Francisco Maduro Dias:
O Espírito do Espírito Santo

 

 

 

     Lembro-me como se fosse hoje.

     Tinha sido convidado por um imperador e corria-me diante dos olhos o cortejo de carros com vinho e pão.
Estava encostado ao umbral de pedra da igreja, num destes fins de tarde bonitos, de Maio, em vésperas de Domingo do Bodo.

     Passaram carrinhas enfeitadas, tractores com trelas engalanados, e – orgulhosamente no meio – guinchando o eixo com dobrada energia, um carro de bois, especialmente enfeitado a preceito (carro, bois, canga, tudo!).
     A pessoa que estava ao meu lado disse-me ao ver passar aquilo: “É pena que só haja um carro! Daqui a tempos nem este!”

     A tirada era, por um lado, de solidariedade, por outro a ver o que é que eu dizia.

     E respondi-lhe – talvez com uma certa prosápia científica de rapaz ainda novo – algo que não deixa de estar certo, mas que não torna errado o resto:
     “De um ponto de vista de património cultural será pena que os carros de bois desapareçam, mas acho muito importante este gosto de enfeitar e a necessidade de festejar o Espírito Santo!”

     A cara de estranheza fez-me completar: “ Durante séculos o carro de bois foi, apenas e só, o transporte disponível.
     Enfeitar o carro era enfeitar o veículo que se tinha à mão.
     De certo modo é muito natural que agora se enfeitem os carros actuais, que são os tractores, as carrinhas, as trelas”

     O meu companheiro calou-se, por instantes, e depois voltou à carga, desta vez já sem esperar ou querer resposta: “Um carro de bois é uma coisa muito bonita! Não deviam acabar!”.
     Esta questão dos patrimónios que se tem e dos usos que se dá à tradição é complicada já de si, e mais complicada fica quando o turismo se instala, sem a adequada preparação.
     Melhor dizendo: Sem a formação necessária de todos os intervenientes no processo.

     Quem nos visita quer participar, e bem, das belezas culturais e naturais da terra onde escolheu viver uns dias. Reinventar tradições, ajeitar histórias, para melhor vender ou comprar, é incorrecto, quer do ponto de vista da visita, quer do ponto de vista de quem habita no dia-a-dia.

     Voltando ao exemplo, há duas coisas, aqui em jogo, a ressaltar:
Uma é a imagem do carro de bois enfeitado; outra é a tradição de enfeitar os carros que levam as coisas necessárias ao Bodo.


     De um ponto de vista da saúde das nossas tradições, é muito mais importante o passar de pais para filhos esta ideia do enfeitar, do que a ideia de enfeitar apenas e só carros de bois!

     Porque o que importa mais não é o carro mas o enfeite, não é o enfeite mas a razão porque se faz tudo isso: o Bodo, a partilha, o convívio, o reforço da identidade e de como a vemos.

     Gosto, como está bom de ver e se imagina, de ver um carro de bois em uso.

     Embora “menino da cidade” habituei-me ao cheiro quente do gado, ao vagar compassado dos bois, ao ritmo marcado e digno com que as coisas corriam, porque o passo dos bois é lento e medido.

     E tenho pena de quem não sabe e não percebe, ou a quem não ensinaram a gostar.
     Mas gosto mais de saber que, em cada ano, há gente da minha gente que festeja este tempo, sem cuidar de saber se é carro ou tractor.

     Porque na Primavera, desde a Páscoa à Trindade, é assim!

 

Sábado, dia 07 de Maio de 2005

 

      http://www.azoresdigital.com/