A GARRAFA DE VERDELHO

 

         Quem nos visse não diria que eram mãe e filho, antes os tomaria por irmão e irmã.

         Ela mal arredondava os dezanove quando o deitou ao mundo. Ele completava-os no novo ano que em breve iria começar.

         Contudo, com os cabelos todos negros, a cara formosa e sem rugas, o corpo esbelto e sem qualquer deformação, ela nem aparentava os trinta, quanto mais os trinta e oito. Ele, pele cortida pelos ventos duros da terra e do mar, mãos calejadas no cabo do alvião e no punho do remo, dir-se-ia por volta dos trinta bem contados.

         Os dois na cozinha de paredes defumadas, sentados em bancos de faia em frente à pedra do lar.

         Os outros filhos dela e irmãos dele, duas raparigas e um rapaz, na sala de dentro e na sala de fora, a retoiçar. Até a rapariga mais velha, de quinze anos, sempre atrás do irmão mais novinho, que só tinha cinco.

         A comida na mesa: carne de galinha (de uma galinha que ela criara, e matara, e governara, e cozera no caldeirão), os pães de trigo, os pães de milho, as guloseimas dos rabos-de-gato - que ela fizera com a farinha que amassara, tendera, cozera no forno - e as garrafas de vinho de cheiro das vinhas que ele ajudara a cavar, podar, sachar, mondar, levantar, vindimar. Nos outros anos também ela trabalhava nas vinhas. Naquele…

         Esperavam que voltasse o marido e pai que, iam a chegar-se para a mesa, dissera para ela:

         - Não tens aí nenhuma garrafa de bebida fina?

         - Não. Havia uma, mas gastou-se pelo Espírito Santo.

         E o companheiro:

         - Vou buscar ao botequim. De que gostas mais?

         - Do que gostares.

         - Não. Diz do que gostas mais.

         - Já disse. Do que gostares mais. - E riu, e era bonito o rico dela.

         - Licor de canela?

         - Pode ser.

         - Ou de café?

         - Também pode ser.

         Fora-se, o marido e pai, e começava a demorar.

         - Ficou de conversa - diz ele.

         E ela, condescendente:

         - Nestes dias há sempre um amigo…

         Calma, a noite. Mal se ouvia na costa o mar ronronando como gato adormecido. O vento, apenas brisa que perpassava sobre as telhas, leve como asa leve de pomba mansa. No céu, sem nuvens, um oceano de estrelas brilhando no escuro frio.

         Os dois olhavam, imóveis, as chamas da lenha de urze debaixo da chaleira com água a aquecer em cima da grelha - ela enrodilhada  no xaile preto, ele amordaçado no desejo de fumar, e não fumando, mesmo que, naquele tempo, mandava o respeito que não fumassem os filhos diante de pai nem mãe, nem avô nem avó, nem tio nem tia, e…

         Ela sabia no que ele pensava, para além do desejo de fumar. Ele sabia o que ela pensava, enrodilhada no xaile preto.

         Ano mau, o que findava. A doença andara-lhes metida em casa. Ela, meses e meses no doutor, semanas e semanas no hospital da cidade, longe, para lá da Fronteira, da outra banda do Canal. Não ignorava que estivera à beira da morte. Sentira-lhe as garras a escavarem-lhe as entranhas. Não o dissera a ninguém, mas não o ignorava não. Ele, acreditando sempre na vitória da vida, não podia esquecer, ali, diante das chamas do lar, o horror que o possuíra no dia em que a vira - a Mãe - , pálida como um cadáver, nos lençóis brancos da cama da enfermaria. E sem lhe poder falar, sem lhe poder dizer o nome.

         Mas vinha aí o Ano Novo, passara o Natal e vinha aí o Ano Novo, e com ele a esperança nova.

         O estardalhaço das crianças na sala de dentro e na sala de fora.

         No caminho, os primeiros ranchos que iam, de casa em casa, cantar os anos Bons. Aproximavam-se, afastavam-se, tocando rabecas e ferrinhos, violas e acordions no silêncio da noite tranquila.

         Calaram-se por momentos as crianças. A menina mais velha apareceu, os olhos bonitos interrogavam:

         - Eles não entram na nossa casa?

         A Mãe tranquilizou-a:

         - Hão-de entrar mais logo.

         - E o Pai? O Pai nunca mais vem?

         -Há-de vir.

         Minutos que decorrem, passos que se aproximam, atravessam o pátio. E a Mãe:

         - Olha… - Passos que se chegam mais, e mais, que se reconhecem já. - Aí está ele. O Pai.

         A porta aberta. O companheiro no rectângulo da porta, os cabelos a branquejarem-lhe por baixo do chapéu negro.

         - Demoraste-te.

         - Um bocadinho.

         As crianças abeiravam-se do Pai. Na mão caída ao longo do corpo, uma garrafa coberta de grossa camada de pó e de espesso rendilhado de teias de aranha.

 

 

         - Isso não é do botequim.

         - Não.

         - O que é? - Os olhos dela sorriam, curiosos, para os olhos do companheiro.

         - Sabes, dei um salto à adega.

         - Ah!

         - Fui buscar esta garrafa de verdelho.

         - Tu tinhas uma garrafa de verdelho na adega?

         - Tinha.

         - Aonde?

         - Num sítio que só eu sabia. Tem mais de cem anos. Foi meu bisavô que a deu a meu Pai quando meu Pai se casou e depois foi meu Pai que ma deu quando nos casámos nós.

         - Nunca me disseste.

         - Pra quê? Guardava-a para um dia.

         - Mas…

         - É hoje que a vamos beber.

 

         Sentaram-se à mesa. Afogueavam-se os rostos, brilhavam os olhos das crianças. O mais novinho por força havia de ficar ao pé da Mãe.

         Comeram carne de galinha, comeram pão de trigo, molharam o pão de trigo no molho saboroso da carne de galinha temperada com pimenta e cravinho, jamaica e canela, beberam vinho de cheiro.

         Iam a trincar a sobremesa que era a guloseima dos rabos-de-gato, começava o velho relógio, na parede da sala de dentro, a bater a meia noite. O Ano Velho morria, o Ano Novo nascia.

         - Vamos a isto - disse o Pai, tirando a rolha da garrafa e começando a encher os copos.

         Os olhos de todos se abriram, num pasmo, num silêncio grande, religioso, para o líquido que tombava, precioso, da cor do oiro, da cor do âmbar.

         - Bebida de reis,

         ela, talvez pensando que melhor seria guardar a garrafa de verdelho para o casamento dele, o primeiro filho,

         - Pra quê hoje? Para quê?

         O companheiro olha-a com olhos brilhantes:

         - Pra quê? Prova. - E, para os filhos: - Ninguém beba sem que a Mãe beba primeiro.

         Devagarinho, como que a medo, ela ergueu, levou o copo aos lábios. E também devagarinho, e também como que a medo, o companheiro levantou o seu copo. E com os olhos rasos de comoção:

         - Bebamos agora, filhos! E é hoje, porque tu estiveste, mulher, para morrer e estás viva! Hoje, porque estamos aqui todos juntos - todos sem faltar ninguém - nesta Noite de Ano Bom que esteve para ser a mais desgraçada e é a mais feliz que já se viveu nestas quatro paredes!

 

         Então ela compreendeu que não fora a única a ter a certeza da presença da morte - da sua própria morte. Então ele, o filho mais velho, sempre tão seu amigo e já com a pele cortida pelos ventos duros da terra e do mar, abarcou, inteira, a razão - a tremenda razão - do horror que o possuíra no dia em que vira a Mãe, sem fala, pálida, como um cadáver, nos lençóis brancos da cama do hospital.

         E, como o pai,sentiu que era bom estarem ali todos juntos, festejando o Ano Novo com aquela garrafa de verdelho das uvas vindimadas, há mais de cem anos, pelas mãos do bisavô do Pai.

         Aquela garrafa de verdelho durante cem anos guardada para um dia - que foi aquele dia.

 

 

Dias de Melo,“A  garrafa  de verdelho”,  in Uma  estrela  nas  mãos  do  homem.,

Ponta Delgada, Brumarte, 1986, pp.61 - 64