Comédias de Martins Pena trazem generosas e diversificadas inspirações musicais, rompendo a distância entre erudito e popular

Luiz Costa-Lima Neto

 

·         As pesquisas sobre as histórias do teatro e da música não têm registrado suficientemente a incrível contribuição de Martins Pena (1815-1848) na articulação entre esses dois campos. Em suas 20 comédias, escritas entre 1833 e 1847, a musicalidade é evidente. A lista é extensa, reunindo menções no texto, utilização em cena como recursos musicais e indicações sonoras.

São muitas as músicas vocais, como modinhas, loas da folia de reis, modas regionais, acalantos, árias de ópera e responsórios. Há danças as mais diversas,de tiranas a fados, marchas a polcas, batuques, galopes, cachucha, curitiba. O autor cita instrumentos piano, machete, viola, corneta, pandeiro, fagote, flauta, sanfona, realejo –, compositores e intérpretescomo Malibran, Bassini, Bellini, Bériot, Berlioz, Paganini, Saint-Saëns e um certo “Charlatinini” (nome fictício). E ainda indica fontes sonoras não convencionais, como sinos, pratos, caquinhos, flatos, louça quebrando, bofetadas, chicotadas e o pipocar de fogos de artifício.

Parece improvável que alguma companhia teatral da época tivesse condições financeiras de levar ao palco tantas sonoridades, mas, em algumas ocasiões, isso ocorreu. Em 5 de setembro de 1840, o Jornal do Commercio registrou um relato sobre a performance do segundo quadro de “A família e a festa da roça” (1837). Não foi sem surpresa que o comentarista viu o palco do principal teatro da Corte abrigar a Festa do Espírito Santo, com seus foliões e músicas conduzidas pelos barbeiros. Além de fazer sangrias medicinais, os barbeiros negros tocavam danças europeias (valsas, quadrilhas e contradanças francesas) e afro-brasileiras, como o lundu, considerado lascivo pelos observadores da época. Essas músicas, tocadas em instrumentos de sopro, cordas e percussão, animavam as procissões da Corte e as festas de irmandades católicas, como as de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e as do Divino Espírito Santo – sempre sob vigilância da polícia. Para escaparem ao controle das autoridades e sobreviverem financeiramente, os artistas e as irmandades criaram estratégias de resistência. Parte da receita obtida com a venda de bilhetes das comédias de Martins Pena era revertida em benefício das irmandades, ajudando seus membros a obter a liberdade de irmãos escravizados e suas famílias. Em troca, irmandades negras, como a de Nossa Senhora da Lampadosa – à qual pertencia o poeta e tipógrafo mulato Paula Brito (1809-1861), editor das comédias de Martins Pena –, realizavam missas cantadas e festas em benefício do teatro.

Na mesma comédia, Martins Pena se utiliza do recurso do teatro dentro do teatro e faz a plateia ver a si mesma sob o palco, representada por personagens da Corte que assistem, comentam, criticam preconceituosamente ou se surpreendem com o cortejo da folia na roça. Ele cria um espaço ambíguo em que, de um lado, os citadinos discriminavam a figura do roceiro e, de outro, projetavam na mesma figura seus anseios nacionalistas, revestindo esse personagem do protótipo de “brasileiro”, em oposição ao estrangeiro europeu e à cultura da metrópole.

Se em “A família e a festa da roça” a música foi trazida das festas das ruas e da “roça” para o teatro, em outras comédias o percurso foi o inverso. A modinha (anônima) “Astuciosos os homens são” – incluída na comédia “O cigano” (1845) – exemplifica como a população escutava as árias de ópera e as modificava, adaptando-as a seus próprios interesses. Como revela a partitura para canto e piano, essa modinha apresenta melodia semelhante a uma ária, mas o ritmo repetitivo do acompanhamento no piano invoca uma dança popular. De maneira curiosa, a mesma melodia foi republicada no ano de 1860, na Inglaterra, em livro de James Wetherell. Entre os anos de 1843 e 1857, o autor inglês a teria escutado em Salvador. Aparentemente, a canção havia completado o percurso teatro-rua iniciado no Rio de Janeiro e, em vez de acompanhada pelo piano – instrumento-símbolo da elite afrancesada da Corte imperial –, ganhou o violão como base para o canto: “Astuciosos os homens são, enganadores por condição...”.

A comédia “Quem casa, quer casa” (1845) desfia mais ironias sobre os imitadores da música erudita europeia. O personagem Eduardo, que mora de favor na casa dos sogros, passa os dias tocando febrilmente sua rabeca e inferniza os moradores da casa. A música que ele tenta tocar é o “Capricho para violino e piano, Le Trêmolo, do belga Charles Auguste de Bériot (1802-1870). Ao que tudo indica, Pena teria escutado essa música no Teatro São Pedro de Alcântara, em 25 de agosto de 1845, durante recital do violinista italiano Agostinho Robbio. Este se dizia discípulo do virtuoso Niccolò Paganini (1782-1840), sem jamais o ter sido. A comédia ironiza o culto à originalidade romântica ao se referir à suposta capacidade de um violinista imitar em seu instrumento o gorjeio dos pássaros e o zurro dos burros, entre outras façanhas exóticas.

A ária de ópera e o lundu de barbeiros negros. Os sinos da igreja e a modinha. O violino e os sons da natureza tropical. As músicas das comédias e folhetins de Martins Pena aproximavam mundos artísticos e sociais distantes, das Américas, da África e da Europa. Enquanto milhares de exemplares de suas comédias eram vendidos nas ruas da Corte, Martins Pena era visto com certo desdém pela elite letrada “séria”, chegando a ser censurado por instituições ligadas à monarquia. As gargalhadas que provocava nos teatros escancaravam tensões da sociedade escravocrata e patriarcal, revelando as ambiguidades de um Brasil trágico e cômico. Mas, sobretudo, musical.

Luiz Costa-Lima Neto é professor de música na Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena e cursa o doutorado em Musicologia na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

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