A TOURADA

 

         A escolha do recinto para uma tourada à corda, deve obedecer a determinadas condições em que ninguém pensa afinal, porquanto o que a cada freguesia ou lugar interessa sobretudo é poder realizar o divertimento, esteja bem ou mal enquadrado no dispositivo da povoação. Contudo, há um sem número de requisitos que são, por assim dizer, essenciais, a saber:

 

         a) Dispor de um “terreiro “ ou largo, onde as sortes de guarda-sol e outras habilidades dos “toureadores “ possam exibir-se com mais segurança e vantagem;

         b) Contar, ao longo da estrada, com balcões facilmente acessíveis e paredes relativamente baixas que possam fornecer adequados refúgios;

         c) Haver, transversalmente à estrada, algumas “canadas “ que dêem vasão ao povo, nas correrias habituais;

         d) Dispor de um pátio apropriado para a construção do touril onde, dos terrenos à volta, as manobras da “embolação “ possam ser apreciadas e dando boa saída, isto é, apresentando à frente um troço grande de estrada pela qual a rez possa correr livremente no primeiro arranco, a um e outro lado;

         e) Ficar situado numa estrada de pouca circulação no tráfego normal, de maneira a não sofrer constantes congelamentos de trânsito que dificultem o regular andamento da diversão;

         f) Dispor de balcões, varandas, palanques e outros locais apropriados à instalação de assistentes, dando assim maior animação ao arraial.

         Isto no que diz respeito à tourada tradicional, porque se tratarmos da mais recente modalidade - as touradas à beira-mar - apenas há a exigir um amplo areal ou varadouro e cais anexo, com pedras e rochas onde possam improvisar-se os palanques para as mulheres e encontrar refúgio para os homens.

 

         Num cenário que pode variar até ao infinito, a tourada à corda consegue contudo enquadrar-se à maravilha, desde que disponha de concorrência e dos “anexos “ que lhe são peculiares: as “tascas “ de vinhos e petiscos, os vendedores ambulantes de favas e milhos torrados, amendoim, pevides, tremoço curtido, e mais modernamente chocolates, bombons, “drops “ e “ice-cream “ com os pregões estridentes que a cada qual competem, atroando os ouvidos à compita com os foguetes e foguetões que a alegria exige se atiram para o ar de vez em quando, à margem dos que a lei determina para assinalar a embolação e a saída e recolha de cada touro.

A corda, com cerca de 23 braças de dez palmos e uma polegada de grossura, que há-de amarrar o touro, conserva-se enrolada no chão, frente à porta. A ponta, que tem uma arça, passa no olhal existente na parte superior da porta. Com essa arça armam os pastores o laço que passam depois à volta do cachaço da rez, amarrado de forma a evitar que lhe aperte o pescoço quando a corda esticar. Depois de preso à corda, alivia-se o laço que corre na roldana, fecha-se o alçapão e tira-se a tranca, ficando o touro pronto a sair. É a altura de atirar o foguete de “três respostas “ que dá o sinal de “prevenção “.

         A corda que fica enrolada frente ao caixão é conduzida para fora do touril e estendida ao longo da estrada, para o lado onde querem que o animal se dirija primeiro. Na extremidade onde há um nó (“bolsa “), pegam quatro pastores e a cerca de metade da corda mais um ou dois que são os que dirigem o movimento e de cuja manobra depende em grande parte o sucesso da corrida.

         Tudo a postos, atira-se o morteiro (“bombão “) que dá o sinal de saída, abre-  -se a porta do caixão e o toiro sai para a estrada.

         Uma das maneiras de provocar debandadas na multidão, que ocasionam com frequência trambolhões e outras peripécias hilariantes, é fazer a “corda falsa “, isto é, manter a corda enrolada no chão, entre os que a manejam a meio e os que a seguram na extremidade, de maneira tal que, na ocasião em que o touro dê uma arremetida maior, tenha corda suficiente para poder alcançar os que o desafiam, confiantes em que a corda actuará, limitando-lhe os arranques.

         É com a corda, ora retezando-a ora alargando-a, que conseguem prender a atenção da rez para determinado palanque julgado acessível ao salto ou pouco resistente às cornadas, a fim de provocarem sustos nos ocupantes e consequentes risadas na assistência. É cena frequente a arremetida contra as “tascas “, barracas de comes-e-bebes improvisadas, que se armam em pátios e cuja cancela de acesso costuma ser reforçada para efeitos de segurança, mas que, muitas vezes, é levada de vencida pelas marradas do touro que penetra no recinto, causando um alvoroço e estabelecendo entre vendeiros e fregueses uma confusão fácil de calcular, para não falarmos nos prejuízos resultantes do destroço no material e no trem de louça…

         Para o toureiro não há regras, pois cada qual brinca com o touro conforme lhe apetece, desafiando-o com o chapéu, com a jaqueta, com um pano, com um ramo de faia ou um espigo de cana, consoante o que se consegue arranjar para o efeito. Mas para tudo é preciso prática e saber, e é entre os inexperientes e os incautos que há mais vítimas, pois não é só do touro que têm de desviar-se, mas também da corda, que ao esticar pode atirá-los “de cambrelas “, e do povo que foge e na desordenada corrida atropela quem encontre pela frente.

         A “arte “ portanto resume-se na habilidade de provocar a arremetida do bicho e de se escapar depois furtando-lhe a volta, saltando para um muro ou até… enfiando-se por uma janela dentro, se não houver outro recurso mais fácil, pouco importando que ela esteja ocupada e da inesperada intromissão resultem incómodos ou mesmo contusões. Para a fuga todo o caminho é livre e todas as portas se abrem de boa mente para abrigar os fugitivos.

         Contudo, também aparecem toureadores de uma modalidade sui generis, executando os muito apreciados “passes de guarda-sol “. Para a execução destes, e como o nome o indica, “el trapo “ é substituído por um guarda-sol. Quando a posição do touro e da corda são favoráveis à sorte, o artista aproxima-se do touro e abre--lhe na frente o pano preto, provocando a arremetida. Na ocasião precisa em que a rez atira a cornada, o guarda-sol levanta-se e o toureiro  escapa-se furtando-    -lhe a volta.

         Há quem consiga uma série de passes sucessivos, mas a maioria das vezes a sorte resume-se a um só passe.

         São muito raras as pegas, primeiro porque, no geral, os touros escolhidos para a corda são animais possantes, “de respeito “ e muito sabidos, tornando-se por isso perigosos, e segundo, porque tal é considerado como um acto de desrespeito para com o criador e quando acontece a rez ser fraca e mansa, os pastores fazem-na recolher mais que depressa para não haver lugar a tentações de tal natureza.

         O “boneco “ é outro divertimento usado nas touradas à corda. Um fato velho, amarrado nas mangas e nas perneiras e cheio de palha, basta para preparar o     “vulto “ do “boneco “. Uma rodilha de panos e uma máscara formam a cabeça, coroada depois com um velho “àbeiro “, de feltro ou de palha. Amarrado por debaixo dos braços com uma corda, passa-se cada ponta dela a uma varanda ou latada, de maneira que o “boneco “ fique a meio da estrada e possa suspender-se a altura conveniente para não impedir o trânsito. Quando o touro vem a passar desce-se o “boneco “ provocando a investida do touro, e quando este vai a dar a marrada retezam a corda e o boneco sobe. A cena repete-se tantas vezes quantas possível, provocando a hilaridade geral, até que se desfaça sob a acção das hastes do cornúpeto.

         Nos intervalos, isto é, no tempo que medeia entre o recolher de um touro e a saída do seguinte, os que se tinham refugiado pelos muros e balcões descem ao caminho e este fica repleto de gente, tal como num arraial comum a todas as festas populares. Os velhos reunem-se em grupos, trocando impressões sobre as cenas mais sensacionais presenciadas, enquanto os rapazes, frente às janelas e varandas onde as moças se alcandoram, conversam “à boca pequena “ com as “esposadas “ espequeados nos bordões de conteiras amarelas, ou iniciam, com olhares intencionais e frases de “derrete “, o namoro que há-de prolongar-se em subsequentes arraiais ou extinguir-se como as rosas de Malherbe, trocado por outro de mais firme propósito e maior poder de sedução.

         Como a tarde vai quente, e a poeira, de mistura com as emoções, provoca securas de boca e esbraseamentos próprios das correrias em plena estrada, no salve- -se-quem-puder das fugas desordenadas, frente às investidas da rez, são também estas as ocasiões asadas para uma visita às “tascas “, dessedentando-se com o “vinho de cheiro “ que os petiscos tornam cada vez mais apetecível.

 

  

João Ilhéu, “ A Tourada”,  in Ilha Terceira Notas - Etnográficas.Angra do Heroísmo,

Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1979, pp. 362 - 332