Lembro-me como se fosse hoje.
Tinha sido convidado por um imperador e corria-me
diante dos olhos o cortejo de carros com vinho e
pão.
Estava encostado ao umbral de pedra da igreja, num
destes fins de tarde bonitos, de Maio, em vésperas
de Domingo do Bodo.
Passaram carrinhas enfeitadas, tractores com trelas
engalanados, e – orgulhosamente no meio – guinchando
o eixo com dobrada energia, um carro de bois,
especialmente enfeitado a preceito (carro, bois,
canga, tudo!).
A pessoa que estava ao meu lado disse-me ao ver passar
aquilo: “É pena que só haja um
carro! Daqui a tempos nem este!”
A tirada era, por um lado, de solidariedade, por outro
a ver o que é que eu dizia.
E respondi-lhe – talvez com uma certa prosápia
científica de rapaz ainda novo – algo que não deixa
de estar certo, mas que não torna errado o resto:
“De um ponto de vista de património cultural será pena
que os carros de bois desapareçam, mas acho muito
importante este gosto de enfeitar e a necessidade de
festejar o Espírito Santo!”
A cara de estranheza fez-me completar: “ Durante
séculos o carro de bois foi, apenas e só, o
transporte disponível.
Enfeitar o carro era enfeitar o
veículo que se tinha à mão.
De certo modo é muito natural que agora se enfeitem os
carros actuais, que são os tractores, as carrinhas,
as trelas”
O meu companheiro calou-se, por instantes, e depois
voltou à carga, desta vez já sem esperar ou querer
resposta: “Um carro de bois é
uma coisa muito bonita! Não deviam acabar!”.
Esta questão dos patrimónios que se tem e dos usos que
se dá à tradição é complicada já de si, e mais
complicada fica quando o turismo se instala, sem a
adequada preparação.
Melhor dizendo: Sem a formação necessária de todos os
intervenientes no processo.
Quem nos visita quer participar, e bem, das belezas
culturais e naturais da terra onde escolheu viver
uns dias. Reinventar tradições, ajeitar histórias,
para melhor vender ou comprar, é incorrecto, quer do
ponto de vista da visita, quer do ponto de vista de
quem habita no dia-a-dia.
Voltando ao exemplo, há duas
coisas, aqui em jogo, a ressaltar:
Uma é a imagem do carro de bois enfeitado; outra é a
tradição de enfeitar os carros que levam as coisas
necessárias ao Bodo.
De um ponto de vista da saúde das
nossas tradições, é muito mais importante o passar
de pais para filhos esta ideia do enfeitar, do que a
ideia de enfeitar apenas e só carros de bois!
Porque o que importa mais não é o carro mas o enfeite,
não é o enfeite mas a razão porque se faz tudo isso:
o Bodo, a partilha, o convívio, o reforço da
identidade e de como a vemos.
Gosto, como está bom de ver e se imagina, de ver um
carro de bois em uso.
Embora “menino da cidade” habituei-me ao cheiro quente
do gado, ao vagar compassado dos bois, ao ritmo
marcado e digno com que as coisas corriam, porque o
passo dos bois é lento e medido.
E tenho pena de quem não sabe e não percebe, ou a quem
não ensinaram a gostar.
Mas gosto mais de saber que, em cada ano, há gente da
minha gente que festeja este tempo, sem cuidar de
saber se é carro ou tractor.
Porque na Primavera, desde a Páscoa à Trindade, é
assim! |