...do meu
bodo da saudade.
(Heldo Tiófilo de Braga)
...É no Domingo de
Pentecostes (1.º Bodo) e no da Trindade (2.º)
Bodo) que os impérios "do monte" (das freguesias
rurais) realizam os bodos.
Por isso toda a
gente reserva esses dias para visitar todas as
freguesias, dando uma volta completa à ilha.
É o que
se chama "correr os Bodos"...
1 - ...é que a
ilha estendeu a toalha de linho branco da nossa tradição
para o bodo da nossa ternura.
Deixem-me passar pelos
caminhos filigranados de hortências despontadas nas
húmidas manhãs primaveris e em que passam,
pachorrentamente, os carros com as sebes embandeiradas
de verdura e derramando na ilha o perfume da. faia da
terra, com arcos ornamentados com flores de papel e que
se erguem a começar da. canga dos bois luzidios com
campaínhas pendentes dos fortes pescoços.
E os caminhos enchem-se
do melodioso cantar do "chiar" dos eixos dos
carros como nota alegre que se transmite a toda a ilha
num natural anunciar de que trazern no seu regresso as
pipas com o "vinho de cheiro" que há-de ser
servido no bodo da nossa. ternura.
2 - ...é que a ilha já
cheira ao pão fresco da nossa fartura.
Quero bater à porta das
casas das freguesias da ilha e que já receberam, uma
semana antes, a quantidade de trigo equivalente ao
número de pães que serão cozidos e cujo formato tern o
costume da tradição, alongado e a terminar na parte mais
estreita por um arremedo de bola, a que se dá o nome de
"pão de cabeça"
Quero vê-lo cozido nas
antevésperas dos domingos de bodo e transportado para a
dispensa dos impérios nos sábados.
Porque foram as mulheres da
ilha que o amassaram, Ihe deram forma e o cozeram na
ternura do fogo da tradição.
Porque são os homens das casas
da ilha, com cada pão enfeitado por uma rosa, que os
transportam em açafates para o império da freguesia.
No ar estoira um foguete de
alegria.
É que a ilha já cheira ao pão
fresco da nossa fartura.
3 - ...e a ilha de verde em
entardecer de rubro tornou-se "terreiro", imenso com
"carros de toldo" da nossa alegria.
Quero ir a esse terreiro,
"ilha". frente a um império "saudade" ver os "carros
de toldo" da nossa alegria com a "sebe" do
bodo da nossa fartura, feita de vimes descascados, a
formar um toldo "com a colcha branca do tear da nossa
tradição" amarrada por laços de fita da nossa temura.
Quero ver os carros "arrumados"
em alas paralelas deixando entre si o caminho, mais ou
menos largo, para o qual fica voltada a trazeira do
"caro de toldo".
É por esse caminho que quero
passar como forasteiro, quero ir como devoto ao
Império do Divino, quero circular como os rapazes
cantando à viola de "seis parcelas".
E sobre o lençol de linho
bordado que cobre o colchão do leito dos carros, quero
ver as mulheres e as filhas dos lavradores sentadas,
"'encruzadas". assistindo 'a distribuição do bodo com
ternura de ilha.
Quero oferecer "confeites de
ternura" e dirigir "galanteios de saudade" à
formosura das raparigas para que me brindem com um
sorriso de "ilha" e fatias de massa sovada de "bodo"
regadas pela frescura de um rubro "vinho de cheiro".
E da volta da ilha, já rubra
pelo sol poente, por ter "corrido" os bodos da tradição,
quero trazer no braço a rosquilha de um bravo e
deixar, cuidadosamente repousado, o "alfenim da
saudade" no teu regaço de "ilha".
..."Nos impérios, às
festividades citadas juntam-se- outras, corno os
arraiais e iluminações nas ruas, e mais modernamente, os
"bodos de leite" comuns a muitas festividades
religiosas, como as de Santo António, e as "touradas à
corda" que são remate certo de todas as festas, quer
religiosas, quer profanas..."
4 - ...mais moço do que os
"bodos" do povoamento, quero deixar rasgar a viola da
terra no "bodo de leite" da tua frescura de ilha.
Deixa-me cadenciar o passo
emigrado num "pezinho" feito do romantismo do
sussurrar das folhas das tuas matas ou do marulhar do
teu mar contra as penadias da tua costa de "ilha", ao
gemido de uma. "rabeca" em melodia e dos compassos das
violas da terra, e sentir em ritmo a poesia da cantoria.
Quero ir ao "bodo de leite" da
tua canícula e ver as "vacas leiteiras" dos teus
lavradores serem "ordenhadas" frente ao Império
do Divino e as moçoilas da tua "graça" distribuírem
fatias de massa sovada com o leite morno da "ordenha" do
teu "bodo da tradição".
Quero ouvir o estridente
contrabaixo de uma filarmónica dos homens de mãos
de "sacho" e dedos de "ordenhar" em alegre
"modinha" do arraial da tua fartura.
Deixa-me sentir "ilha" na
oferta de urn "pastor" de camisola branca, chapéu
preto ou barreta de lã na cabeça, ou pelo sorriso de
urna "moçoila" de lenço, avental do tear e
galochas das tuas madeiras perfumadas.
No ar, frente ao Império do
Divino, deixa ficar o "estoiro" do foguete da
minha alegria de continuar a ser "ilha" no burburinho
contagiante do teu "bodo de leite".
Mais moço do que os "bodos" do
povoamento, quero deixar rasgar a viola da terra no
"bodo de leite" da tua frescura. de ilha.
Depois, deixa-me "emigrar"
pelas cidades do "longe ficar" e sentir-me novamente
"ilha" pelas ruas dos "teares" e sem "estoiro" de
foguete, mas com o mesmo sorriso de "moçoila" e a oferta
do teu "pastor" fazer do teu "bodo de leite" o meu
"bodo da saudade".
New Bedford, Massachusetts, junho de 1993 |