Espirito Santo e o Imaginário Lusitano

  

Valerá a pena intercalar aqui algumas palavras sobre o culto do Espírito Santo no nosso pais, que constitui um assunto a um tempo complexo, ocultado e fascinante. Trata-se de um fenómeno que não é exclusivamente português, como é obvio nestes assuntos, mas que encontrou no nosso pais um clima mental e emocional de uma intensidade única – e que prevalece nos nossos dias, mau grado a longa persistência das proibições e dos obstáculos a que, ao longo de séculos, tem sido sujeito.

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Hoje, é sobretudo o povo dos Açores que mantém vivo o culto, essa arreigada devoção com que continua a preparar a vinda, para breve Paracleto, na linguagem popular), mormente o povo dos lugares menos sujeitos à centralização dos poderes – pela distância ou a dificuldade de acesso, como nos Açores ou nas América, ou em algum lugarejo de difícil acesso, como a aldeia do Penedo, na serra de Sintra, onde o autor assistiu há relativamente pouco tempo a uma das ultimas festas dedicadas ao Espírito Santo antes de serem interditas.

Infelizmente, poucos portugueses sabem, exceptuados os Açoreanos, que houve em Portugal um culto religioso, que perdura ainda hoje, fundado por um rei. independentemente da autoridade eclesiástica. O culto é o do Espírito Santo, o rei foi D. Dinis, cuja decisão contou por certo com a decisiva influência de sua esposa, a rainha Isabel. D. Rodrigo da Cunha, na sua História Eclesiástica da Igreja de Lisboa, declara categoricamente que ela e el-rei D. Dinis foram os autores da festa que se chama do Espírito Santo, cuja solenidade foi tão celebre por todo o reino e mais nos maiores e mais populosos lugares dele, como ouvimos contar aos antigos, e o bispo do Porto D. Fernando Correia de Lacerda, na sua obra História da Vida, Morte, Milagres, Canonização e Trasladação de Santa Isabel, Sexta Rainha de Portugal, publicada em Lisboa em 1680 – 40 anos depois da Restauração –, a seguir à descrição da faustosa solenidade do culto e em particular da procissão da véspera do dia do Espírito Santo, incluindo a cerimonia das madeixas de cera  e dos lumes que se acendiam então para arder por todo o discurso do ano; o que tudo se ordenou por instrução da Santa Rainha  –, tem estas palavras extraordinárias: ... e considerando o Império e a candea, se he licito ajuisar as alheas acçoens, principalmente estas que são misteriosas, não podemos deixar de entender, que aquela candeia põe a Santa Rainha, todos os anos, ao Espirito Santo, para que Deus havendo hum só Pastor, e um só rebanho, estabeleça, em cumprimento da sua promessa, na Coroa Portuguesa, o Império Universal do Mundo.

Eis, de um só traço, ligado o culto do Espírito Santo a ideia profética e joaquimita do Império Universal e à esperança escatológica, tão cara ao padre António Vieira, da proximidade do Quinto Império ou Terceira Idade do Mundo, a Idade do Espírito Santo. E não se pense que esse culto, essa ideia e essa esperança apenas interessaram alguns nobres intelectuais  ou uns quantos místicos  alheios às realidades da vida de todos os dias ou algum raro poeta sonhando grandezas pátrias. Na verdade, o culto instituído pela Rainha Santa no primeiro quartel do século XIV e que teve inicio, segundo os cronistas, no Convento de S. Francisco, da Vila de Alenquer, rapidamente alastrou pelo reino como um fogo de palha, congregando a devoção popular após ter concitado a da nobreza, como declara o mesmo D. Fernando Correia de Lacerda: Depois de (Isabel) haver edificado em Alenquer uma igreja ao Espírito Santo no primeiro ano em que se fez a solenidade da Coroação do Imperador, e com todo o luzimento, não só chamou a nobreza para tomar parte neste Império, que ela tão piedosamente achava de erigir, mas também convocou pessoas de diversas jerarquias , as quais prometeram que por serviço de Deus e da Sua Alteza tratariam da conservação daquela casa, e acrescenta o mesmo autor que estimaram os reis esta piedosa promessa da nobreza e do povo em que o povo igualou a generosidade da nobreza.

Jaime Cortesão em Os Descobrimentos Portugueses: "O Espírito Santo foi, durante os séculos XIV e XV e primeira metade do seguinte, não só uma das mais fervorosas devoções da família real, mas principalmente objecto do culto popular mais difundido em Portugal. Confor-me os cronistas seiscentistas, D. Rodrigo da Cunha, Frei Manuel da Esperança e Frei Francisco Brandão, que ainda assistiram aos últimos esplendores desse culto, celebrado durante a Semana de Pentecostes, a sua principal cerimonia constava da coroarão do Imperador, geralmente na pessoa de um homem do povo pertencente a Irmandade do Espirito Santo, que o elegia. O Imperador empunhava ainda o estoque ou vara, símbolo do mando.

Aquela irmandade, que em geral administrava um hospital, assumia o encargo de celebrar todos os anos a festa do Imperador. A cerimónia da investidura chama-va-se festa do Império, e nos Açores, cujo povoamento começou nos meados do século XV, as próprias ermidas ou casas populares onde ficava depositada, de ano para ano, a coroa de prata, encimada pela pomba do Espírito Santo, designavam-se por impérios.

Jaime Cortesão adianta que foi durante os séculos XIV e XV que o culto do Espírito Santo, ligado à festa do Império, tomou maior desenvolvimento em Portugal (celebrando-se a bordo das naus que atravessavam os oceanos) e espalhando-se pela África Portuguesa, a Índia e, principalmente, os arquipélagos da Madeira e dos Açores, de onde passou mais tarde, em grande parte por obra dos Açorianos, ao Brasil e à América do Norte. Por outras palavras: o auge do culto do Espírito Santo coincide no País com o período mais intenso da expansão portuguesa no planeta. São ainda do mesmo ilustre historiador, nos capítulos que dedica aos painéis atribuídos a Nuno Gonçalves, estas palavras então ousadas – num contexto cultural marcado por um tenaz neopositivismo que desgraçadamente ainda não desapareceu por completo –, palavras que revelam a rara percepção que tinha das geodésicas essenciais do imaginário português: “Não se nos afigura excessivo, por consequência, crer que a cerimónia da coroação do imperador tenha significado aos olhos de muitos portugueses, e, quando menos, daqueles, frades ou leigos, iniciados na doutrina hortodoxa dos espirituais, a investidura simbólica da nação pelo Espírito Santo” – espécie de Pentecostes nacional – na missão de propagar a Fé a todo o mundo. Por esse motivo, ao século de Quatrocentos, em Portugal, chamamos nós a época do Pentecostes. Eis os motivos que nos levaram a dar ao conjunto dos painéis o titulo de Retábulo da investidura da nação pelo Espírito Santo.