação das novas determinações, algumas citações bíblicas foram
utilizadas para explicar a proibição. Os padres, diáconos e as
lideranças das comunidades, foram preparados para intervir e
conscientizar sobre a inserção dos novos discursos. Alguns
documentos foram elaborados e distribuídos nas igrejas ou publicados
pela imprensa, para que as pessoas compreendessem a finalidade da
diocese em abolir o álcool das festas. A inserção de novos discursos
visa o disciplinamento27 dos católicos, que participam das
festividades religiosas, sem a ingestão de bebidas alcoólicas. Como
nos mostra Michel Foucault: 24 Radicalismo que deu certo na Igreja.
A Notícia. Disponível em
http://an.uol.com.br/ancidade/2005/mai/30/3pol.htm. Acesso em: 06
jun 2005. 25 Uma funcionária do jornal A Notícia explicou que a
Igreja não paga as publicações. Ela não soube explicar porque o
jornal expressa somente a opinião da Igreja em relação à proibição.
E-mails foram enviados para o editor
responsável das publicações, mas não foram respondidos.
26
Igreja reforça a evangelização. Bebidas devem ser excluídas das
festas paroquiais. A Notícia. Disponível em http://an.uol.com.br/2003/mai/27/0cid.htm.
Acesso em: 16 set 2005. Bebidas alcoólicas e festas de igreja. A
Notícia. Disponível em http://an.uol.com.br/2005/jul/16/0opi.htm.
Acesso em: 16 set 2005.
27
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 20.ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1987. p.119. a disciplina fabrica indivíduos;
ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao
mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é
um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode fiar
em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a
modo de uma economia calculada, mas permanente28.
A Bíblia é um importante mecanismo para difundir a inserção dos
novos discursos. Seu conteúdo, estabelecido como verdade, conduz os
cristãos à moralidade almejada pela Igreja. A Igreja Católica
utilizou a Bíblia para disciplinar os católicos após a proibição. A
doutrina católica prega que a interpretação do livro sagrado pode
ser transformada de acordo com o tempo vivido. Como podemos observar
a seguir: naturalmente, é na Bíblia que a Igreja Católica baseia, em
grande medida, sua vida e seu dogma. Porém, a Bíblia é vista à luz
da Tradição, isto é, da doutrina e dos costumes que foram
transmitidos pela Igreja desde a época dos apóstolos. Evidentemente,
a Tradição não é a transferência mecânica do legado oral deixado
pelos apóstolos, e sim o desenvolvimento constante do potencial que
existe no evangelho. Com a ajuda do Espírito Santo, a Igreja será
capaz de compreender e revelar a mensagem de Deus de maneira cada
vez mais clara. Mas o que quer que se entenda por Tradição , há uma
crença católica comum que diz que apenas a Igreja, e não o crente
como indivíduo, pode definir o que é Tradição29.
Enquanto as antigas festas de Igreja não tinham por finalidade gerar
lucro, as festas atuais tornaram-se altamente lucrativas. Com a
proibição da comercialização de bebidas alcoólicas a queda dos
lucros foi drástica. Novos discursos foram inseridos pela Igreja
para suprir a necessidade de arrecadação. O pagamento do dízimo
passou a ser incentivado nas paróquias e comunidades. Mais uma vez a
Bíblia foi utilizada para explicar aos católicos a importância do
pagamento do dízimo. Os padres, diáconos e lideranças passaram a
organizar missas e celebrações especiais aos dizimistas,
disciplinando os católicos e incentivando-os a pagarem o dízimo
corretamente.
Outras religiões criticam a Igreja Católica pela comercialização de
álcool em suas festas. Estas religiões se mantêm com o dinheiro
arrecadado com o dízimo e defendem que os católicos deveriam fazer o
mesmo. Uma das razões da proibição, segundo documento da diocese de
Joinville é dar um bom exemplo perante as outras religiões.
28 Id. Ibid, p.143.
29 GAARDER, Jostein (Org). O livro das religiões. 3.ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.p.184.
Santa Catarina proibiu a comercialização de bebidas alcoólicas nas
festas escolares30. Esta vigilância em relação às bebidas alcoólicas
é constante em diversos setores da sociedade. Em Barra Velha, nem
todos os católicos ou freqüentadores aceitaram passivamente a
proibição de bebidas alcoólicas nas festas religiosas. Surgiram
inúmeras falas e práticas contrárias às determinações da Igreja.
Embora a Igreja tenha elaborado estratégias disciplinares para a
inserção dos novos discursos, os católicos e freqüentadores das
festas, elaboraram táticas de resistência para que as bebidas
alcoólicas continuassem a ser consumidas. As táticas são assim
denominadas por Michel de Certeau: a ação calculada é determinada
pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe
fornece uma condição de autonomia. A tática não tem lugar senão o do
outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal
como o organiza a lei de uma
força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à
distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação
própria: a tática é movimento dentro do campo de visão do inimigo ,
como dizia von Bullow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem
portanto a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de
totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável.
Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as ocasiões e
delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a
propriedade e prever saídas31.
De Certeau nos mostra que as táticas são as formas de resistência
contra o poder instituído. Aproveitando as falhas do poder para agir
de forma contrária. No caso do que chamamos de inserção de novos
discursos, as táticas se manifestam nas formas encontradas para
contrariar as determinações da Igreja Católica. Em sumo, as táticas
de resistências encontradas para que as bebidas alcoólicas sejam
consumidas nas festas católicas, mesmo sendo proibidas. Na Festa do
Divino em Barra Velha, existiram e ainda existem táticas de
resistência. As bebidas alcoólicas ainda são consumidas na festa,
através de outras formas32.
Vimos que a Igreja Católica formulou estratégias para a elaboração
dos novos discursos. Para disciplinar os católicos, utilizou a
imprensa e passou a discursar contra o álcool nas celebrações. Os
padres e diáconos passaram a conscientizar os fiéis sobre os
aspectos prejudiciais 30 A Lei Estadual, nº 12948 de 11 de maio de
2004, proíbe a venda e consumo de bebidas alcoólicas, de qualquer
graduação, no ambiente físico das escolas públicas e privadas, nos
estabelecimentos de ensino dos cursos fundamental, médio, superior,
técnico e profissionalizante do Estado de Santa Catarina.
31 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 5.ed.
Petrópolis,RJ:Vozes, 1994. p.100.
32 Algumas pessoas levam bebidas alcoólicas de casa, compram no
comércio próximo da Igreja, substituem refrigerante por cerveja na
lata de refrigerante ou compram o churrasco e levam para casa,
consumindo bebidas alcoólicas. do álcool. O dízimo passou a ser
incentivado. Enfim, conhecemos algumas estratégias
disciplinares. Sobre este método de ação, assim escreveu Michel de
Certeau: chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das
relações de forças que se torna possível a partir do momento em que
um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade,
uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula
um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a
base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de
alvo ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o
campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa etc.).
Como na administração de empresas, toda racionalização estratégica
procura em primeiro lugar distinguir de um ambiente um próprio ,
isto é, o lugar do poder e do querer próprios. Gesto cartesiano,
quem sabe: circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado pelos
poderes invisíveis do outro. Gesto da modernidade científica,
política ou militar33.
Primeiramente o padre Fernando Gonçalves e posteriormente a diocese
de Joinville buscaram o disciplinamento dos católicos. Criaram um
conceito de católico ideal, e para isso desenvolveram estratégias.
As estratégias são as formas utilizadas para criar, determinar,
construir ou se apoderar de algo. Nas relações de poder, as manobras
do forte (poder) contra o fraco . As estratégias e as táticas estão
num constante combate. Embora o poder disciplinar das instituições
vigorem, as táticas estarão sempre procurando brechas para
contrariar as normas instituídas e as estratégias determinarão novas
formas de lutar contra as táticas. Atualmente a diocese de Joinville
aguarda a posse de um novo bispo. A Festa do Divino Espírito Santo
ainda ocorre sem a comercialização de bebidas alcoólicas, porém, em
algumas comunidades do município as bebidas alcoólicas estão
novamente sendo comercializadas.
As festas marcam a passagem de um tempo considerado normal , para um
tempo repleto de celebrações e símbolos. Na Festa do Divino Espírito
Santo em Barra Velha, podemos observar como os devotos do Divino
esperam ansiosamente a visita das bandeiras. A visita emociona
muitos devotos que beijam a pombinha que representa o Espírito
Santo. Nas fitas que compõem as bandeiras do Divino, percebemos a fé
e a esperança, graças recebidas ou promessas cumpridas.
Enquanto os foliões cantam, muitos devotos choram, acariciam as
bandeiras, rezam. A oferta, muitas vezes já preparada é entregue aos
foliões. O convite para participar da festa é realizado, e as
bandeiras seguem. Nos dias da Festa do Divino, ocorre uma maior
movimentação de pessoas na cidade. Muitos ex-moradores retornam. O
comércio lucra com a festa. No sábado à noite as 33 CERTEAU, Michel
de.op.cit.p.99. bandeiras são levadas em procissão para a Igreja. E
lá é realizada a missa festiva. Após a missa, o cortejo segue para a
Casa do Império, com uma parada na lagoa da cidade para uma
belíssima
queima de fogos. As procissões e missas seguem no domingo e
segunda-feira. O auge das celebrações ocorre no domingo, com a
coroação dos Imperadores e o anúncio ou sorteio dos novos
Imperadores da festa.
A Festa do Divino Espírito Santo de Barra Velha, era considerada a
mais antiga e importante festa do município. Em 1997, foi criada a
Festa Nacional do Pirão. Assim como as festas de outubro no Estado
de Santa Catarina, a Festa do Pirão visa a incrementação do turismo
durante o feriado de sete de setembro. A proibição da
comercialização de bebidas alcoólicas nas festas da Igreja tornou a
Festa do Divino uma festa secundária no calendário festivo da
cidade. A
Festa Nacional do Pirão, atualmente é anunciada como a festa mais
importante do município de Barra Velha.
A inserção de novos discursos na Festa do Divino Espírito Santo em
Barra Velha, diocese de Joinville e em outras dioceses que também
aderiram à proibição, foi e deverá ser tema de inúmeras discussões,
sobretudo pela polêmica instaurada quando este assunto é abordado.
Por mais que a Igreja queira separar o sagrado do profano a profusão
entre os dois é intensa e qualquer discurso de transformação gera
grande polêmica.
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