FESTA DO “DIVINO ESPÍRITO SANTO” – ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

 

 

HOMILIA DE D. TOMAZ, BISPO AUXILIAR

 

1. Com uma existência, nos Açores, de mais de cinco séculos, a Festa do Divino Espírito Santo levada para aquele arquipélago, no século XV, pelos primeiros povoadores, no contexto da acção missionária dos franciscanos, continua a imprimir a alma dos açoreanos, reunindo-os, como hoje, na diáspora, em número tão expressivo. 

O profundo sentido de fé e piedade da Festa remonta às origens e evidencia-se na riqueza da simbologia alusiva ao Espírito Santo, no testemunho público dos que, por tradição, assumem maiores responsabilidades e de todos quantos se incorporam no cortejo, e, também, na caridade para com os mais necessitados, concretização da máxima central da vida cristã: “A fé sem obras é morta” (Tg 2, 17).  O relevo dado a certos aspectos, como as vestes, o ajuntamento das multidões, a alegria do encontro, a convivência e outros sinais externos, sem negar a sua importância, podem conduzir à relativização do objecto fundamental da Festa - o culto de louvor à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade.

São riscos a solicitar uma atenção constante, pois atingem a generalidade das festas religiosas de cariz popular e podem empobrecê-las, se as manifestações externas prevalecerem sobre a vivência interior, sem a qual não há culto verdadeiro nem conversão autêntica.

Os textos da liturgia que estamos a celebrar convidam-nos a centrar a atenção sobre alguns aspectos essenciais da fé no Mistério do Espírito Santo e, se neles meditarmos, encontraremos perspectivas práticas para o progresso da nossa vida cristã.

 

2. S. João, como ouvimos no Evangelho, diz que o Senhor Ressuscitado apareceu aos discípulos no próprio Dia da Ressurreição e soprou sobre eles, comunicando-lhes o Espírito Santo (Jo 20, 19-23).  É um primeiro relato da transmissão do Espírito, dom prometido por Jesus: “É melhor para vós que Eu vá [para o Pai], pois, se Eu não for, o Paráclito não virá a vós; mas se Eu for, Eu vo-lo enviarei” (Jo 16, 7).

O Espírito Santo dimana do Ressuscitado, como força vivificadora que renova os discípulos transformando o medo, a decepção e a insegurança em alegria e paz, pelo reconhecimento da presença do Senhor que, afinal, vencera a morte. E esta certeza há-de acompanhá-los na missão de anunciar e dar testemunho do Evangelho em todo o mundo, dando-lhes a firmeza necessária para triunfarem perante obstáculos e dificuldades.

A experiência do reconhecimento de Cristo Ressuscitado é dom do Espírito. “Na realidade, por mais que se olhasse e tocasse o seu corpo só a fé podia penetrar plenamente no mistério daquele rosto“ (Cf. João Paulo II, NMI 19) e, como dizia S. Paulo na segunda leitura, “ninguém pode dizer: ‘Jesus é Senhor’, senão pelo Espírito Santo” (1 Cor 12, 3).

Pedro, já anteriormente tinha captado a transcendência da pessoa de Jesus quando o reconheceu como “o Cristo, o Filho de Deus vivo” (Mt 16, 16). Agora, descobrem-na os discípulos e, em continuidade ininterrupta, a Igreja em todos os tempos.

Se Cristo ressuscitou, então tem sentido a nossa fé (1 Cor 15, 14); fazer memória d’Ele não é só recordá-l’O como figura do passado, é viver intimamente a sua presença actual, beneficiando dos frutos da redenção; segui-l’O é a razão do nosso existir; imitá-l’O, dando testemunho do seu amor universal, é caminhar seguramente para a meta, a plenitude de vida na perfeita comunhão com Deus, Trindade Santíssima.

 

3. O Espírito Santo impele a Igreja, no início do terceiro milénio, a seguir fielmente a Cristo, comprometendo-se no amor efectivo por cada ser humano e, especialmente pelos mais pobres e desprotegidos, com quem Cristo particularmente se identificou.  Nesta categoria encontra-se grande parte dos emigrantes que deixam as suas terras à procura de condições mais dignas para viver, fenómeno que se tem intensificado nas últimas décadas.

Diante deste facto, o Papa João Paulo II, na “Mensagem para o Dia Mundial dos Migrantes e dos Refugiados” (18 de Agosto de 2002), sobre “Migração e diálogo inter-religioso”, lembra à sociedade e à comunidade cristã a obrigação de reflectirem, para responderem adequadamente aos novos desafios que surgem com a presença dos cerca de cento e cinquenta milhões de imigrantes espalhados no mundo actual.

A imigração levanta problemas novos e complexos, como o encontro de culturas, tradições e crenças religiosas diferentes, a necessidade de controlo de entradas e de permanência e de cumprimento das leis, particularmente nos domínios do estatuto de cidadania e do trabalho. O respeito pela dignidade da pessoa de cada imigrante exige um maior esforço dos serviços dos países de acolhimento para uma aplicação justa, humana e universal da legislação, por forma a evitar penalizar aqueles que, por circunstâncias de maior carência e vulnerabilidade, caem em redes de exploração ilegal e mais facilmente são apanhados em situações fraudulentas, deixando de fora, impunemente, os mais responsáveis pelo fomento de sistemas de ilegalidade.

Mas, a imigração lança outro desafio premente dirigido, em especial, aos responsáveis dos países de origem: Não basta a satisfação com economias tecnicamente equilibradas ou mesmo em ritmo de crescimento. Só uma economia ao serviço do homem, o que supõe novas exigências éticas, facultará o acesso mais amplo aos bens essenciais para uma vida digna e a distribuição mais justa e equitativa das riquezas produzidas. E essas são duas condições indispensáveis para fixar os povos às suas terras porque, então, cada um se sentirá cidadão de pleno direito, protagonista e beneficiário do desenvolvimento local.

 

4. Na primeira leitura ouvimos um outro relato, o de Lucas, sobre a descida do Espírito Santo cinquenta dias depois da Páscoa, no dia do Pentecostes (Ac 2, 1-11). Aqui evidencia-se o papel do Espírito Santo, simbolizado no sopro do vento forte e ruidoso e nas línguas de fogo que pousaram sobre cada um dos Apóstolos, acontecimento que atraiu judeus de todos os povos e línguas. Ele é princípio de unidade, de universalidade e de dinamismo da missão.

O Pentecostes é a realização plena da promessa de Jesus. Aqui nasce a Igreja, comunidade unida pela força do Espírito Santo, destinada a oferecer o dom da salvação a todos os povos, sinal de unidade do género humano, para lá das distinções de raças e culturas. Gerada e conduzida pelo Espírito Santo, a Igreja é enviada a anunciar o Evangelho da salvação e a produzir frutos do mesmo Espírito: “amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio” (Gal 5, 22).

Ao acorrerdes em tão grande número a esta celebração, trazeis, para oferecer em louvor ao Espírito Santo, o contributo inestimável que vós, e tantos outros portugueses, tendes prestado à construção desta parcela do continente norte-americano, pela força do trabalho, a harmonia e a paz das vossas vidas, e a fé cristã que vos anima. Mas, a vossa fé estaria incompleta se a participação nesta Festa fosse um acontecimento episódico, isolado do resto da vossa vida. A Festa tem de se prolongar para além destes dias, pois “a cada um é dada a manifestação do Espírito, para proveito comum”. De facto, num só Espírito, fomos todos baptizados para formar um só corpo” (1 Cor 12, 7.13).  

A devoção ao Espírito Santo, simbolizada materialmente no “Império do Espírito Santo”, lembra-nos que é dever do cristão testemunhar o “Império do Espírito Santo” pelo esforço diário de tornar presentes os frutos do Espírito nos diversos ambientes de vida. 

 

5. Na linha da abertura universal à humanidade, que caracteriza a missão da Igreja, João Paulo II, na Mensagem já referida, dirige um apelo aos migrantes à prática do diálogo e da colaboração mútua com os homens e mulheres de culturas e religiões diferentes, com quem se cruzam no dia-a-dia: “O diálogo é a via-mestra que se deve percorrer e a Igreja convida a caminhar por esta estrada, a fim de passar da diferença ao respeito, da recusa ao acolhimento" (Cf. n. 1). Este apelo toca directamente os imigrantes da América do Norte, pois conforme recorda o Papa, ela vive uma sólida experiência multicultural e hospeda adeptos de novos movimentos religiosos (Cf. n. 2). 

A relação com os que professam outras religiões implica testemunho claro da própria fé, aceitação recíproca das diferenças e respeito pela liberdade religiosa e de consciência.

Independentemente da presença portuguesa ser maioritária ou minoritária nos locais de habitação e de trabalho, as comunidades e as paróquias devem abrir-se ao diálogo inter-religioso e a iniciativas conjuntas de construção do bem comum, tornando-se “verdadeiros ‘laboratórios” de uma convivência civil e de diálogo construtivo” (Cf. n. 3).

Correspondendo a este apelo, os imigrantes portugueses darão o seu contributo para que se cumpra o desejo do Santo Padre: Que “o nome do único Deus se torne, como é, cada vez mais um nome de paz e um imperativo de paz” (Cf. n. 2).  

 

6. Maria, que se deixou habitar pelo Espírito Santo, interceda por nós e nos oriente para a descoberta dos caminhos que o mesmo Espírito nos aponte para construirmos um Reino de verdade e vida, de justiça e misericórdia, de esperança, amor, e paz.

 

Fall River, 25 de Agosto de 2002

 

 

† Tomaz Silva Nunes

Bispo Auxiliar de Lisboa