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Ao final da grande diáspora (1748-1756), um contingente
humano significativo, cerca de seis mil açorianos,
estava assentado ao longo do litoral catarinense. Uma
história social cujo legado venceu o tempo, perpassou
gerações e conferiu à população catarinense,
especialmente, a de Florianópolis, na Ilha de Santa
Catarina, a afirmação de uma identidade cultural própria
visível sob diversos matizes e formas nas artes
plásticas, na música e na literatura.
Embora seja expressiva a produção pictórica e musical
inspirada em torno do universo açoriano, é a literatura
que cumpre o papel de registrar a nossa memória
coletiva, de manter a cultura ancestral, impedindo que
se percam as nossas referências culturais e o
conhecimento de nossas raízes. O seu papel, no entanto,
não se limita ao registro ou à manutenção pura e simples
dessa herança, repetindo o que é consagrado pela
memoralidade. A criação literária busca nas tradições do
povo a fonte de sua inspiração, inovando, fermentando,
revivificando num contínuo desafio e compromisso com o
futuro dessa gente. Essa literatura que se manifesta sob
diversos gêneros e encontra na ficção de narrativa a
maior expressão da matriz açoriana do século XVIII que
transmitiu o modo de ser e estar ao ilhéu, nativo da
Ilha de Santa Catarina, e ao homem do litoral
catarinense.
Os temas decorrentes da epopéia açoriana marcaram e
marcam uma produção literária que se alimenta da
história, do espaço geográfico e dos tipos humanos.
Fique bem claro que não se trata de escritores da
imigração e sim do legado da imigração. Na ourivesaria
de sua arte literária emerge uma lição de sociologia na
dialética da interação social e de psicologia no
registro perspicaz dos sentimentos.
Conhecê-los e a sua obra é viajar no tempo, é penetrar
no imaginário, é entender o processo cultural
desenvolvido em seus diferentes aspectos e que são
referenciais da cultura catarinense em si.
No elenco de autores que dão vida a essa literatura
regionalista, de aporte açoriano, encontramos Virgílio
Várzea, Othon d’Eça, Franklin Cascaes, Almiro Caldeira
de Andrada e Flávio José Cardozo. Cada um a seu modo e
no seu tempo fala-nos da Ilha, do mar, do homem pescador
e da mulher rendeira com seu jeito sem pressa de olhar a
vida passar entre os fios entrelaçados da rede e da
renda.
Virgílio Várzea (1863-1941) nasceu na freguesia
de Canasvieiras, na Ilha de Santa Catarina. Do pai,
português minhoto, marinheiro de profissão, e da mãe
açoriana de origem herdou a paixão pelo mar. Fez do mar
seu companheiro de aventuras. Navegou, singrando
oceanos, percorrendo os caminhos marítimos do mundo
afora e voltou à sua Ilha e à sua gente. Voltou trazendo
o mar na alma, e a maresia dos oceanos impregnada na
pele. Foi contista e cronista, novelista e poeta.
Prolífico escritor, enriqueceria a narrativa brasileira
com uma esmerada produção literária regionalista.
Desenvolveu sua vida literária na antiga Desterro (hoje,
Florianópolis) e na cidade do Rio de Janeiro, onde
trabalhou e conviveu com a elite literária brasileira
(Rui Barbosa, Olavo Bilac, entre outros). Chefiou, entre
os anos de 1882-1887, a chamada Guerrilha Literária,
grupo formado pela intelectualidade ilhoa que se opunha
ao Romantismo e defendia as novas idéias do
Parnasianismo e Simbolismo recém-chegadas da Europa.
Desse grupo fez parte o poeta Cruz e Sousa, expoente do
Simbolismo no Brasil, amigo e companheiro de letras (em
Tropos e fantasias).
Reputado como o nosso primeiro marinhista, o nosso
Herman Melville tropical, Virgílio Várzea consolidou,
num estilo incomparável, a ficção descritiva
paisagística. Sua literatura é a mais espacial, a
mais visual prosa escrita. Integram a sua bibliografia
os livros Traços azuis (poesia); Tropos e
fantasias (em parceria com Cruz e Sousa); George
Marcial, O brigue flibusteiro (romance);
Rose-Castle (novela); Contos de amor, Histórias
rústicas, Nas ondas, Mares e campos (contos) e o
ensaio descritivo Santa Catarina – a Ilha, obra
laureada pela Comissão Comemorativa do Quarto Centenário
do Descobrimento do Brasil.
Virgílio Várzea soube como poucos retratar os tipos
humanos, a paisagem, o folclore, os usos e costumes
derivados de uma cultura açoriana do século XVIII. Na
vasta obra ficcional, a reprodução fiel do modo de viver
ilhéu, em seu próprio ritmo, nuances e rusticidade,
realça a dimensão relevante do registro documental, como
depositário de um tempo passado e da memória
salvaguardada para as futuras gerações. Soube trabalhar
com muita propriedade e talento, deixando fluir a
história, a geografia e a vida “...Os habitantes são tão
bons lavradores, como marinheiros: têm um físico
robusto, um caráter decidido e valente. Arrostar o mar
em todo tempo, superpondo-se ao perigo, é coisa que lhes
anda no sangue e nos nervos. Cantam sobre as ondas
revoltas com um meio às culturas tranqüilas onde não há
nada a temer.” (“Canavieiras” in Santa Catarina – a
Ilha).
A seu respeito escreveu com entusiasmo Olavo Bilac em
artigo do jornal “A Gazeta de Notícias” (Rio de Janeiro,
1985): “Virgílio Várzea é um dos mais fecundos dos
nossos escritores moços ... As suas marinhas – telas
vastíssimas ... – têm uma vida intensa sentida, apanhada
em flagrante por quem sabe observar ... Vê-se bem que o
autor dos Mares e campos não é um contador de
casos sonhados, mas um historiador da sua terra, dos
usos e costumes do seu povo”.
Othon d’Eça (1892-1956) nasceu na antiga Desterro
(hoje, Florianópolis), Ilha de Santa Catarina. Ao
contrário de Virgílio Várzea, que conviveu com o mar,
Othon d’Eça viu o mar através dos pescadores, sua vida
amarga, seus cansaços estéreis e aquele modo conformado
de encarar o destino.
Marinhista, falou do mar retratado nos saberes, no olhar
e na alma do homem do litoral. Nas vivências e nas
convivências ouviu-lhes histórias e lamentos, festejou a
pesca farta, chorou a perda do ente querido, testemunhou
a pobreza resignada. “De alguns ouvi-lhes contar os
perigos do mar alto, quando o vento sul, cheio de uivos
e ameaças, levanta muros de água negra, e os filhos que
morrem pequeninos, queimados pela sezão ou esvaídos em
sangue, e as fomes que suportaram, numa cova de praia,
no rancho sem esperança e sem lumes.”, escreveu em
Homens e algas.
Diante da paisagem ilhoa e praieira, não escondia seu
êxtase, fazendo da pena o pincel, e das palavras a
pintura desse cenário mítico.
Assim como debruçou-se na descrição artística da
paisagem, no minucioso registro do "modus vivendi" do
pescador, assim, também, foi um manejador exímio da
palavra escrita, aproximando a linguagem popular da
literária em que tanto os personagens como o narrador se
exprimem no mesmo linguajar.
Seu primeiro livro, Cinza e bruma, editado em
1918, no Rio de Janeiro, lembrava o poeta simbolista
Cruz e Sousa do Missal. Essa influência de
duração efêmera não deixou marcas em sua carreira
literária. Em 1920 criou a Sociedade Literária
Catarinense de Letras que, em 1924, passaria a
denominar-se Academia Catarinense de Letras, instituição
da maior relevância no desenvolvimento da literatura
catarinense.
Seguem-se a novela Vindita braba (publicada em
1923 no jornal “A República”, de Florianópolis, e no ano
de 1924 na “Revista do Brasil’, de São Paulo, por
iniciativa do escritor Monteiro Lobato), Aos
espanhóis confinantes (1929), Nuestra Señora de
L'Asunción (inédito até 1992) e Homens e algas
(1ª edição, 1957), sem dúvida o livro mais importante.
Em Homens e algas, seu último livro, a ficção e a
realidade se encontram numa coletânea de histórias
curtas, vincadas pelo vivo contraste entre o cotidiano
sofrido, miserável, desesperançado e os tons coloridos
da paisagem exuberante. Para Othon d’Eça, Homens e
algas, como ele afirma em seu ‘Como um prefácio’, é
quase um livro de memórias "escrito com o intuito de
gravar verdades vivas e amargas - que valem muito mais
que os relevos dos frisos e as galas da imaginação".
Vemos, todavia, que ao fixar tipos humanos, linguagem,
folclore e vida praieira, Othon d’Eça, além de produzir
uma vigorosa literatura regional etnográfica, em todo o
seu texto carregado de açorianismos, traz à tona a
memória coletiva de uma população desvalida. Logo, sua
obra é mais que um livro de memórias, é uma peça
documental preciosa pelo registro que faz da nossa
história social e cultural.
Nos contos narrados com simplicidade e originalidade
Othon d’Eça dá voz à criaturas cuja vida se desenrola
junto aos avanços e recuos do mar, sobre a praia, numa
relação simbiótica, “homens e algas cuspidos todos numa
praia, sob o sol dourado e vivo: as algas pelo mar e os
homens pela miséria”.
Franklin Cascaes (1908-1983) nasceu na praia de
Itaguaçu, no município de São José “da Terra Firme”.
Hoje Itaguaçu pertence a Florianópolis, cidade que
Cascaes sempre chamou de Desterro, em protesto à
homenagem prestada a Floriano Peixoto em 1894 e até hoje
não aceita por grande parcela dos nativos da
Ilha-Capital.
Como artista, Franklin Cascaes foi autodidata. Utilizou
todo o seu talento e criatividade em registrar e
transmitir através da escrita, do desenho, da escultura
e do artesanato o legado açoriano. Enquanto a cidade
crescia e se desenvolvia num vertiginoso processo de
modernização, que punha em perigo o futuro da Ilha,
Cascaes buscava o passado, em pesquisa quase
arqueológica, juntava cacos de um patrimônio cultural
que se fragmentava e punha a salvo muito da memória da
cultura popular da nossa Ilha.
Quase solitário em sua caminhada, por mais de trinta
anos recolheu histórias e estórias, num persistente
trabalho de rabiscar a mitologia, desenhar a
bico-de-pena cenas do cotidiano, crenças e o imaginário
ilhéu, moldar na argila os personagens desse cenário
insular. Deixou um valioso documentário sobre usos e
costumes, histórias de bruxarias e magias, além de um
acervo riquíssimo de cerâmica figurativa que retratam
festas religiosas tradicionais, folguedos populares,
crenças e lendas, as alfaias e as tecnologias
patrimoniais dos engenhos, da pesca e da agricultura, a
labuta diária na criação artesanal de subsistência.
Etnógrafo, escultor, folclorista, escritor, foi ele
próprio um bruxo artífice da cultura ilhoa e de seus
mistérios anímicos. Traduziu melhor do que ninguém o
universo artístico, fantástico, mágico que permeava (e
permeia) a teia de relações sociais do povo açoriano da
Ilha de Santa Catarina. Na sua única obra publicada,
O fantástico na Ilha de Santa Catarina (1979 – I
volume), estão reunidas doze estórias de um conjunto de
vinte e quatro. No enredo, temos a narrativa linear do
fantástico contadas com extrema singeleza por vozes da
Lagoa, do Ribeirão da Ilha, do Pântano do Sul e de
outras freguesias. O leitor mergulha num torvelinho e de
cada página saltam bruxas, feiticeiras, lobisomens,
boitatás, benzedeiras com suas rezas e remédios.
O segundo volume de O fantástico na Ilha de Santa
Catarina, que só sairia nove anos após sua morte, ou
seja, em 1992, traz doze outras estórias . Fruto do
trabalho de pesquisadores da Universidade Federal de
Santa Catarina, todos movidos pelo mesmo entusiasmo e
fascinados pelas revelações colhidas no mergulho
profundo nesse mar de estórias contadas ao longo das
gerações. Os enredos dos vinte e quatro textos
selecionados refletem as vivências de Franklin Cascaes,
no lusco-fusco do entardecer, na ardentia das marés, nas
noites de lua cheia, fiadas em torno do lume das
lamparinas, estórias de tempos idos e rememorados
continuamente através da tradição oral.
Na busca do entendimento da rica cultura popular da Ilha
de Santa Catarina, a obra de Franklin Cascaes oferece um
farto material para pesquisadores que se aventuram a
penetrar nesse fabuloso mundo, desvendando arquétipos
delineados em tantas imagens e formas míticas. Com sua
exuberante imaginação, ele ousa e surpreende: assim é
quando introduz na narrativa das lendas da Ilha
elementos atuais como uma nave espacial ou quando
procura na mitologia grega a compreensão de atitudes
estranhas do nosso homem simples e aturdido com o
inexplicável.
A linguagem em dialeto manezês flui descontraída na
cosmovisão de suas estórias e gentes, de vidas em ritmo
sossegado, matizada de humor, num misto de realidades e
quimeras.
Almiro Caldeira de Andrada nasceu na cidade de
Florianópolis, em 1921. Com a novela Mão de pilão,
recebeu em 1958 o Prêmio Virgílio Várzea da Academia
Catarinense de Letras. Caracteriza-se por uma produção
literária ficcional cuja tônica é o romance histórico
construído a partir de momentos e fatos acontecidos em
diferentes épocas e distantes geografias.
Do conjunto de sua obra sobressaem três romances
históricos de forte aporte açoriano: Rocamaranha
(1961), Ao encontro da manhã (1967) e Arca
açoriana (1984).
Rocamaranha tem como pano de fundo a saga de duas
famílias terceirenses que em 1748 atravessaram o
Atlântico na grande epopéia açoriana. Descreve as
vicissitudes da longa viagem e sua adaptação na Ilha de
Santa Catarina. Busca as raízes culturais elucidando as
interações entre o passado deixado para trás nos Açores
e os caminhos percorridos na terra de acolhimento.
Com um enredo simples e terno, a narrativa de pouco mais
de cem páginas fala do romance dos jovens Nanda e Duda e
os conflitos decorrentes da decisão de seus pais de
emigrarem para o Brasil. A ruptura das raízes, de vidas
partidas, a saudade dos tempos idos, findos e
irreversíveis estão presentes ao longo da trama. Uma
narrativa forjada em dois pontos imbricados. De um, está
sobreposto o romance, no seu conteúdo novelesco, marcado
pelo processo migratório. Em outro, o futuro, o renascer
aqui, na Vila do Desterro, cenário da sociedade ilhoa do
século XVIII. Chama atenção a seriedade com que pesquisa
e recria usos e costumes da época, desvenda valores
morais, registra tradições culturais oriundas dos
Açores. A narrativa encerra, justamente, quando Duda e
seu pai, cumprindo determinação régia na defesa do
território português no extremo Sul do Brasil, partem
para o continente de São Pedro. Quinze anos depois, a
saga e o resultado da migração açoriana também seriam
fonte inspiradora para Um quarto de légua em quadro
do escritor Luiz Antônio de Assis Brasil.
Rocamaranha é uma palavra resultante da fusão dos
termos roca, instrumento de fiar, e emaranhar,
simbolizando o fiar e o desfiar. O emaranhar do confuso
fio do destino no palmilhar entrelaçado das trajetórias
de vidas, desde Açores até o Sul do Brasil. A urdidura
de personagens que reconstruíram suas vidas,
desembaraçando os fios, na nova terra prometida – a Ilha
de Santa Catarina.
Ao encontro da manhã tem como cenário a Revolução
Federalista (1893-1894) e o episódio do fuzilamento dos
revoltosos na fortaleza de Anhatomirim. Numa técnica de
narrativa dinâmica, a trama de amor e ódio
desenvolveu-se na Desterro do final do século XIX sendo
os personagens descendentes da quinta geração dos de
Rocamaranha. Os traços da singular cultura açoriana,
visíveis em toda a extensão da obra, são retratados com
fidelidade. Em Arca açoriana, Almiro retoma os
fatos históricos e os personagens de Rocamaranha
e antecipa a participação de outros que estão em Ao
encontro da manhã. Novamente, uma obra de ficção,
tendo como moldura acontecimentos históricos conhecidos
– a disputa deste território pelas Coroas de Espanha e
Portugal. A ação se desenrola na Ilha de Santa Catarina,
quando da tomada da Ilha pelos espanhóis em 1777. Nas
páginas de Arca açoriana desfila a segunda
geração daqueles açorianos chegados em 1748, distantes
das suas raízes rompidas no tempo e no espaço,
suturadas, reconstruídas e reproduzidas por novas
gerações. A obra de Almiro Caldeira dá vida à ficção,
recuperando a memória da tradição açoriana em terras
catarinenses sob a perspectiva dos vencedores.
Flávio José Cardozo, nasceu em Lauro Müller, na
região carbonífera de Santa Catarina, em 1938, ao pé da
Serra do Rio do Rastro.
Conheceu o mar quando já tinha onze anos, fato que viria
a ter grande repercussão em sua atividade de
ficcionista. Boa parte do que escreveu tem por temática
as coisas e as gentes à beira-mar, o cotidiano da Ilha
de Santa Catarina, os traços remanescentes da presença
açoriana, em textos plenos de lirismo, humor e
imaginação.
Escreveu os livros de contos Singradura (1ª
edição, 1970), Zélica e outros (1ª edição, 1978)
e Longínquas baleias (1986) e dos volumes de
crônicas e ficção curta Água do pote (1982),
Sobre sete viventes (1985), Beco da lamparina
(1987), Sofá na rua (1988), Tiroteio depois do
filme (1989), Senhora do meu desterro (1991),
Trololó para flauta e cavaquinho (em parceria com
o escritor Silveira de Souza, 1999) e Uns papéis que
voam (2003).
Em 2002, estreou na literatura infantil com O tesouro
da Serra do Bem-bem. Seus textos foram adaptados
para o teatro, a televisão e o cinema. O escritor
desenvolve também intenso trabalho nas escolas dos
diversos níveis, num permanente esforço pela formação de
leitores.
Os livros Singradura e Zélica e outros
destacam-se na sua bibliografia. Referindo-se ao
primeiro, de feição mais lírica, Victor Giudice comentou
que nele “a palavra subverte os valores tradicionais
para adquirir um valor inteiramente novo e contextual”.
Em Zelica e outros o tom é de farsa. Temos aí,
como escreveu Assis Brasil, “um exemplo notável de como
é possível fazer humor, ser satírico e pícaro ao mesmo
tempo, sem resvalar de um nível literário dos mais
incisivos”. Na narrativa desses contos é revelada com
perspicácia a transformação do universo dos pescadores e
praieiros, os conflitos e a resistência às mudanças que
acompanham o inexorável processo de urbanização. Rica em
elaboração e conteúdo, é uma obra sensível à memória
social de nossa gente.
Flávio faz crônica com imensa graça. Nesse gênero,
transcende o espaço local para explorar todos os temas.
Debruçado sobre os fatos humanos capta imagens, pincela
com humor e colore o cotidiano por vezes amargo,
extraindo dele o seu universalismo. O estilo é muito
pessoal. A comunicação flui leve e solta, numa linguagem
cheia de sutileza e malícia, tão própria do espírito
“manezês” (termo derivado de “manezinho”, nativo da Ilha
de Santa Catarina). Observador atento, não perde a
ocasião de registrar a memória do lugar em que vive, o
repertório afetivo do praieiro e o imaginário insular.
Vai tecendo, mexendo os bilros, entrelaçando os fios da
criação, ora docemente, ora com vigor, conduzindo com
arte a narrativa de seus contos e crônicas. Por isto,
seus personagens passeiam com naturalidade e
espontaneidade em suas histórias, ganham força e nos
impressionam tanto.
Foi com essa capacidade de domínio verbal, de tecer
filigranas e perceber as sutilezas do tempo e espaço,
que ele manteve durante anos, diariamente, sua coluna de
crônicas (e de muitos pequenos contos) no “Diário
Catarinense”, de Florianópolis. Se posiciona como viva
voz na defesa das questões culturais e das tradições
ilhoas. Participa ativamente na vida da comunidade onde
mora, no caminho dos Açores (nome por ele sugerido ao
poder público), na freguesia de Santo Antônio de Lisboa,
interior da Ilha de Santa Catarina.
A proposta de escrever um artigo sobre escritores da
Ilha de Santa Catarina cuja produção literária esteja
fortemente marcada pela presença açoriana é resultado da
necessidade sentida de aproximar os açorianos do
arquipélago e das comunidades da diáspora de outras
vozes, nascidas na margem de cá do Atlântico Sul, na
altura da latitude 27º, que tem nas tradições de seu
povo e sua ancestralidade a fonte de sua inspiração.
Estes cinco - Virgílio Várzea, Othon d’Eça, Franklin
Cascaes, Almiro Caldeira e Flávio José Cardozo - não são
vozes isoladas. Outros em diferentes gêneros literários,
bem como ensaístas, historiadores e cientistas sociais,
muito se dedicam à temática.
Este talvez seja o momento de fazermos uma avaliação
consuetudinária das expressões culturais dos açorianos
de lá com os do lado de cá, separados há 255 anos e
unidos por partilharem de uma mesma matriz civilizatória,
herança que nos dignifica e identifica. A gestão
cultural do município de Florianópolis tem procurado
cumprir o seu papel neste processo, salvaguardando e
preservando a nossa identidade cultural, socializando
conhecimentos, executando uma política pública de
cultura voltada, também, para uma política de inclusão
social. Uma política que não apenas disponibiliza o
acesso democrático aos bens culturais, mas,
principalmente, abre portas garantindo com qualidade
meios para a produção cultural, fomentando a criação e
difundindo o conjunto de manifestações artísticas,
literárias, históricas e culturais da nossa Ilha
Capital.
No caso específico dos Açores e sua gente, se há
necessidade de uma maior interrelação entre o que se
produz aqui e lá, no que depender de atitudes e
iniciativas públicas, cabe a nós tomá-las.
Está na hora de regressar por este mesmo mar que não nos
aprisiona ou empareda, por ser portal que nos une ao
continente. De atravessar esta imensa porta e deixar
fluir dos dois lados uma corrente benfazeja de trocas
enriquecedoras dos escritores, poetas e críticos.
Neste sentido, alguns passos fundamentais já foram
palmilhados com ações efetivas da Direção Regional das
Comunidades e com a assinatura do protocolo de
cooperação cultural entre a Fundação Gaspar Frutuoso
(Universidade dos Açores) e a Fundação Cultural de
Florianópolis Franklin Cascaes (Prefeitura Municipal)
que oportunizará novos projetos sobre as sobrevivências
culturais nesta Ilha abençoada por Santa Catarina –
referência da cultura portuguesa insular do século
XVIII. Enfim, como bem afirmou António Machado Pires,
“não são, pois, os açorianos de hoje que são raízes dos
catarinenses mas estes que transportam as raízes
açorianas que fomos”.
Vale a pena conhecer-nos!
Lélia Pereira da Silva Nunes
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