A face oculta do Paracleto

  

Assim parece ser. Mas pode afirmar-se que existe pelo menos uma grande excepção na arte Europeia, isto é, uma Face do Espírito Santo, ou representação pessoal do Paracleto – sem que constitua apenas, indistintamente, uma das Pessoas da Santíssima Trindade –, e ela aparece na obra-prima da nossa pintura primitiva: é a figura central (e dupla) dos Painéis de Nuno Gonçalves.

Vários foram os estudiosos que apontaram para a relação do tema dos Painéis com o culto do Espírito Santo, a começar por Jaime Cortesão – que dedicou aos Painéis longas e atentas páginas da sua obra monumental “Os Descobrimentos Portugueses” –, mas também Afonso Botelho, Belard da Fonseca, José Luís Conceição Silva e vários outros.

O facto de a figura central do “Santo”  mostrar ao rei ajoelhado uma passagem do Evangelho de S. João que corresponde a missa votiva do Espírito Santo basta para afirmar essa relação. Foi talvez Jaime Cortesão aquele que ousou ir mais longe ao designar os Painéis como o testemunho da "investidura da nação pelo Espírito Santo".

Infelizmente, o problema da identificação das personagens representadas no retábulo tem obnubilado a compreensão do sentido ou significação profunda e imensa da obra; e a resolução do enigma da personagem central, representada duas vezes em posições quase simétricas, tem sofrido muito desse obcecante empenho em  identificar  todas as caras a partir de dados históricos, obsessão em que se perde amiúde o fio da meada e a inteligência global, mormente nos importantíssimos aspectos da relação da obra com o imaginário português prevalecente no século XV. Ao identificar a figura central com o Infante Santo, com S. Vicente, ou com ambos, ou ainda com várias outras figuras históricas, cede-se a fraqueza que consiste em deduzir essa identidade a partir mais dos eventos históricos do que do discurso místico, votivo e ideológico de todo o retábulo. Conceição Silva, na interessante obra que dedicou aos Painéis, aproxima-se mais do que ninguém, da solução do enigma: para este autor, a duplicação simétrica do "Santo" constitui uma feliz concepção artística para indicar ao observador que se trata de um só indivíduo investido simultaneamente de duas funções distintas. Uma sacerdotal, outra real. E acrescenta: "Torna-se assim evidente a identificação do Santo com aquele misterioso sacerdote do altíssimo, várias vezes evocado na Bíblia mas comum a outras tradições orientais e ocidentais.

Na sua dupla função, ele prepara a humanidade para receber no fim dos tempos, (advento do Reino dos Céus) o verdadeiro Messias, o sacerdote perpetuo, o Cristo Rei, por ele anunciado e evocado quando consagra o pão e o vinho [...]. É portanto o Melki-Tsedek da tradição hebraica, o Preste João da lenda cristã, o Rei do Mundo na crença asiática, S. João «o discípulo amado que ficará até que eu volte».

A intuição de Conceição Silva leva-o ao limiar da compreensão total da misteriosa figura da dalmática, mas importa não confundir Melquisedeque com o Preste João ou com o Rei do Mundo estudado por Guénon; é certo que o nome de Melquisedeque provém de uma mesma palavra que apresenta as formas de Melek, "rei", e Maleak, "anjo"  ou enviado; ademais, Mlalaki, o meu enviado (isto é, o enviado de Deus, ou o anjo no qual está Deus, Maleak ha-Elohim), é o anagrama de Mikael; porém, tal como surge no Antigo Testamento, Melquisedeque, na sua riquíssima polissemia, e um símbolo da tradição primordial; tal a tese, aliás, do estudo de Jean Tourniac sobre Melkitsedeq ou la Tradition Primordiale (Paris, 1983). O Rei do Mundo, ou o Preste João da lenda cristã, por seu turno, é aquele que Cristo designou para ficar à sua espera, é portanto como que o vigário permanente de Cristo na Terra, enquanto Cristo não regressar no fim dos tempos. Trata-se de noções próximas e que se contaminam mutuamente na supera-abundância das suas refrações simbólicas. E não faltam tão-pouco, na arte e no imaginário portugueses, os testemunhos tangíveis da importância destes dois símbolos maiores.

Todavia, atendendo à importância do culto espiritano em Portugal e às suas directas implicações joaquimitas, parece mais simples e evidente admitir que a figura central dos Painéis é a representação da Pessoa do Espírito Santo, por certo Enviado de Deus como o foi a Segunda Pessoa (e portanto, Malaki), mas sobretudo como prefiguração da Face oculta através dos séculos, tal como oculta esteve a Face do Filho antes da sua vinda ao Mundo. Trata-se da imagem corpórea imaginada da encarnação da Terceira hipóstase, do Espírito Santo feito Homem, pela primeira vez simbolicamente representado na obra mais extraordinária da pintura portuguesa, e a tal título única na cristandade.

O génio de Cortesão bem o sentiu ao escrever, reportando-se a época do condestável D. Nuno Álvares Pereira, que já então o Espírito Santo, lume e guia dos Apóstolos nas suas andanças pelo Mundo, se tornara, para os Portugueses, a encarnação de Deus, que lhes era substancial e própria.

A prova rigorosa de que assim é fornece-a a geometria e a numerologia secreta dos Painéis, que não se pode desenvolver aqui.

Bastará declarar que os Painéis assumiam a transcendência artística que todos lhe reconhecem antes de ser clara a sua relação com o culto do Espírito Santo. A comprovação desse vínculo pela Geometria e pelo Número, a revelação da sua exacta e consciente intenção simbólica – apontada á invocação e representação da encarnação do Enviado hipostático de Deus, o Paráclito do culto lusitano do Divino Espírito Santo, não faz senão acrescentar a transcendência da obra, confirmar o seu carácter único, no sentido mais profundo da palavra, e a imensidade do seu alcance universal.

Se os Painéis são o testemunho mais espectacular, mais significativo e impressionante da importância imensa do culto do Espírito Santo no imaginário da nação portuguesa, nem por isso são o único na nossa arte (ainda que seja único, e em toda a cristandade, o facto de neles figurar a representação, destacando-a da Trindade, da Pessoa do Espírito Santo). Com efeito, e apesar de ainda não ter sido empreendido um estudo sistemático da nossa arte nessa perspectiva, vários parecem ser os exemplos, na escultura e na pintura, de obras directa ou indirectamente inspiradas nesse culto e nos símbolos a ele pertinentes. Estão neste caso, obviamente, as imagens esculpidas da Trindade e as representações do milagre de Pentecostes, que inspirou grandes mestres da pintura portuguesa.

Deve ser incluído neste rol a serie das Aparições de Cristo á Virgem, que conheceram em Portugal, no século XVI e até ao século XVII, uma voga sem paralelo com os outros países cristãos, onde o assunto é menos frequente; a mais extraordinária dessas Aparições é a que está hoje atribuída a Jorge Afonso, pintor de D. Manuel, proveniente do Convento da Madre de Deus, em Xabregas; mas outras há importantes, atribuídas a mestres como Frei Carlos, Gregório Lopes, Garcia Fernandes, Simão Rodrigues, etc.

Se atentarmos nos leitmotifs em que pode dividir-se a iconografia e a simbólica espiritana para lá dos objectos do próprio culto popular que interessam o etnólogo e o antropólogo, como a coroa e o ceptro do imperador, os Impérios, ou capelas, onde esses distintivos são guardados, as colchas e as bandeiras, os barros e as faianças, etc., que se entrelaçam num riquíssimo tesouro de tradições e de poesia popular, damo-nos conta de que existem três temas fundamentais: o tema do culto ao Divino propriamente dito, o tema da vinda do Paracleto e o tema do Quinto Império. No primeiro perfila-se uma teologia da Terceira Pessoa da Trindade divina, no segundo evidencia-se a inclinação portuguesa de suscitar no Espírito Santo a encarnação de Deus, que lhe é substancial e própria (como diz Cortesão, no terceiro toma papel preponderante o milenarismo joaquimita, com as implicações imperiais de urna política mundial de unificação das religiões e dos povos.

Nesta perspectiva, melhor compreenderemos que o fervor popular se tenha concentrado no culto começado em Alenquer e ao qual se manteve fiel até hoje, sobretudo fora do continente (onde a acção dos inquisidores era mais difícil); melhor se compreende também que nos círculos próximos da corte e no período mais fortemente marcado pelo espírito da cavalaria e das ordens militares tenha sido a idéia da vinda prometida do Paracleto a que terá suscitado o ardor dos nobres e dos homens cultos mais devotados, de que é testemunho inultrapassado o políptico de Nuno Gonçalves na sua gravidade toda interior, na sua concentração silenciosa e intensa, na presença extática do invisível tornado corpo e Face e investidura sagrada; e também melhor se entenderá que, na deriva e no declínio do espírito da Idade Média, que ia dando lugar às ideologias modernas e ao predomínio cada vez mais brutal do poder político e económico sobre todas as outras instâncias, fosse o tema do Quinto Império aquele que viria a receber o favor dos novos tempos.

Este tema era o mais próximo das preocupações dominantes e aquele que, mantendo no seu foro interior o bruxulear de um culto arreigado no coração das gentes, melhor servia o nacionalismo emergente, a centralização do poder, a ambição de domínio. Por isso, o Quinto Império foi bandeira de patriotismo português contra o ocupante espanhol, tal como, antes de l380, inspirou o sonho manuelino de unificação do Mundo sob o ceptro português; depois de 1640, inspirou, no tempo de D. João V e ainda no século XVIII, não apenas um ideário de grandeza nacional, por vontade de Deus, como também algum escrito erudito de uma alquimia sotereológica e escatológica, como o extraordinário tratado alquímico Ennoea ou Aplicação Do Entendimento sobre a Pedra Philosophal, de Anselmo Caetano Munho´s de Avreu Gusmão e Castello Branco (publicado em edição fac-símile pela Fundação Calouste Gulbenkian em 1987), onde lemos estas palavras surpreendentes: “... o Insigníssimo e Excelentíssimo Conde da Ericeira D. Francisco Xavier de Menezes chamou em huma ocasião na minha presença a Pedra Philosophal, Sebastianismo da Philosophia; porque todos os homens de grande juízo são Chrysopeios, assim como os Heroes de grande entendimento são Sebastianistas”; e logo a abrir o capítulo seguinte acrescenta: “Estão discretamente comparados os Sebastianistas, com os Herméticos; porque tanta duvida tem a existência do Lápis, como a do Senhor Rey D. Sebastião, porque ambos estão encobertos".

Que melhores testemunhos artísticos podemos encontrar desses fulgores de fé no reino de Deus na Terra, obrado por portugueses votados ao serviço da Idade do Espírito Santo, que o Convento dos Jerónimos, no século de D. Manuel, e o Convento de Mafra, no século de D. João V ?