Tradição e modernidade

  

O culto do Espírito Santo evoluiu no nosso país seguindo os declives impostos pelos acontecimentos históricos e pelas circunstâncias religiosas, políticas e ideológicas. A sua introdução ficou-se a dever, como já vimos, a conjunção das idéias exegéticas dos joaquimitas com a crise grave do cristianismo e o sentimento, emergente no século XIII, de que estava iminente o começo de uma nova era marcada pelo advento do Espírito Santo.

Terá sido por certo a princesa Isabel de Aragão a principal intermediária na introdução do culto, formada como fora por grandes mestres espirituais imbuídos de um pensamento providencialista e da noção da importância, tão marcada pelos Judeus, dos eventos históricos como sinais hierofanicos e fruto de intervenções divinas nos assuntos humanos. Graças ao templarismo vigente no reino de Portugal, do qual o seu esposo foi um dos mais altos expoentes e denodado defensor, não era só até conveniente e desejável, na perspectiva política gibelina de D. Dinis, que tal culto se afirmasse no reino e se imprimisse no sentimento colectivo da nação. O projecto áureo (como lhe chamou António Quadros) do monarca lusitano brotava da firme, ainda que oculta, crença dos Templários na conjunção futura das três religiões abraâmicas e na unificação religiosa do Mundo como preparação para o triunfo na Terra do "Sétimo Dia", verdadeira Idade do Ouro marcada pela espiritualidade, pela fraternidade, pela santidade.

Ao projecto dionisíaco convinha. um culto análogo, nos pressupostos escatológicos e na obra de preparação da futura Idade, aos que haviam assumido os Templários, agora transformados, no reino de Portugal, graqas a D. Dinis, em cavaleiros de Cristo. A implantação do culto tomou renovado impulso justamente com a dinastia de Avis, iniciada numa aura providencialista a que foi sensível o cronista Fernão Lopes, que fala na sua Crónica de D. João das "diferenças dos tempos", designando por “Sétima Idade” que durará até ao fim dos séculos: Da septima Hidade Que See Começou no Tempo do Meestre, na quall se lebanton outro mundo e noua geeraçom de gentes, Idade que durará ataa a fim dos segres [até ao fim dos séculos] ou quamto Deos quizer que as todas criou” (capitulo LXII). São também testemunho indirecto as profecias e os sonhos ou visões de santos homens relacionados com a subida ao trono do mestre de Avis.

De resto, todo o imenso projecto henriquino, logo iniciado, de navegação e demanda do reino do Preste João, almejando abarcar o Mundo inteiro num mesmo amplexo de descoberta, de cristianização, de unificação imperial do Mundo, atesta a continuidade do propósito dionisíaco e a prevalência espiritual da idéia do advento iminente da Idade do Espírito Santo. Só uma inabalável fé no destino providencial de um povo, por si só tão pouco apto, pelas dimensões, pela população e pelos recursos, a dar corpo a um tamanho projecto, poderá explicar a determinação indomável, a loucura temerária e o heroísmo inaudito das Descobertas, sobretudo nos seus princípios, em que os mais pusilânimes não podiam antever senão desastres, perdições de toda a sorte.   É que o projecto era essencialmente espiritual, místico e profético, e mostrava-se por isso carregado de uma energia só análoga, na sua dimensão colossal, à que animara as Cruzadas. Era a força invencível da cavalaria espiritual aliada a dádiva sem limites do espírito franciscano, comungando ambas na esperança da iminente vinda do Paracleto.

Pensa-se, como escreveu José Luís Conceição Silva no seu livro Os Painais do Museu das janelas Verdes (Lisboa, 1981), que o destino trágico do rei D. Afonso   marca a fronteira entre dois universos mentais opostos que no seu tempo se confrontavam com um rigor impiedoso, o da cavalaria espiritual do fim da Idade Média, que agonizava, e o da época moderna, que despontava, toda voltada, cada vez mais abertamente, para a antítese da espiritualidade quer dos monges-guerreiros – homens da De- manda, da Fidelidade, da Honra e Cavaleiros da Luz –, quer dos poverelli franciscanos, casados com a “irmã pobreza”, todos votados ao amor de Cristo e do próximo, a pregação, ao repudio das riquezas e das ambições do Mundo, ao exemplo praticante da santidade. A nova era e a era antiga confrontavam-se em França, onde Luis XI destruía, pela intriga, pela duplicidade, pela traição, pelo assassínio, o poderoso ducado da Borgonha, ao qual a corte portuguesa estava tão intimamente ligada por laços familiares e ideológicos.

O encontro de Afonso V com Carlos, o Temerário, mestre da Ordem do Tosão de Ouro e seu parente, pouco antes do desastre de Nancy, e talvez um dos momentos mais trágicos e pungentes da história secreta e profunda do Ocidente, para o qual Conceição Silva chamou as nossas atenções. Jean-Philippe Lccat define admiravelmente no seu livro Le siècle de la Toison d´Or (O século do Tosão de Ouro), Paris, 1986, a transição agónica de uma para outra idade:

Um mundo mais vasto e agora percorrido por movimentos mais intensos de trocas, animado por novas técnicas de domínio do espaço e do tempo, aberto as cobiças e as ambições de homens mais empreendedores e mais violentos: financeiros, condottieri, reformadores armados de tipografias e prensas, conquistadores. Mas fará este mundo sentido ainda? Emile Male anota que: «Os últimos anos do século XV e os primeiros anos do século XVI indicam um dos momentos da Historia nos quais o Apocalipse se apoderou mais fortemente da imaginação dos homens.» 0 sentimento de um aniquilamento próximo e do terrível Juízo apoderam-se de muitas almas. O século tornou-se simultaneamente conquistador e pessimista. (...) Os infernos de Jerónimo Bosch incendeiam o horizonte. 0 anjo na borda do tumulo parece anunciar o fim de todas as esperanças. Todavia, a luz de estrelas mortas orienta a proa das brancas caravelas para um novo Ocidente. Nos seus sulcos lentamente se apazigua o grande levantamento das águas que foi o século do Tosão de Ouro. Que desaparece com os seus mercadores aventureiros e os seus cavaleiros errantes, com os seus duques de ferro e os seus reis loucos, os seus malditos e os seus santos, os seus demónios de sombra e os seus mestres de luz, os seus terrores e os seus deslumbramentos. Formou ainda Erasmo e Gerard David, Copérnico e Duirer. Mas os adolescentes impacientes – que tem a idade de Lutero, de Rafael, de Magalhães – vão abandoná-lo ao esquecimento.

Já quase não se sente que são os seus filhos. Acrescentemos que é no reinado de D. Afonso V que se encomenda e executa o politípico de Nuno Gonçalves, designado por Jaime Cortesão da investidura de Portugal no Espírito Santo. Os tempos mudavam. A mudança iniciara-se muito antes, como é evidente, quando os grandes burgos haviam começado a suscitar o aparecimento da burguesia, saída dos artesãos, dos mesteirais, dos comerciantes, dos agiotas, os quais, primeiramente ao serviço dos senhores e dos monarcas, em seguida prestando serviços a troco de pagamento (o salário da liberdade, ganha sobre os vínculos medievais de servidão e vassalagem), tinham entrado a enriquecer e a tomar o lugar da nobreza, que alias procurariam imitar.

Os habitantes das cidades tomavam consciência da sua solidariedade face aos servos da terra, que eram gentes dos senhores. Constituíam cada vez mais, perante o que restava ainda da feudalidade, um povo livre. É o movimento comunal, que cresce um pouco por toda a parte na Europa, desde as cidades de Itália, onde Francisco (de Assis), filho de comerciante, desposa as idéias da sua classe burguesa antes de se opor ao espírito que a anima, até Paris, onde os burgueses se tornam os donos da cidade e do Palácio, anota Jean-Philippe Lecat no livro Le Siecle de la Toison d´Or atrás citado.

A noção de serviço devido transformava-se nação de custo, de preço – em moeda – do valor do trabalho e do produto do trabalho ou da mercadoria; o dinheiro tomava uma importância que nunca mais deixou de crescer. O gosto do luxo, da ostentação, acrescido da vanglória arrogante das grandes fortunas e do poder prático, económico e político alcançado por meio delas, veio ocupar o lugar predominante nos espíritos, relegando para planos cada vez mais secundários, irrelevantes e menosprezados os valores éticos, estéticos e metafísicos ligados a fé, a espiritualidade, que se interroga quanto ao sentido mais fundo das coisas, da vida e da morte, do destino do homem na Terra.

Novas filosofias, pragmáticas, agnósticas, fechadas mais e mais a transcendência, iriam hipertrofiar as funções racionalizadoras e a importância das aplicações cientificas e técnicas do saber experimental, descurando a meditação da presença a si da consciência e a fenomenologia da emergência no ser da consciência que se conhece corno tal, ao mesmo tempo que repeliam durante longo tempo para as “trevas exteriores”  a função transracional daquilo a que os psicólogos chamam hoje o Inconsciente profundo.

Esta tendência conheceu, obviamente, inúmeros retornos, desvios, adiamentos e até mesmo refutações, mas foi a que dominou predominantemente desde então aquilo a que se costuma chamar "o sentido da Historia". A evolução geral das idéias, solicitada pela ascensão das grandes fortunas, pela centralização do poder político, pelo desenvolvimento da banca, pela decadência lenta da Igreja e da religião, pelas guerras de motivação económica, pela hipocrisia crescente das justificações ideológicas de actos contrários ao bem comum e a moral, pela subversão das normas tradicionais da ética, da arte de pensar da filosofia e da estética, deparou em Portugal, por algum tempo, com a resistência das classes dirigentes (nobreza, intelligentsia, clero, fiéis, ainda no primeiro quartel do século XVI, a vários dos altos ideais da cavalaria espiritual; e fiéis não apenas por resistência conservadora às idéias evolucionarias vindas da Europa, mas porque essa fidelidade servia de modo insubstituível e exemplar os desígnios de expansão planetária, de evangelização dos povos, de preparação do Império prometido da Idade Paracletica, que haveria de ser português: Império e nova Idade não da mera abundância dos bens materiais, mas da superabundância dos dons do coração e do espírito. Tal, frente à Europa renascentista, o “atraso” de Portugal.